Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Por que as universidades são importantes?

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Universidades existem há quase um milênio. Se voltássemos no tempo com a visão atual, talvez não reconhecêssemos as poucas que existiam no século XII como universidades, afinal elas se modificaram bastante. As universidades atuais, todas distintas umas das outras, guardam, no entanto, identidades entre si (senão não as chamaríamos de universidades), elas hoje são mesclas diferentes de alguns modelos, que se desenvolveram a partir do século XIX, e dependem de onde e quando se instalam. O que salta aos olhos da História é que se nasceram há mais de 900 anos e se espalharam por todo o mundo é porque são promotoras do desenvolvimento diverso em cada um dos seus lugares.

Estranhamente, apesar dessa diversidade, na virada do século, muitos – dentro e fora das universidades – parecem querer que as universidades sejam todas iguais e apenas melhores ou piores em uma régua duvidosa. É o apego crescente a uma contabilidade, os rankings, que transforma todas elas em corredores de 100 metros rasos em busca de medalhas, quando, na verdade, mistura-se nisso halterofilistas com nado sincronizado. Atenção, a analogia até que é boa: atividades totalmente diferentes, mas modalidades de uma coisa, esporte. Atentas, empresas de rankings, que são um negócio com apurado senso de marketing, criam rankings para, aparentemente, contemplar isso, como o Ranking de Impacto do Times Higher Education, com uma metodologia algo obscura e coleta de dados idem<[I]. Esquecendo, portanto, esses rankings, que ora servem para promover, ora para subsidiar ataques contra elas (usando também outra contabilidade, a dos cifrões), para que servem as universidades?

Universidades são abrangentes em suas missões e complexas na realização delas. Na abertura de um ensaio sobre exatamente para que servem as universidades, Geoffrey Boulton e Colin Lucas antecipam a questão de fundo e o enfrentamento do momento[II]

 “É o complexo e interagente todo da universidade que é a fonte dos distintos benefícios econômicos, sociais, culturais e utilitários apreciados pela sociedade. Ela precisa ser entendida, valorizada e administrada como um todo. Essas percepções são um desafio direto não apenas para governos, mas também para gestores universitários, que têm sido ou assombrados ou seduzidos pela lógica inadequada que está levando a demandas que universidades não podem satisfazer, enquanto obscurecem suas mais importantes contribuições”.

E complementam o manifesto:

“O desafio [interno e externo às universidades] é permitir autonomia sem uma accountability opressiva, e dar a estudantes e docentes a liberdade para pensar, especular e pesquisar. Essas são as condições essenciais para a criatividade individual e coletiva que são as fontes dos benefícios mais amplos e intensos da universidade para sua sociedade.”

É preciso responder à pergunta do título escapando, portanto, da accountability, que obscurece as mais importantes contribuições. Levando em conta a diversidade das universidades, poderíamos considerar que sua importância seja uma identidade comum, assim, algo que valha no Reino Unido, talvez se aplique aqui com adaptações.

No artigo “Sete maneiras pelas quais universidades beneficiam a sociedade”, Jean-Paul Addie relata exemplos britânicos de como as “universidades transformam suas vizinhanças, cidades, regiões e país”. Faço aqui esse exercício para a universidade em que me formei e vim a trabalhar como docente, a Unicamp. Boa parte dos exemplos são repetidos isoladamente em diferentes ocasiões e faz parte do exercício vê-los juntos.

Na lista de benefícios, o primeiro dos sete é que universidades são motores econômicos. No artigo publicado no The Conversation[III], o viés são os empregos e a atividade econômica gerados pela existência da universidade em si. Isso acontece para qualquer organização, mas aquelas com fins lucrativos seguem seus planos de negócio e não um compromisso com a sociedade. Universidades com fins lucrativos muitas vezes fecham ou mudam de lugar. Por outro lado, as universidades públicas (e as poucas sem fins lucrativos aqui no Brasil) permanecem. Afinal, aquelas criadas há nove séculos continuam lá onde surgiram. Mas existe um outro fator: universidades também criam empresas. No caso da Unicamp, o que salta (ou deveria saltar) aos olhos, são suas empresas filhas, um exemplo que é citado frequentemente. Ironicamente e apesar do alerta acima, esse benefício é justamente percebido por um exercício de contabilidade, que, no entanto, revela em vez de obscurecer. A percepção vem de um cadastro crescente das empresas fundadas por ex-alunos, muitas a partir de projetos desenvolvidos enquanto se formavam e incubadas na Universidade[IV]. A última contagem chega a 717 empresas ativas que geram mais de 30 mil empregos e que no conjunto faturam anualmente mais do que 3 vezes o orçamento da Unicamp. Cerca de metade das empresas localizam-se na região de Campinas e 86% atuam no estado de São Paulo, onde recolhem impostos, o que precisa ser lembrado por aqueles que sempre exigem a tal accountability, baseados em argumentos sem nenhuma accountability.

O segundo dos sete benefícios apontados para o Reino Unido é o de que as universidades transformam seu entorno e suas cidades. Por aqui vale pensar um pouco sobre o distrito de Barão Geraldo, onde o primeiro campus da Unicamp começou a funcionar em 1970. Naquele ano a população do distrito era de 10 mil habitantes. Cinco anos depois eram 15 mil[V]. Hoje são 50 mil habitantes, portanto a população do distrito aumentou mais que o dobro da média brasileira no período. Mas Barão Geraldo não é um “distrito dormitório”, é um centro de lazer e cultura, com equipamentos culturais dentro do campus da universidade e fora dele, envolvendo ações de membros da comunidade universitária. Depois da Unicamp vieram a Barão um dos campi da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações nos mesmos anos 1970. Nas décadas seguintes foi inaugurado o campus do atualmente chamado Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (que hoje conta com o Sirius, o maior e mais sofisticado laboratório de pesquisas da América Latina), o primeiro centro de processamento de dados do Banco Santander na América do Sul, além de outras instituições, sejam de alta tecnologia ou de ensino superior. Outra contabilidade a ser feita.

Benefício três: a universidade atrai talentos! A Unicamp atrai estudantes de dezenas de países, em particular dos nossos vizinhos. É uma tradição em que a minha experiência pessoal se insere. Orientei vários estudantes de países andinos, alguns voltaram a seus lugares de origem para fazer ciência por lá, outros ficaram e pesquisam por aqui e alguns passaram a contribuir para a ciência na Europa. E a tradição segue: segundo o último anuário estatístico[VI], 287 estudantes de mestrado e 527 de doutorado estrangeiros estudavam e pesquisavam na Unicamp em 2018.

Os dados do parágrafo acima se relacionam diretamente como o quarto benefício das universidades, tanto na Europa, quanto por aqui: construção de laços internacionais. Um benefício diretamente ligado ao ensino e a pesquisa desenvolvida na Universidade.  Recorrendo novamente a uma contabilidade, podemos ter uma ideia da intensidade desses laços. Segundo a última edição do Ranking de Leiden, 40,8% dos artigos científicos da Unicamp entre os anos 2015 e 2018 são em colaboração com instituições de outros países[VII]. Em números absolutos são 5027 resultados de pesquisas tornadas públicas e oriundos desses laços.

Seguindo adiante na lista de benefícios no artigo inglês, temos que as universidades ajudam a enfrentar problemas sociais.  Pensando na Unicamp, o que vem à mente de imediato é a área da saúde. Os hospitais e outras unidades de atendimento da universidade, ou por ela administrados, prestam atendimento pelo SUS a uma população de mais de seis milhões de habitantes. Em 2018 foram mais de um milhão de consultas e 61 mil intervenções cirúrgicas, sendo que o Hospital das Clínicas realizou 365 transplantes nesse ano. Contabilidade que parece que nunca é lembrada pelas autoridades é que o Sistema Único de Saúde não cobre o total dos recursos necessários para que a população seja atendida. Boa parte dos recursos vem do orçamento da universidade e de suas reservas, que ora estão ameaçadas de confisco.

A lista de enfrentamentos de problemas sociais é ampla, mas o contexto da crise sanitária devido à pandemia da Covid-19 evidencia a relevância da ciência e do comprometimento social da universidade. Apesar do sub financiamento, a Unicamp administra mais leitos de UTI do que várias capitais do país[VIII].  A mobilização de cientistas da Unicamp resultou, em apenas duas semanas de esforços, no credenciamento do Hospital das Clínicas para a realização de testes diagnósticos do chamado Padrão Ouro da Organização Mundial da Saúde. Três meses depois esses testes diagnósticos já atendiam 40 municípios da região e comunidades vulneráveis[IX].

No conjunto de benefícios aparecem também o fomento da criatividade e do debate aberto e a melhoria da qualidade de vida de quem tem acesso à universidade. O fomento à criatividade já se anunciou acima com os equipamentos culturais da Unicamp, mas que surge também espontaneamente em outros de seus espaços, como na sua Praça da Paz. Ao longo da história da universidade, podemos lembrar que um professor da Unicamp tornou a Sinfônica de Campinas numa das orquestras mais reconhecidas do Brasil e outros docentes criaram o primeiro curso de graduação em música popular do Brasil. A Unicamp leva ópera ao interior do estado e peças de teatro ao mundo.

O debate aberto marcou seus anos iniciais, como lembrado por revista de circulação nacional[X], com a manchete “A Unicamp ensina o país a pensar”. O debate seguiu nas décadas seguintes com encontros hoje históricos e agora pode ser acompanhado nos seminários remotos “Conversas na crise – depois do futuro”, promovidos pelo Instituto de Estudos Avançados[XI].

Por fim, a educação superior melhora a qualidade de vida de quem a recebe. No Reino Unido, lembrando o artigo sobre os sete benefícios, país completamente diferente do Brasil, educação superior ainda é promotora de mobilidade social. Aqui esse papel é ainda mais fundamental e as políticas de inclusão social da Unicamp se ampliaram nos últimos anos. E hoje, com o vestibular indígena, atraímos talentos não apenas de países vizinhos, mas também de nações dentro do nosso território.

 A accountability será sempre incompleta, mas eu convido amigos e colegas para que façam esse exercício para outras universidades públicas do Brasil. É importante e urgente para evitar os assédios falaciosos constantemente sofridos. Entender o impacto social das universidades ainda se localiza no âmbito acadêmico de propostas metodológicas e alguns poucos estudos de caso[XII]. É preciso ampliar e institucionalizar a iniciativa. Boulton e Lucas lembram que “governos em todo mundo acertadamente consideram as universidades como fundamentais para a realização de muitas das prioridades nacionais”. Não é o que está acontecendo no Brasil. O olhar míope se fecha aos dados e às histórias e personagens, sejam pessoas ou cidades, que de fato revelam as mais importantes contribuições das universidades públicas no nosso país.

 

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

 

 

 


[I]https://www.timeshighereducation.com/university-impact-rankings-2020-methodology

[II] What are universities for? Geoffrey Boulton e Colin Lucas, Chinese Science Bulletin, vol. 56, p. 2506-2517, 2011:  https://link.springer.com/content/pdf/10.1007/s11434-011-4608-7.pdf

[III]https://theconversation.com/seven-ways-universities-benefit-society-81072

[IV]https://www.inova.unicamp.br/noticias-inova/faturamento-anual-das-empresas-filhas-da-unicamp-chega-a-r-7-9-bilhoes/

[V]http://www.portalbaraogeraldo.com.br/site/a-evolucao-do-distrito-de-barao-geraldo/

[VI]https://www.aeplan.unicamp.br/anuario/2019/anuario2019.pdf

[VII] É bom lembrar que o ranking de Leiden não é um ranking, mas um fonte de dados organizados em listas, mas não só: https://www.leidenranking.com/ranking/2020/list

[VIII]https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2020/08/03/unicamp-que-administra-mais-leitos-de-uti-do-que-varias-capitais-do-pais

[IX]https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2020/07/03/abrangencia-dos-diagnosticos-de-covid-19-realizados-pela-unicamp-chega-mais-de

[X]https://veja.abril.com.br/blog/reveja/a-unicamp-ensina-o-brasil-a-pensar/

[XI]http://www.idea.unicamp.br/eventos

[XII]https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/cada-universidade-uma-sentenca

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