Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Carta ao editor da The Lancet

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Como quase todo mundo, prestei enorme atenção ao artigo publicado em sua revista e que há pouco foi retratado. É uma pena, não sou ilustrado na área do conhecimento do artigo, mas tenho uma certa experiência sobre literatura científica. No dia anterior à publicação de um manifesto/abaixo-assinado criticando o referido artigo, escrevi uma coluna em que fazia uma critica muito tímida. Caro editor, acrescente aos artigos de sua revista a data de submissão, revisão e aceite, como todas as revistas que eu conheço fazem, mas que não notei na sua. O que eu notei, mas não escrevi então, é que o peso do resultado anunciado pedia a divulgação dos famosos materiais suplementares. É o que revistas, de impacto menores que a sua, fazem para evitar suspeições.  

Para subsidiar o meu ponto de vista, compartilho com o senhor alguns excertos de artigos de divulgação científica, que venho cometendo há uns três anos. Estão em português, mas talvez possamos nos fiar no Google Translator, afinal o rigor anda relativizado. 

Começo com uma citação direta de um conterrâneo seu, mas de outra área do conhecimento, o saudoso John Ziman, que usei no texto “O ethos e seus predadores” de 20/9/2017. Dizia assim: 

“Cientistas conhecem filosofia e sociologia como peixes conhecem água. Eles entendem instintivamente como viver nela sem se darem conta que assim o fazem. Isto é, até que o aquário é agitado ou (o horror!) é entornado. Parece que estamos vivendo exatamente desse jeito. Ciência está sendo agitada e forçada a abandonar muitos dos costumes até então apreciados. Nós precisamos pensar seriamente sobre o que está acontecendo e o que devemos fazer, não para meramente sobreviver, mas para servir e deleitar a humanidade.” 

A observação de Ziman é de 1996. Eu emendo outro trecho, obedecendo uma ordem cronológica, do texto “Referências não lidas, copiadas ou inexistentes: pelo rigor na ciência”, de 5/12/2017. O ‘mistérios’ ali refere-se a citação de artigos que não existem, mas o que você editou existe e já foi citado 20 vezes em pouco mais de uma semana. 

“...um sistema acadêmico que incentiva a quantidade de publicações acaba evocando a lei dos grandes números, tornando esses ‘mistérios’ numerosos o suficiente para serem visíveis. Harzing ainda comenta que menos mal que esse artigo tão citado não existe; pior seria se fosse um artigo real citado tantas vezes erroneamente. Esse na verdade é o nosso terceiro caso: artigos retraídos (retracted), seja por erro, fraude ou plágio e que continuam sendo citados após as suas retratações. É o que discute um artigo recente na revista Scientometrics [VII]. Aí sim temos ideias, hipóteses, dados e conclusões no mínimo questionáveis sendo propagadas”. 

Sigo em frente, sempre tentando me preocupar com o ethos e o rigor. Pulo para abril de 2018 e extraio um trecho de “Falsa ciência ou pós-ciência”, publicado na revista Comciência, no qual modestamente observo: 

“A ciência é uma atividade humana como outra qualquer. Assim uma sociedade que se vê envolvida por notícias falsas e pós-verdades, consumindo-as e produzindo-as, dificilmente teria uma parcela dela (a ciência) protegida dessas agressões. Por outro lado, a ciência goza de enorme credibilidade, mas arrisca perdê-la. Os cuidados a serem tomados estão na própria proclamação de seus métodos e princípios, agora disseminados ao público geral graças, ironicamente, às fake news. Desconfio que o relaxamento quanto a esses princípios seja devido ao tempo necessário para respeitá-los, que se confronta com a dinâmica acelerada contemporânea da produção científica”. 

Não quero me alongar nessa carta, mas não consigo evitar de mencionar uma coluna que me deu dor de cabeça, mas que felizmente pude esclarecer em conversas com pessoas que estimo. O nome é sugestivo: “Excelência é besteira”. Gosto mais da besteira no original, pois emprestei o título do de uma palestra “excellence is bullshit” de Cameron Neylon, que cito devidamente na minha besteira. Se quiser ver a íntegra é só por meu nome e o título no Google. Vamos ao trecho, pois imagino que sua revista seja sinônimo dessa excelência (peço perdão antecipado pela extensão): 

“Tendo em mente a pesquisa, de um modo geral, excelência significaria publicar bastante em revistas de impacto, gerando muitas citações. Os autores do artigo na Nature [é o do Cameron e colegas], no entanto, perguntam o que o termo realmente significa, apesar do seu peso político na construção de reputações e na disputa por recursos escassos. O longo texto revela a ausência de significação epistêmica desse termo tão frequente nos discursos e argumenta que ‘excelência não é excelente’ e, além disso, ‘seu uso não qualificado seria uma retórica perniciosa e perigosa, que abala os próprios fundamentos da boa pesquisa e erudição.’” 

“A desconstrução é contundente e subsidiada por estudos prévios, devidamente citados, para cada questão colocada. A primeira é justamente sobre o que seria excelência. Separar o joio do trigo, ou seja, o não excelente do excelente, ‘diz pouco sobre a importância da ciência em si, mas muito sobre quem toma as decisões’. Para pular para a segunda questão, reproduzo uma citação direta:” 

“ao usar um sistema humano de filtragem, a coisa mais importante sobre a qual precisamos ter informações não é tanto sobre o dado a ser filtrado, mas sim sobre o filtro humano em si: quem toma as decisões e por quê. Portanto, em um sistema de revisão por pares, a atividade crítica não é a revisão dos artigos que são publicados, mas a revisão dos revisores.’ [III]” 

Com tudo isso em mente, me lembrei de outra coluna que também deu certa dor de cabeça, pois afinal como um cientista pode levar o filósofo Paul Feyerabend em consideração? Talvez pelo que já observei acima, não é mesmo? Assim, volto à “O filósofo e a anticiência”, de fevereiro de 2020, pouco antes da pandemia chegar ao Brasil, pandemia que requer tanta informação qualificada não é mesmo? Escolho o trecho pela frase final que usa a palavra “castiça”, “chaste” em inglês. 

“Minhas simpatias pelo filósofo austríaco me levam a não o interpretar como um devoto da astrologia ou do criacionismo no lugar da ciência, mas sim um crítico de como a ciência muitas vezes se apresenta ao público: racional, objetiva, verdadeira, neutra e sem falhas. E, implicitamente, alertando sobre as possíveis consequências dessa apresentação castiça”. 

Assim me despeço, esperando poder contribuir para a “ciência no novo normal”. Felizmente existem vários outros estudos mostrando de fato o que esse que foi retratado pretendia. Um deles, aí de quatro dias atrás, é assinado, inclusive, por pesquisadores da universidade francesa em que trabalhava o causador de todo pandemônio. Passo o link para sua avaliação: https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.06.01.20118901v1  

Ah sim, talvez o artigo que estava na sua revista tenha passado por revisão “fast-track”, mas não dá para saber, pois não tem aí as datas, lembra do meu comentário no comecinho dessa carta? Mas não é desculpa. Então volto no tempo para a coluna de 10/08/2018, onde o tal Cameron Neylon aparece também, “Lei de Moore da publicação científica?”: 

“Advertência de Neylon: revisão por pares tem a ver com quantidade e não qualidade. A linha fina do artigo no Times Higher Education alerta: ‘revisão por pares não deve ser tratada como vaca sagrada’. A experiência que eu narrei parece concordar com o aviso de Neylon e o conselho de não sacralizar o processo que se transformou, pois “debates” entre revisores e autores reduzem o ritmo de publicação. A “lentidão” do processo (mesmo sem “debates”) fez emergir a revisão “fast-track” para publicar rapidamente o que seria de interesse imediato: publica-se em até 72 horas, mas com a mesma qualidade na revisão. Alega-se”. 

E aqui, meu caro, entra a responsabilidade do editor. 

Atenciosamente, 

Peter Schulz 

 

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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