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"Em poucos traços" é uma coluna assinada por Alexandre Soares Carneiro, professor assistente doutor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).

alex@unicamp.br

Precisamos falar sobre o textão

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Em “O antiprofeta”, o escritor romeno Emil Cioran sentenciava: “Em todo homem dorme um profeta e, quando ele acorda, há um pouco mais de mal no mundo…”.  Décadas depois, em uma auto-avaliação pouco complacente, o autor destacaria esse capítulo como um dos mais representativos do Breviário de Decomposição, de 1949, sua primeira obra em língua francesa. Com variantes, o fenômeno que então descrevia pode ser observado ainda hoje. É o que me ocorre ao ler passagens como as transcritas abaixo:

Cada um espera seu momento para propor algo: não importa o quê. Tem uma voz: isto basta.

Dos esfarrapados aos esnobes, todos gastam sua generosidade criminosa, todos distribuem receitas de felicidade, todos querem dirigir os passos de todos.

Se tivéssemos o justo sentido de nossa posição no mundo, se comparar fosse inseparável de viver, a revelação de nossa ínfima presença nos esmagaria. (...) Quem, com a visão exata de sua nulidade, tentaria ser eficaz e erigir-se em salvador?

Por mais eloquentes que possam soar tais avisos, é decepcionante verificar que não há apelo à lucidez capaz de inibir a proliferação de salvadores ruidosos, ou dos denunciadores inquietos que levaram adiante sua tocha missionária. Conhecendo o autor, sabemos que ele invocava uma forma oposta de redenção, sem ilusões a seu respeito: “Não há salvação possível fora da imitação do silêncio. Mas nossa loquacidade é pré-natal. Raça de tagarelas, de espermatozoides verbosos, estamos quimicamente ligados à Palavra” – como lemos em Silogismos da Amargura, de 1952.

A partir desse livro, Cioran privilegiará uma expressão mais econômica, menos incompatível com o silêncio. A Concisão é erigida em princípio moral e estratégia crítica: um decoro tão elegante quanto virulento, que pressupõe o domínio de formas breves, diretas, contundentes (“Modelos de estilo: a praga, o telegrama, o epitáfio”). Mas o paradoxo permanece, pois a ira contra os múltiplos avatares da prédica anima nele um profetismo de sinal invertido, como diagnosticou na mencionada auto-avaliação:

De fato, eu reagia como profeta, me atribuía uma missão, dissolvente se quiserem, mas, ainda assim, missão. Atacando os profetas, atacava eu mesmo e... Deus, segundo o meu princípio, da época, de que deveríamos tratar só Dele e de nós mesmos. Daí o tom uniformemente violento de um ultimato (não sucinto como deveria ser, mas prolixo, difuso, insistente), de uma intimação dirigida ao céu e à Terra, a Deus e aos sucedâneos de Deus, em suma, a tudo. No furor desesperado dessas páginas em que inutilmente se buscaria um pouco de modéstia, de reflexão serena e resignada, de aceitação e de repouso, de alegre fatalismo, atingem o seu apogeu o arrebatamento e a loucura da minha juventude, assim como uma irrefreável volúpia de negar. (“Relendo”, in Exercícios de admiração, 1986).

O destino dessa volúpia negativa será voltar-se ironicamente contra si mesma. “Um livro que, após haver demolido tudo, não se destrói a si mesmo, exasperou-nos em vão.” (Silogismos da Amargura). Pensar, de vez em quando, contra o profeta que se agita em nós, silenciar por um instante sua voz, seria um triunfo sobre nossas ilusões olímpicas. Como anota em um de seus cadernos, “Tudo aquilo que não é vitória sobre si mesmo é derrota.” (Cahiers, 1957-1972).

Eis, de todo modo, a situação daquele que se indigna contra o prestígio atual da indignação. Ele se inquieta ao notar que, por algum motivo, uma atitude eminentemente anti-intelectual tornou-se recorrente nas mídias, nos vestibulares, nas escolhas acadêmicas. Nuances, ambiguidades, a complexidade da vida real fora dos palanques: frivolidades de quem ignora a urgência de se corrigir o mundo. “Precisamos falar sobre x…”, profere o ativista digital. Ecoando esse clima, os cartazes na universidade nos lembram de que “não basta não ser y, é preciso ser anti-y”. Até o quietismo torna-se suspeito, pois, eventualmente, “seu silêncio é cúmplice de z”. Mas quão vergonhosa não seria nossa derrota se imitássemos o tom culpabilizante e intimidatório dos missionários do bem?

Esse excesso de gravidade e certezas é incômodo sobretudo quando coloniza a vida intelectual, pois alimenta uma ilusão de relevância desmedida, inibe a crítica e promove o espírito auto-congratulatório. Nietzsche dizia que as convicções são prisões, mais perigosas para a verdade do que a mentira; e que ninguém mente mais do que a pessoa indignada. Cioran avaliava que a convicção, além de deletéria para o espírito (“A inteligência só floresce nas épocas em que as crenças fenecem”, escreve no Breviário de Decomposição), é incompatível com uma escrita conscienciosa. Ele, que dizia escrever movido por acessos de raiva, notabilizou-se por sínteses lapidares, algumas delas sobre a própria questão do estilo:

Com certezas, o estilo é impossível: a preocupação com a expressão é própria dos que não podem adormecer em uma fé. Por falta de um apoio sólido, agarram-se nas palavras – sombras de uma realidade –, enquanto os outros, seguros de suas convicções, desprezam sua aparência e descansam comodamente no conforto da improvisação (Silogismos da Amargura).

Há pouco mais de dez anos, a indignação tornou-se palavra de ordem de um movimento de alcance mundial. Seu caráter essencialmente emotivo repercute ainda hoje, em derivações frequentemente agressivas. Inflamada pelas redes sociais, a indignação continua inatacável e espanta que alguns lhe atribuam valor educativo. Sua forma literária é o textão, gênero sem limites, sem modelos e acessível aos mais ineptos. Todos escrevem, mas com mão pesada, fiando-se no vocabulário pomposo dos clichês.

Sonhaste em incendiar o universo e sequer foste capaz de comunicar tua chama às palavras, de acender ao menos uma! (Silogismos da Amargura).

Será nosso silêncio cúmplice dos opressores da reflexão, da delicadeza e da beleza literária?  Ou será ele a condição para a elaboração da palavra significativa? Até lá, que nos socorra o mestre franco-romeno, na tarefa de lembrar do fracasso estilístico e intelectual que ronda toda inclinação missionária.

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