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Nara Leão dá voz à história do seu tempo

Pesquisa investiga a discografia da cantora capixaba durante a ditadura militar

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A cantora Nara Leão atuou em diferentes repertórios e estilos musicais na década de 1960, sempre com um viés político evidente, se contrapondo ao momento protagonizado pela ditadura militar. “Era uma figura aberta ao debate público e atenta às movimentações culturais. Com isso, sintetizou em sua trajetória as discussões que estavam em jogo no período e as contradições de parte de sua geração – que se expressavam em temáticas como tradição e engajamento, de um lado, e modernidade e mercado, de outro”, constatou o músico Ismael de Oliveira Gerolamo em sua pesquisa de doutorado, defendida no Instituto de Artes (IA).

O estudo mostrou que essas diferentes facetas da cantora se expressaram na produção e principalmente no seu gesto vocal. Segundo Ismael, Nara foi central para entender esse período: antecipou e norteou alguns caminhos para a canção popular. Curiosamente, quase caiu no esquecimento.

A cantora, “formada” musicalmente na bossa nova, trazia uma herança moderna, uma aura de sofisticação, própria do estilo musical da zona sul do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, protagonizou um retorno ao samba de morro. “Essas e outras ambiguidades foram expressas exemplarmente pela cantora”, opina o pesquisador.

Mas a porta de entrada de Nara para a música foi a bossa nova. Ela tinha então cerca de 15 anos e morava num lugar famoso para esse gênero musical: a Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro. Muito se fala sobre a importância do apartamento de seus pais para surgir a bossa nova, como se ela tivesse nascido ali. Fato é que o local era ponto de encontro dos musicistas.

Foto: Reprodução
Nara Leão entre Zé Keti (à esq.) e João do Vale em “Opinião”: cantora combateu a ditadura e abriu caminhos para a canção popular

Enquanto sua atuação revelou um sentido de interferência na esfera pública, ela e outros cancionistas estavam vendendo muitos discos e atuando no mercado. Nara sentia e expressava essa ambiguidade, tanto que se afastou da canção de protesto por achar que aquilo estava virando puro consumo. Porém, prosseguiu com uma atuação política.

A sua performance musical era uma no contexto da canção engajada. Parecia querer impactar o ouvinte para dar mais corpo e potência à sua voz. Quando abandonou tal repertório, aproximou-se de produções mais líricas e da Tropicália, endossando o movimento de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Torquato Neto. Apresentou outra gestualidade vocal, desta vez mais suave, como um retorno a certos parâmetros vocais da bossa nova.


Escolhas

Na sua tese, orientada pelo docente do IA José Roberto Zan, Ismael reuniu as produções musicais de Nara, com foco em sua discografia. Investigou sua trajetória na década de 1960 e sua disposição de interferir socialmente. “Meu estudo lança luz ao aspecto musical e de performance da cantora, relacionando o seu trabalho ao contexto histórico desses anos”, revelou.

O pesquisador quis entender os sentidos das escolhas de Nara, desde a bossa nova. Também foi uma das principais expressões da canção de protesto, com seus discos engajados e com o show Opinião, um espetáculo musical de Augusto Boal produzido pelo Teatro de Arena e integrantes da União Nacional dos Estudantes  (UNE), instituição considerada ilegal pelo regime militar.

Em determinado momento, Nara se afastou da canção engajada e migrou para uma produção mais lírica de Chico Buarque e Sidney Muller, que também tinham um traço político forte, porém que se diferenciavam da canção de protesto e dos festivais.


Novos rumos

“Nara ocupou um papel secundário na bossa nova. Fazia pequenas apresentações em clubes, em universidades, num contexto quase amador”, relatou o pesquisador. Na época, namorava Ronaldo Bôscoli, que produzia shows de bossa nova. Ocorre que ele e alguns colegas não lhe davam quase destaque nessas ocasiões.

A partir de 1962, ela tomou novo rumo. Foi convidada para gravar na Elenco Records, de Aloysio de Oliveira, produtor e compositor de música popular. Quando o seu disco saiu, em 1964, tinha pouco a ver com bossa nova. Nara já estava fazendo um movimento com Carlos Lyra de retomar sambas de compositores populares como Zé Keti, Nelson Cavaquinho e Cartola, ligados a escolas de samba. Naquele momento, a cantora gravou um repertório com sambas de morro e também canções de Edu Lobo e de Carlos Lyra, que já tinham um viés político acentuado.

Nos anos 1960, Nara lançou praticamente dois discos por ano. O disco Opinião inspirou o show que levou o mesmo nome. Oduvaldo Vianna Filho transformou o disco em peça musical. Colocou em evidência uma figura da classe média alta, que era Nara Leão; um compositor representante do morro, que era Zé Keti; e um retirante nordestino, que era João do Vale. O show foi sucesso entre a juventude universitária.

Entre 1968 e 1970, a cantora lançou apenas dois discos. Na década seguinte, teve uma produção esparsa, mas sem deixar de produzir. Depois, ficou alguns períodos maiores sem gravar.


Rupturas

Ao se desvincular da bossa nova, Nara deu outro sentido à sua trajetória e se tornou uma das principais lideranças do engajamento musical, canção de protesto, de 1964 a 1966. Pendeu para debates culturais e artísticos. Criticava que se cantasse o amor, o sorriso, a flor diante da situação política, que era tensa. A bossa nova era mais leve, fruto de um cotidiano zona sul.

Em 1964, a cantora concedeu uma entrevista a uma revista de celebridades dizendo: “a bossa nova me dá sono”. Os adeptos do gênero ficaram injuriados. E Nara continuou se envolvendo em inúmeras polêmicas culturais e políticas, dada sua aptidão para o debate público. “Mas ela gozava de uma posição relativamente confortável. O pai era advogado e vinha de uma classe social privilegiada, o que permitia a manutenção de certo distanciamento do meio artístico, uma distância crítica em relação ao show business”, afirmou Ismael.

Foto: Scarpa
O músico Ismael de Oliveira Gerolamo, autor da pesquisa

Expressão de ambiguidades do maior relevo para a compreensão do período, a cantora se envolvia em debates e queria interferir na esfera pública, no entanto era reticente em relação ao mercado musical. Quando começava a ficar em evidência, se afastava, abandonava os projetos, tirava férias. Falava em largar a carreira.

Em 1966, declarou que o governo militar era horrível e que o exército não valia nada. O jornal Diário de Notícias divulgou a entrevista, cujo título era Nara é de Opinião: esse exército não vale nada, fazendo um trocadilho com o show Opinião. Isso, porém, não a intimidou. Sustentava que o governo militar devia abdicar do poder.

Nara foi ameaçada de processo. Isso causou comoção no meio artístico, já que ela era muito querida. Os artistas fizeram manifestações e abaixo-assinado em seu apoio.

Carlos Drummond de Andrade saiu em sua defesa em um poema publicado no mesmo noticiário, falando para não a prenderem. Já em interrogatórios a Chico Buarque, poucos anos depois, os militares sempre perguntavam sobre Nara. Na época, ela era casada com o cineasta Cacá Diegues, e o casal resolveu se autoexilar em Paris por três anos.

Em 1966, no Festival de MPB da Record, ela interpretou A banda, de Chico Buarque. Era o seu auge como cantora, em termos de êxito junto ao público. Para ela, foi um sofrimento, por não tolerar o sucesso e nem as turnês. Quase largou tudo. Contudo, sempre acabava retornando, por questões financeiras [era muito bem paga] ou pela possibilidade de participar dos debates do período.

“Nara nunca interrompeu a produção de discos. Apreciava escolher repertório, pesquisar novos compositores e composições antigas, chamar músicos para tocar. Gravou canções de domínio popular e marchinhas antigas, assim como sambas de outros carnavais e até mesmo modinha imperial”, descreveu Ismael. Mais recentemente, a cantora foi retratada no especial da TV Globo “Por toda minha vida” e, além das participações teatrais, atuou em alguns filmes, a exemplo de Quando o carnaval chegar, de Cacá Diegues, ao lado de Chico Buarque e de Maria Bethânia.

Nara Leão chegou a ingressar no curso de Psicologia, nos anos 1970, que não chegou a concluir. Descobriu um tumor benigno inoperável. Faleceu em 1989, aos 47 anos, deixando Isabel e Francisco, filhos que teve com Cacá Diegues.

 

Imagens: ReproduçãoPLAYLIST DO EDITOR


O Barquinho (Roberto Menescal)
https://www.youtube.com/watch?v=B6JPFy0OM1M

Opinião (Nara Leão, João do Vale e Zé Keti)
https://www.youtube.com/watch?v=0JBGm22i-Rk

Carcará (João do Vale)
https://www.youtube.com/watch?v=4poHPINYuFQ

Diz que fui por aí (Zé Keti e Hortêncio Rocha)
https://www.youtube.com/watch?v=7lkDuC5S2aQ

A banda (Chico Buarque)
https://www.youtube.com/watch?v=ITMQaaUA9S8

Faz escuro mas eu canto (Monsueto Menezes e Thiago de Mello)
https://www.youtube.com/watch?v=ibTz0mCv650

Morena dos olhos d’água (Chico Buarque)
https://www.youtube.com/watch?v=vc4t7geoCCo

Com açúcar, com afeto (Chico Buarque)
https://www.youtube.com/watch?v=7ITiDPGH9qE

A estrada e o violeiro (Sidney Miller)
https://www.youtube.com/watch?v=xC0QdX8i1IQ

Lindonéia (Gilberto Gil e Caetano Veloso)
https://www.youtube.com/watch?v=C2dbCiH3nrc

Cuitelinho (Folclore/Versão de Paulo Vanzolini)
https://www.youtube.com/watch?v=zCXfX6_oWJ0&list=RDzCXfX6_oWJ0&t=15

Penas do Tiê (Hekel Tavares/Nair Mesquita)
https://www.youtube.com/watch?v=MM4ygcKUItY

João e Maria (Chico Buarque e Sivuca)
https://www.youtube.com/watch?v=5tQdqepsLOs&list=RD5tQdqepsLOs&t=2

Fotografia (Tom Jobim)
https://www.youtube.com/watch?v=WY3p3WxBBZ4

Mambembe (Chico Buarque)
https://www.youtube.com/watch?v=h2jjXcymcPA

Nasci para bailar (João Donato)
https://www.youtube.com/watch?v=f-NsKZM6VRU

 

 

 

 

 

 

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: Em imagem frontal, mulher com olhar triste e direcionado à lente do fotógrafo, mantém as palmas das mãos encostadas em cada um dos lados do rosto, e com os cotovelos apoiados no chão, sendo que ela encontra-se deitada no chão. Ela segura um grande lenço com as pontas dos dedos da mão direita. A foto é em preto e branco. Imagem 1 de 1.

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