Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Dados viciados. Renda e tributação nas altas rodas

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Ilustra: Luppa Silva A frase de Einstein é conhecida: Deus não joga dados. Era demonstração de confiança em uma lógica determinista para o universo físico. Pode ser que Deus, afinal, jogue dados e a natureza seja menos determinista do que supunha Laplace. As apostas estão abertas no reino dos mortais.

Mas, aparentemente, no plano das riquezas, se Deus joga dados, estes estão bem viciados. Nesse cassino, a banca sempre ganha.

Foi algo que pensei, quando li um livro em que Richard V. Reeves expõe alguns fatos espantosos sobre aquilo que se pode chamar de “nata da sociedade” norte-americana. O livro é este: Dream Hoarders: How the American Upper Middle Class Is Leaving Everyone Else in the Dust, Why That Is a Problem, and What to Do about It, Brookings Institution Press, 2017.

Se você achou o título longo, o problema é ainda maior. Reeves reconhece a existência da concentração de renda nos famosos 1% de que tanto se fala depois de Thomas Piketty e o Occupy Wall Street. Mas Reeves chama atenção para algo menos notado e, diz ele, relevante para explicar a estabilidade de algo tão chocantemente desigual. Seu foco está nos 20% da upper-middle-classe, o segmento que de fato solda as alianças de poder disseminado, na sociedade americana, explicando em grande parte o modo como ela estabiliza o silêncio do resto. Reeves se incomoda com o perigoso insulamento deste estrato social, os resultados potencialmente desastrosos dessa transformação em “casta”.

Nao vou resenhar o livro. Vou apenas selecionar um desses aspectos incômodos.

A estória começa com uma ideia de Barak Obama, uma das tantas que ele abandonou rapidamente por conta do “realismo” indispensável à própria sustentação de seu governo (ou daquele que esperava que o sucedesse). Aconteceu em janeiro de 2015. A ideia, sugerida ao Congresso, foi abortada, por ele mesmo. Depois que percebeu o que poderia ocorrer.

A temerária ideia era remover os benefícios tributários dos chamados “Planos de poupança para educação superior – 529”.  O número é referência a sua inserção no código da Receita (IRS). Um detalhado estudo do Tesouro americano, já em 2009, mostrava que esses benefícios ajudavam desproporcionalmente as famílias ricas. O relatório - An Analysis of Section 529 College Savings and Prepaid Tuition Plans – está disponível na web.

O projeto de Obama visava utilizar os fundos resultantes dessa abolição de renúncia fiscal para criar um fundo mais amplo e justo. Afinal, o estudo mostrava que mais de 90% das vantagens iam para os 25% mais ricos (mais de 200 mil dólares anuais), em um país cuja renda mediana familiar girava em torno de 54 mil.

Obama teve que recuar precisamente porque...  a reforma contrariava o pilar de sustentação da “ordem” americana, seja do lado republicano, em quase todas as suas vertentes, seja do lado democrata, entre os chamados “liberais de limousine” que controlam o aparato do partido.

Mas tem coisa mais grave, diz Reeves. Aquilo que ocorre com os “529 plans” era apenas um exemplo de como as políticas de tributação norte-americanas ampliam as desigualdades, ao invés de moderá-las.

Vejamos, por exemplo, as deduções e subsídios relativos apenas à propriedade de imóveis. Reeves remete a um estudo do Urban Institute – também disponível na web: www.urban.org/sites/default/files/alfresco/publication-pdfs/413241-Who-Benefits-from-Asset-Building-Tax-Subsidies-.PDF.

E reproduz este gráfico estonteante (traduzo e adapto do original):

Foto: Reprodução

O comentário de Reeves é jocoso: “O IRS [receita federal] é generoso quando vendemos nossas casas caras, nos dando um desconto de qualquer imposto sobre ganhos de capital. Metade do valor desta redução de impostos vai para aqueles de nós no quintil de renda superior. Obrigado, tio Sam!"

Os 25%  do topo agradecem ao Robin Hood invertido sediado em Washington DC.

As leis de tributação americanas são extremamente regressivas no que diz respeito a créditos, deduções, isenções e imunidades, assim como para ganhos de capital e dividendos. Juntos, essas “tax breaks”, tomadas como exemplo, somam mais de um trilhão de dólares (sim, eu disse um trilhão de dólares). É o que mostra o estudo do Urban Institute, acima mencionado. Para onde vão tais renúncias fiscais? Em sua maior parte, para as carteiras da upper middle class. Afinal “dedução fiscal” só pode beneficiar quem teria, hipoteticamente, o que pagar como tributo. Não os que não atingem tais níveis... é claro que os brasileiros sabem o que é isso. Basta olhar para estudos similares disponíveis no site da nossa gloriosa Receita Federal. Comentei um deles neste endereço: http://brasildebate.com.br/que-os-super-ricos-paguem-a-conta-ou-como-tirar-a-classe-media-da-influencia-da-direita/. Mas, como sabem, não estou falando do Brasil...

Obama tentou tirar umas moedas da carteira da nata, com a proposta de abortar os “529 saving plans”. Foi o suficiente para, quem sabe, mostrar quão melancólico ia ser o fim de seu governo e quão frustrante iria ser o seu “legado”.

Assim que terminou o governo, o NY Times e alguns pasquins aqui da província fizeram a inevitável reportagem sobre o legado. Entre as “conquistas”, a recuperação econômica. Entre as derrotas, desemprego, desigualdade, pobreza. Estes três termos, aparentemente, não pertencem à economia. Não pertencem ao universo da upper-midlle class. Eles não usam “529 plans” e outras macumbas tributárias.

 

 

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