Foto: Antoninho PerriJosé Alves de Freitas Neto - Professor livre-docente do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador executivo da Comissão Permanente para os Vestibulares (Comvest). Autor de “Bartolomé de Las Casas: a memória trágica, o amor cristão e a memória americana” (Annablume) e coautor de “A Escrita da Memória” (ICBS) e “História Geral e do Brasil” (Harbra). É autor de diversos artigos e capítulos sobre cultura e política na América Latina (séculos XIX e XX).

 

Obscurantismo e mordaça na educação

Edição de imagem


Ilustra: luppa Silva Os fungos que se espraiam sobre a superfície nem sempre são visíveis, mas são devastadores. A imagem construída por Hannah Arendt (1906-1975) é pertinente para os dias que correm no Brasil. A “banalidade do mal”, exposta em Eichmann em Jerusalém (1963), é próxima das pessoas e suas lógicas insensatas e cúmplices diante de uma catástrofe que se anuncia. A sociedade brasileira, se vingar a proposta da “escola sem partido”, será a própria expressão de estar entregue a pessoas comuns que em sua mediocridade e superficialidade são capazes de causar males avassaladores. Em torno do combate à suposta doutrinação praticada por professoras e professores contra estudantes indefesos está o projeto capaz de destruir o presente e o futuro da educação no país.

A comparação entre Eichmann, um burocrata do nazismo, e o movimento da “escola sem partido” pode parecer desproporcional ao associar experiências distintas historicamente. Mas, como estratégia de pensamento e de formulação, há aproximações evidentes. Em ambos, um procedimento comum: a destruição da pluralidade, da diversidade, da vida política e a sedução das “pessoas de bem” que se apresentam sem nenhuma carga de monstruosidade, mas são capazes de aniquilar as liberdades e as diferenças que são premissas da tradição republicana e democrática.

Ao deturpar regras, estimular o obscurantismo e ignorar as dinâmicas da realidade escolar – complexa, contraditória, desigual e polifônica – o projeto em questão é apresentado como uma salvaguarda da sociedade e dos bons costumes. Nada mais falso. Ao expor professoras e professores como alvos a serem denunciados em suas práticas pedagógicas, o movimento revela sua estratégia autoritária e intimidatória que defende, na prática, a mordaça disfarçada por trás da sedutora ideia de imparcialidade. Toda escola, como microcosmo da sociedade, expressa um amplo espectro ideológico, pedagógico, político, didático, científico, artístico e cultural.

Foto: Reprodução
Manifestantes durante sessão da Câmara de Campinas, no último dia 4: vereadores aprovaram o projeto “Escola sem Partido” em primeira votação | Foto: Valério Paiva

A inconstitucionalidade da proposta, como já manifestado em decisão liminar do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), em relação ao projeto aprovado em Alagoas, não inibe os defensores da “escola sem partido”. E, para além da questão legal, há relatos constantes de professores sendo ameaçados por dirigentes escolares, pais e causando um constrangimento imenso ao trabalho docente, inclusive com a demissão de professores. Há um desdobramento efetivo no cotidiano de pessoas que estão nas escolas.

Às professoras e aos professores, por piores que sejam suas condições de trabalho, foi atribuída uma função “doutrinadora”, subversiva e destruidora de lares e reputações, segundo os formuladores da “escola sem partido”. A competência do magistério está sendo questionada, mais uma vez, como se suas e seus profissionais fossem pessoas amadoras fazendo proselitismo político. Na escola, é necessário repetir, lidamos com ideias e questionamentos a postulados filosóficos, científicos, sociais e culturais. E não apenas na área das humanidades, notadamente, o campo mais vulnerável aos ataques do espectro de censura que ronda o país.

Quem conhece a realidade da maioria das escolas brasileiras, públicas e privadas, sabe das dificuldades das professoras e professores e o desprestígio enfrentado pela docência. A “escola sem partido” quer intensificar o descrédito de docentes e coibir o trabalho desses e dessas profissionais. Aparentando neutralidade, o projeto em questão é carregado das marcas ideológicas mais obscuras e pretende aniquilar a politização e a participação na vida pública. A política, tal como concebida e originada entre os gregos, é debate, é contradição, é argumento e construção de consensos possíveis em torno do bem comum.

 

A fragilidade dos saberes diante do obscurantismo

O conhecimento é sempre transitório e está fadado a contínuas reelaborações e superações. As descobertas científicas, por exemplo, são superadas em maior ou menor velocidade a depender das áreas e das condições de produção e circulação dos saberes. Esse aspecto é um dos mais belos estímulos aos cientistas, pesquisadores e professores. As certezas de uma época são solapadas pelas gerações seguintes ou reafirmadas em outras bases. Para que o conhecimento possa ser transformador, ele precisa ser estimulado na tarefa básica de exercer a dúvida, de contextualizar questões e evitar a propagação do dogmatismo de qualquer natureza.

A tarefa de pensar é o maior atributo que a escola deve estimular. Não é fácil falar de classes gramaticais, das leis da física, de gêneros textuais, da experiência colonial, de algoritmos, da genética e tantos outros temas para crianças e jovens. Mas todos os saberes que compõem a base do repertório curricular originam-se a partir de perguntas e questões que estimulam a reflexão e estão relacionadas a mudanças na vida dos povos, sociedades e indivíduos.

O projeto de lei que ameaça a liberdade de ensino e restringe a liberdade de expressão de professoras e professores procura apresentar-se como salvaguarda do “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, da “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado” e da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”.

Entretanto, junto com essas afirmações extraídas de seu documento oficial há mecanismos para a construção de um ambiente hostil a professoras e professores e propício a denúncias anônimas. Instaura-se a suspeição e rejeita-se a confiança necessária no espaço escolar. O projeto de lei prevê que pais e estudantes denunciem, sem identificação, o que consideram ser o descumprimento da lei. A inquisição, os regimes totalitários, o macarthismo e as ditaduras, por exemplo, usavam o expediente do anonimato e provocaram perseguições e execuções em nome de interesses variados. A famigerada proposta da “escola sem partido” impõe a inversão dos princípios basilares do direito moderno e reaviva episódios de triste e dolorosa lembrança. Na democracia, as diferenças devem ser tratadas com transparência e de forma pública.

A proposta estimula a autocensura e o desaparecimento do potencial crítico que se deseja na educação e na formação de crianças e jovens. A escola amordaçada estaria mais próxima do obscurantismo e do conhecimento pautado na autoridade policialesca que teriam coordenadores, diretores e dirigentes de ensino.  Se há dúvidas em relação ao obscurantismo, basta ler como a proposta menciona a questão do respeito à educação religiosa e moral oferecida pela família. Será que professores estão numa cruzada secular contra o pensamento religioso? Quantos docentes não professam algum tipo de crença? Será que católicos, evangélicos, espíritas, umbandistas e outras confissões ou mesmo os ateus estão na escola como estratégias missionárias? Isso ofende até o senso comum.

Ao amparar-se na defesa da moral e da religião o que se pretende? O que revela tal preocupação? Que o darwinismo não seja ensinado? Será que, em pleno século XXI, há pessoas que supõem que seus filhos não professam os mesmos princípios religiosos e morais dos pais por causa do discurso científico ou de uma crítica sociológica feita por algum professor? É curioso como os fundamentalismos religiosos são criticados do outro lado do mundo, mas constrói-se um sistema de cumplicidades entre políticos conservadores e pessoas amedrontadas diante do nosso nariz. O que diriam os meios de comunicação, que salvo exceções não comprou esta batalha ao lado de educadoras e educadores, se suas produções artísticas, humorísticas e noticiosas tivessem que ser enquadradas na lógica da escola sem partido? Censura ou apartidarismo?

O obscurantismo não está associado apenas ao discurso moral e religioso: ele também é político e estético. Nas últimas semanas, dois assuntos tiveram destaque nas discussões das redes sociais. Num deles, a questão sobre o nazismo ser ou não de esquerda. É incrível como apenas e tão somente nas redes sociais brasileiras isso seja algo a ser considerado. Não há ninguém com mínimo critério e conhecimento que possa argumentar em torno dessa falácia e negar que o nazismo, embora tenha o nacional-socialismo no nome do partido de Hitler, seja a expressão mais radical da extrema-direita. O outro assunto foi o encerramento de uma exposição de arte queer no Rio Grande do Sul. A arte, com o potencial de incomodar e produzir outras visões de mundo, desgostou um grupo reacionário e de eficiente atuação na política e na mídia brasileira que, contrariado, exigiu o fechamento da mostra no espaço cultural de um grande banco privado. Foi a evidência de um sistema de patrulhamento camuflado pela defesa do “meu gosto individual”.


A necessidade de defender o óbvio

A “escola sem partido” é ofensiva por desconsiderar que os princípios de uma educação republicana (tratamento isonômico e de igualdade de oportunidades) e democrática (liberdades e direitos plenos) só pode ser realizada com autonomia, crítica e pluralidade. Qualquer forma de cerceamento é absurda e deveria ser rejeitada pelos diferentes grupos sociais e políticos. A criminalização do espaço escolar e das práticas educacionais é um mecanismo de dominação pública que nos aproxima de práticas de vida tirânicas.

A educação escolar, como questão pública, não pode ser refém de projetos e devaneios que impõem ao outro a impossibilidade de existir e de se manifestar. Restringir o acesso a informações, questionamentos, acervos culturais e científicos são uma forma de perpetuar a desigualdade de oportunidades.

Quando o padrão legal, como pretendido na “escola sem partido”, é a base para impedir discussões sobre a transformação da sociedade pela educação, é sinal de que não somos mais uma sociedade. Parte da argumentação da “escola sem partido” ao acusar a escola de doutrinação está associada aos esforços de se promover, a partir da Constituição de 1988, uma educação pautada nos direitos humanos e no combate a preconceitos sociais, étnico-raciais, de gênero, regionais e outros. Os mecanismos de controle sobre educadoras e educadores não podem perpetuar a misoginia, o racismo, a homofobia e qualquer forma de educação que apague o respeito às diferenças e a expectativa de construir um outro futuro.

A hipotética vitória do projeto da “escola sem partido” será a evidência do fracasso da educação como projeto transformador das pessoas e da sociedade. Seremos uma sociedade desesperançada e destruída. E não há educação, com o sentido que o termo indica, que não carregue consigo a esperança, mesmo trilhando entre tantas incertezas.

 

twitter_icofacebook_ico