Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Essa estranha carreira chamada docência universitária

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Ilustração: Luppa SilvaEm vez de ir direto ao assunto aviso primeiro que o título é emprestado de Jacques Derrida [I], que não tem mais nada a ver com o que segue (embora haja algo de desconstrução aqui), mas o tema é exatamente sobre algo que podemos chamar de estranho e está no centro de uma instituição, que, portanto, também é estranha: a universidade.

Quase milenar, a universidade, um lugar “onde a investigação poderia desenvolver-se de forma independente de qualquer outro poder” (apresentação da universidade de Bolonha em seu sítio na web), desenvolveu-se segundo diversos modelos, passando a mesclar esses modelos, adaptando-os, bem como suas misturas, em diferentes países e tempos históricos. Para quem quiser uma referência breve a essa complexidade, cuja discussão aqui necessitaria de dezenas de milhares de caracteres, recomendo uma palestra de Flávio Ferreira proferida nos rincões limeirenses: “O que é universidade? Uma leitura a partir dos modelos clássicos da universidade moderna e de interpretações sobre a universidade brasileira”. [II] De um modo geral, para o paradigmático reitor da Universidade da Califórnia, Clark Kerr, a universidade aspiraria a ser “tão confusa quanto possível, pelo bem da preservação do incômodo equilíbrio social”. Se não é possível aqui destrinchar os meandros dessa complexidade e sua confusão, posso ao menos apresentar evidências empíricas dela, evidências que são naturalizadas no cotidiano das universidades: as carreiras docentes.

Começando com um exemplo simples: um general é um general, seja aqui, nos Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha ou Rússia. Pouco afeito ao tema, bastou-me assistir a filmes realizados nesses lugares para ver que em todos eles o general manda no coronel, que manda no major, que manda no capitão e assim por diante. Carreira e hierarquia claras, incluindo uma nomenclatura homogênea sem falsos cognatos. E as carreiras civis, a docência, em particular? Houve uma tentativa curiosa de traduzir a simplicidade militar para a sociedade civil, a Tabela de Patentes de “Pedro, o Grande”, czar da Rússia, proclamada em 1722 e que vigorou até a revolução de 1917. Existe uma tradução para o português [III] e lá podemos consultar que um “Professor de academia” ou “Doutor de qualquer faculdade ingressado no Serviço Público” era uma patente de 9ª classe, equivalente a um capitão no exército. Já um presidente de Colégio (reitor?), equivalia a um major-general, patente de 4ª classe. Essa tabela de patentes foi se modificando ao longo dos séculos XVII e XIX, mas não as encontrei para verificar se diferentes níveis de docentes foram incluídos nas equivalências com patentes entre as 4ª e a 9ª classes.

Reprodução
Tabela de patentes promulgada em 1722, na Rússia, durante o governo do czar “Pedro, o Grande”

Deixando de lado essa curiosidade histórica, percorrer as “tabelas de patentes docentes” contemporâneas de diferentes países gera certa apreensão. Nos Estados Unidos temos, em ordem decrescente de hierarquia, o “full professor”, o “associate professor” e o “assistant professor” numa carreira marcada pela busca da efetivação (o “tenure”). Além disso, também temos “research associate”, “lecturer” e “instructor”, que estão fora do “tenure” e, muitas vezes com hierarquias próprias[iv]. Sobram ainda outras categorias, como o “adjunt professor”, à qual voltarei mais à frente.

No Reino Unido é mais complicado com diferentes carreiras em diferentes universidades [V]: “professor”, “reader”, “senior lecturer” e “lecturer”, que, segundo a Wikipédia, equivaleria ao “assistant professor” nas universidades estadunidenses. Em Oxford, no entanto, é diferente, lá se eliminou o nível “reader” e intoduziu-se o “associate professor”, que não é a mesma coisa que o título com o mesmo nome nos Estados Unidos, que equivaleria ao “senior lecturer” britânico.  Além dessa, existem ainda outras duas carreiras: “research career pathway” e “teaching career pathway”.

Indo para a França, nota-se uma terceira estrutura da carreira docente por lá, com hierarquias de postos efetivados (tenured) e não efetivados. Entre os efetivados o “Professeur des universités” está à frente do “Maître de conférences”, que precisa fazer a “habilitation” para orientar doutorados e com isso se candidatar ao nível acima. Essa habilitação não existe nos EUA nem no RU, mas existe na Alemanha, que apresenta ainda outro tipo de carreira, que é ainda mais complicada, apesar da reforma recente [VI]. Mas o caso mais peculiar é o “Privatdozent”, que seria (mas não é) o nosso livre-docente. A “habilitation” na França e na Alemanha equivale ao nosso concurso de livre-docência, que só existe no Brasil nas universidades estaduais paulistas, tendo praticamente desaparecido nas universidades federais.

São necessárias ainda algumas peças para compor o quebra-cabeças ou, pelo menos, uma quadrilha. A carreira universitária nas universidades estaduais paulistas tinha a seguinte hierarquia (a partir do doutorado) até o ano 2000: professores assistente doutor, livre-docente, adjunto e titular. Neste século passou a ser: professores doutor, associado e titular. Desapareceu o livre-docente, mas para ser associado precisa ter o título de livre-docente. Nas federais a ordem é: adjunto, associado e titular. O adjunto das federais não tem nada a ver com os antigos adjuntos das paulistas, que não tem nada a ver com os adjuntos nos Estados Unidos e o associado não precisa da livre-docência.

O título de livre-docência tem sua origem na Alemanha, é o tal do Privatdozent por lá, e sua história no Brasil pode ser conferida em um manifesto em sua defesa  [VII]. Mas o que é um Privatdozent hoje na Alemanha? Autor de uma segunda tese (pós-doutorado) que se habilita para a carreira acadêmica, mas hoje, por aquelas bandas, a segunda tese perde para os doutores e pós-doutores com maior número de artigos sem a habilitation, seguindo uma tendência mundial. No entanto, o Privatdozent tem que dar aulas e orientar em universidades para não perder o título e muitas vezes não é pago para isso. Para se sustentar, quando não for pesquisador em alguma instituição de pesquisa com permissão para se associar dessa forma a uma universidade, tem que ter um emprego de meio período, como garçons ou garçonetes, por exemplo. Artigos que esmiúçam essa situação são frequentes na imprensa alemã. Só em Berlim são milhares e parece que o sistema de ensino superior não funcionaria sem eles. É o professor adjunto nos Estados Unidos e parecido com o nosso Professor Colaborador Voluntário, que aqui, porém, não está associado a nenhum título.

Então vejamos: o que era adjunto nas universidades paulistas passou a ser associado, como nas federais. O adjunto nas federais não tem nada a ver com o adjunto nas estadunidenses, que tem algo a ver com o “privatdozent” na Alemanha, que não tem nada a ver com o associado no Brasil, que na Inglaterra seria talvez “senior lecturer” (dependendo da universidade), mas na França não seria nem “professeur des universités, nem “maître de conférences” sem a “habilitation”. Lembra a Quadrilha de Carlos Drummond de Andrade.

Enquanto o poema do grande poeta é bom, a paródia do parágrafo acima não representa algo bom nem ruim, construções históricas são o que são. Docentes de universidades com carreiras diferentes quando colaboram entre si não precisam de uma “tabela de conversão de patentes”, os ritos dos colégios invisíveis das ciências são outros. E essas particularidades e peculiaridades, quando comparamos países ou mesmo instituições dentro de um país, talvez façam parte da confusão necessária, quando Clark Kerr a enunciou há 40 anos ou mais. No entanto, de lá para cá, as universidades que eram consideradas organizações únicas, diferentes das outras, passaram a enfrentar a tendência de transformá-las em organizações como essas outras, eficientes, bem geridas, “accountable”. No artigo, cujo título é “Universidades são organizações específicas?" [VIII], a autora responde ao final que sim, e a diversidade de carreiras docentes engendradas mundo a fora apresentada aqui é um exemplo disso. Práticas de gestão são bem-vindas, mas seus promotores precisam entender essa confusão que continua, lembrando que a universidade é um lugar “onde a investigação deve [IX] desenvolver-se de forma independente de qualquer outro poder”.  Talvez uma universidade possa até ser comparada a outra instituição: um bom restaurante. Uma coisa é gerenciar o estoque, folha de pagamento ou o caixa. Outra coisa é conceber os pratos, executá-los e servi-los de forma agradável ao público. Um bom restaurante começa pelo cardápio e não pela gestão de comandas.

 


 

[I]  Trata-se do livro-entrevista “Essa estranha instituição chamada literatura”.

[II] https://prezi.com/aoq6fgv6rhbf/o-que-e-universidade/?utm_campaign=share&utm_medium=copy

[III] http://lea.vitis.uspnet.usp.br/arquivos/russiaoh_lea.pdf

[IV] https://en.wikipedia.org/wiki/Academic_ranks_in_the_United_States

[V] https://en.wikipedia.org/wiki/Academic_ranks_in_the_United_Kingdom

[VI] https://en.wikipedia.org/wiki/Academic_ranks_in_Germany

[VII] http://files.bvs.br/upload/S/1413-9979/2011/v16n2/a2059.pdf

[VIII] http://spire.sciencespo.fr/hdl:/2441/f0uohitsgqh8dhk97i622718j/resources/musselin-towards-a-multidiversity-4.pdf

[IX] Mudei o verbo nessa segunda citação à frase entre aspas.

 

 

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