Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Evidências, divulgação científica e ensino de ciências na encruzilhada

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O que segue abaixo é a favor da ciência e sobre a confiança nela!

Dizer simplesmente que ciência recebeu atenção e ataque inéditos no contexto da pandemia de Covid-19 é chover no molhado. No entanto, um inventário dos efeitos das enxurradas começa a ser pensado. Discussão importante para quando parar a chuva e formos arrumar as goteiras, que estão aí há tempos. A polarização entre as evidências científicas e opiniões negacionistas precisa ser discutida mais amplamente. Há evidências, sem trocadilho, de que a comunicação dessas evidências, por exemplo, também permite a construção de diferentes narrativas.

Essa comunicação (de evidências) é área recente de pesquisa, surgida nas ciências médicas, mas que se expande por outros terrenos. Um grupo interdisciplinar da Universidade de Cambridge vem estudando como comunicar incertezas, como audiências decidem em quais evidências confiar e como narrativas afetam a tomada de decisões do público. Em um comentário recentemente publicado na revista Nature[I], o grupo reconhece que estamos em uma “infodemia” com informações falsas que viralizam nas redes sociais. Por isso, segundo esse grupo, muitos cientistas se sentem em uma corrida armamentista de técnicas de comunicação. No entanto: “estamos preocupados que o impulso de persuadir ou contar uma história simplificada pode causar danos à credibilidade e à confiabilidade da informação (científica) apresentada”. As evidências em si não bastam, é necessário pensar em como são apresentadas. O caminho que esse grupo propõe é o que eles chamam de comunicação de evidências.

A análise de pesquisas de opinião sobre a pandemia parece mostrar, para esse grupo de Cambridge, que cientistas precisam demonstrar honestidade e boas intenções nas suas apresentações, não só o conhecimento, para garantir a confiabilidade de suas posições. E a pergunta que surge é: como demonstrar isso que eles chamam de “boas intenções”? Estar aberto para explicitar suas motivações, conflitos e limitações: “cientistas, cujos objetivos são percebidos como priorizando a persuasão, correm o risco de perder a confiabilidade”. Há evidências, sem trocadilho novamente, de que apresentar abertamente as limitações e as incertezas em relação às vacinas, por exemplo, não diminui a confiança do público nelas. O comentário, assinado por pesquisadores do Winton Centre para comunicação de riscos e evidências[II], conclui:

“Confiança é crucial. Buscar sempre ‘vender a ciência’ não ajuda o processo científico ou a comunidade científica a longo prazo, como tampouco auxilia o público para tomar decisões informadas no curto prazo.”

A leitura desse comentário leva a necessários (e talvez difíceis) questionamentos aqui no Brasil de hoje, afetados que estamos por uma polarização política com a ciência acuada em um dos polos. Percebe-se entre a comunidade científica a defesa intransigente (que é necessária!) da ciência, mas será que estamos atentos à possível armadilha descrita no comentário acima? A comunicação de evidências, como colocada pelos autores do artigo na Nature, remete diretamente à divulgação científica e ao ainda predominante praticado, embora sempre criticado, modelo do déficit: o especialista comunica ao público o que ele acha que deve ser comunicado. Omitindo, muitas vezes, as limitações e as incertezas, evitando falar do processo de se fazer ciência em favor apenas de seus resultados. A questão, que eu exponho aqui como uma percepção pessoal, não se limita às nossas fronteiras. A pesquisadora de divulgação científica Sandra Muriello traça um panorama parecido para a Argentina em um artigo recente[III] e empresto dela uma citação direta sobre o modelo do déficit:

“O modelo propõe um caminho apenas de ida para a informação, não há volta, não se ouve, não há diálogo, não há o que aprender com o outro. Expressões como ‘aproximar a ciência da sociedade’ ou ‘simplificar os conceitos’, tão habituais no ambiente acadêmico e muitas vezes sustentados por uma sincera intenção de interação com outros setores sociais, baseiam-se nessa perspectiva [...] então os processos, as discussões, as tensões dentro do próprio fazer científico, as controvérsias internas, seriam reveladores da construção social da ciência e tecnologia, mas são poucas as ações a partir desse enfoque”.

Afinal, divulgação científica não deveria ser justamente apresentar o que a ciência é de fato? Assim, certas frases que venho ouvindo me causam estranhamento. Em uma mesa redonda recente sobre divulgação científica, uma participante proclamou a necessidade de um batalhão de choque em favor da ciência e aos negacionistas diz responder simplesmente: então fique uma semana sem o celular! Sinceramente, a resposta me parece inútil e me chamou a atenção, porque, não faz muito tempo, escrevi um artigo tentando contar a história de um século de descobertas e desenvolvimentos necessários para que tenhamos o celular esperto[IV]. Dá trabalho contar a história, mas talvez seja melhor do que simplesmente dizer, como na história que viralizou nas redes, de que “é verdade esse bilhete”. Puro modelo de déficit, ainda que bem intencionado. Em outra ocasião ouvi que falar da complexa construção social da ciência seria muito difícil para um público com baixo letramento científico. A resposta, no entanto, não pode ser continuar a dizer o que a ciência não é de fato.

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Mudar o enfoque da divulgação científica não é suficiente. O letramento vem do ensino formal e, com isso, o ensino de ciências também precisa ser discutido, começando pela formação dos professores de ciências (para o ensino fundamental) e das ciências (Biologia, Física, Química, etc, no ensino médio).  O currículo da Licenciatura em Física da Unicamp, por exemplo, é composto por disciplinas técnicas e de Pedagogia/Educação somente. Onde estão a Filosofia e História da Ciência, a Metodologia Científica, a relação ciência e público, ciência e cultura? Inseridas como disciplinas obrigatórias, marcando uma posição institucional de que esses temas são relevantes e que devem ser apresentados para crianças e adolescentes na escola?  Hoje, parece não só importante, mas urgente, e uma resposta eu encontrei no quadro de avisos da secretaria do curso de Licenciatura em Física no campus de Araruna da Universidade Estadual da Paraíba. A foto do currículo deles mostra um belo caminho, siga as setas das disciplinas.

Lembrando, o que está escrito acima é a favor da ciência e sobre a confiança nela!

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.


[I] Michael Blastland e colaboradores, Five rules for evidence communication, Nature vol. 587, p. 362, 2020. https://www.nature.com/articles/d41586-020-03189-1

[II]https://wintoncentre.maths.cam.ac.uk/

[III] Sandra Muriello, Comunicación pública de CyT. en el fondo del ropero? Ciencia Tecnologia y Política, nº5, p. 67, 2020. https://revistas.unlp.edu.ar/CTyP

[IV]https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/o-zap-e-o-nobel

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