Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Era uma vez ciência e encantamento

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O que chamamos de ciência começou a estruturar-se no século XVII e, no século seguinte, falsas oposições entre “conhecimento útil” (ou seja, o científico) e o mundo fantástico, como o dos contos de fadas, já se estabeleceram. Não eram poucos os que asseveravam que contos de fada não só eram irrelevantes como também perniciosos no “Século das Luzes”. Outras vozes e letras se insurgiram, defendendo que o “nada além de fatos” levaria ao fim da imaginação. Essa oposição virou chave de interpretação, durante um bom tempo, para o papel da ciência no século XIX, chave que não se sustenta, segundo instigante livro de Melanie Keene: Science in Wonderland (tradução livre: Ciência na terra da fantasia). A leitura do livro, de fato, leva-nos a perceber a complexidade das relações entre ciência e fantasia naqueles tempos. Outras fontes e lembranças também remetem a isso. Charles Dickens denunciava no romance Tempos Difíceis a formação de pessoas baseada apenas em fatos sem fantasia.

E não custa lembrar que Lewis Caroll, autor de Alice nos País das Maravilhas, era um matemático da Universidade de Oxford. Talvez o maior manifesto contra o banimento da fantasia seja o romance Paris no século XX, de Júlio Verne, escrito em 1863 e engavetado por mais de um século nos arquivos do seu editor, que achou o texto muito ruim. Na obra, o protagonista Michel é um poeta remanescente e desajustado em um mundo dominado pelas “ciências mecânicas”. Esses exemplos, no entanto, não passam de temperos para um prato cheio de outros ingredientes. Vejamos mais alguns deles. Apesar daquelas vozes contrárias do Século das Luzes, contos de fadas vieram com força na primeira metade do século XIX, sendo que os clássicos dos Irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen continuam populares até os dias de hoje (meu pai os lia para mim antes de dormir e, décadas depois, fiz o mesmo com meus filhos). Contos de fadas foram, naqueles anos, criados, adaptados, recriados, ressignificados. Nesse caldo surgem também as “fadas da ciência”.

Na Inglaterra do século XIX a ciência passou a ser disseminada, discutida e criticada em diferentes gêneros literários, incluindo os contos de fadas. Nas palavras de Melanie Keene, na introdução do seu livro: “Os contos de fadas da ciência desempenharam um importante papel na compreensão de novas disciplinas científicas, na celebração de novas descobertas, na crítica de ambições arrogantes, em inculcar hábitos e na atenção do que a ciência era e deveria ser”. Entre as fadas da ciência, podemos pinçar o livro Real Fairy Folks, or, The Fairy Land of Chemistry: Explorations in the World of Atoms (tradução livre: O Reino das Fadas da Química: Explorando o Mundo dos Átomos), escrito pela educadora, assistente social e médica norte-americana Lucy Jane Rider Meyer (1849-1922) e publicado em 1887. Nesse seu livro de Química para crianças, os átomos viram fadas, com roupas e asas diferentes para cada elemento químico e tipo de ligação química. A imagem introdutória do livro ilustra fadas interagindo com instrumentos científicos. Ao longo do livro, as moléculas são ilustradas como abraços de fadas, como a da água, com duas fadas hidrogênio e uma oxigênio, imagens entremeadas por exemplos de experimentos simples que podiam ser realizados com materiais do cotidiano dos lares.

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Lembro-me da minha infância, quando eu acreditava que fadas podiam ser minúsculas e invisíveis a olho nu, vivendo nos tufos de musgo no quintal de casa. Pensando bem, uma boa imagem para os átomos do livro, que não conhecia e tem como título alternativo Fadas Reais. Essa história toda é encantadora, mas será que não carrega um tanto de anacronismo? Faz sentido divulgar ciência para crianças com contos de fadas no século XXI? A questão não é essa. Os recentes ataques à ciência e ao negacionismo levaram cientistas às trincheiras da resistência, mas não podemos esquecer o personagem satirizado por Charles Dickens, o Sr. Gradgrind, o superintende escolar com seu mote: “Agora, o que eu quero são fatos. Ensine a esses meninos e meninas nada além de fatos!”. Cientistas, no entanto, gostam de contos de fadas, são fãs ardorosos de Guerra nas Estrelas e do Senhor dos Anéis, por exemplo. Neste último caso, não são oposições que não se conversam. Julie Beck comenta o “Caso de amor entre a ciência e o Senhor dos Anéis” em artigo deste século. Várias novas espécies foram batizadas com nomes inspirados nos personagens da saga de J. R. R. Tolkien, bem como asteroides e uma cratera em Mercúrio, que receberam o nome do autor. Ou ainda um espectrógrafo para estudar certas galáxias (Sauron).

O caso de amor vai além, como a autora do artigo publicado na The Atlantic aponta. Artigos publicados em periódicos acadêmicos dedicam-se a entender cientificamente como seria viver na Terra Média. Esse enamoramento sugere que também no nosso século ciência e encantamento podem se entrelaçar. Talvez seja hora de passar isso para a comunicação científica. A luta contra as fake news e desinformação precisa continuar, mas não podemos esquecer o encantamento com a ciência.

P.S.: Escrevi este texto no domingo depois do almoço, 8 de janeiro de 2023, alheio ainda aos atos terroristas em Brasília. Portanto, uma ressalva: na luta contra o fascismo e seus atos de terror não cabem imagens de fadas e encantamento, mas cabe, sim, nada além da dura apuração e punição

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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