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"Em poucos traços" é uma coluna assinada por Alexandre Soares Carneiro, professor assistente doutor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).

alex@unicamp.br

Ler e Escrever

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É comum um escritor recorrer ao seu histórico como leitor, e às demais experiências de sua formação cultural, para tentar entender, a partir das origens, o percurso que lhe permitiu conquistar uma voz autoral e o status correspondente. Prêmio Nobel de Literatura de 2001, o romancista V. S. Naipaul (1932-2018) retomou, em seu discurso de agradecimento à Academia Sueca (“Dois mundos”), reflexões sobre o tema apresentadas no ensaio “Ler e escrever” (1998). Nesses textos podemos identificar os dilemas daquele que, mesmo em um nível mais banal, aspira a se tornar um escritor - alguém apto a elaborar um texto com eficácia pública (que atinja o leitor e se conecte com ele) mas que também responda a um desejo de satisfação privada (isto é, que se conecte com o próprio autor). É o que apreendemos da passagem do Contre Sainte-Beuve, de Proust, que Naipaul cita ao final do discurso:

“As belas coisas que devemos escrever, se tivermos talento, estão dentro de nós, indistintas, como a memória de uma melodia que nos deleita mesmo que sejamos incapazes de recuperar seus traços [...] Aqueles que são obcecados por essa memória turva de verdades que nunca conheceram são os homens dotados. Talento é uma espécie de memória que permitirá que eles finalmente tragam essa música indistinta para mais perto, ouçam-na mais claramente, escrevam-na.

Naipaul pondera que, mais que o talento, contam aí a sorte e “muito trabalho”; o que, no seu caso, parece evocar também aquilo que os psicanalistas chamam de “elaboração”. Ele revisita eventos inspiradores e traumáticos que o aproximaram ou o afastaram (caso das leituras escolares) de certos tipos de envolvimento com os textos. Das narrativas que ouvia do pai em sua infância aos arquivos imperiais em que descobriu parte recalcada da história da ilha natal, são intuições, dificuldades (como os fatais bloqueios criativos) e acasos que se combinam em uma biografia reinterpretada a partir da experiência bibliográfica.

Autores são, em primeiro lugar, leitores, e é esse seu passado de leituras, essa “influência”, que eles devem equacionar para adquirir uma voz própria. O “escritor comum” passa por um processo semelhante: ele também destila, ainda que de forma menos consciente e intensa, sua vivência de leitor, marcada por caprichos, dúvidas e implicâncias. O verso memorizado na juventude, o cronista lido de passagem, o trecho grifado por motivos já esquecidos podem integrar-se àquela melodia indistinta que recuperamos para dar um contorno harmônico ao artigo, resenha ou parecer que andava estagnado. Mesmo um e-mail reelaborado com cuidado pode produzir certo contentamento, quando o esforço investido em umas poucas linhas resulta na solução de um problema ou no prazer do leitor.

Em certo sentido, aquele tipo de relato autobiográfico nos conforta, pois nos coloca diante da dimensão tortuosa, às vezes existencialmente angustiante, às vezes simplesmente mesquinha, mas sempre laboriosa, do trabalho de escrita. Descobrir como ela constituiu parte importante da atividade de um autor notável revela também novas facetas de sua produção: dos bastidores povoados por imperfeições humanas e da coragem de revelá-las surgem novos relatos e reflexões.

As investigações retrospectivas de Naipaul remeteram-me aos ensaios de outro autor que vivenciou a dinâmica cultural inglesa entre metrópole e colônia. Em “Confissões de um resenhista” (1945), George Orwell descreve satiricamente o lado pouco charmoso da vida do escritor submetido a regras, prazos e pressões do mercado. Precariamente instalado, escrevendo sobre textos disparatados que lê superficialmente após vencer compreensível aversão prévia, ele vive uma situação conhecida por muitos estudantes universitários: eles também descobrem que “a resenha de livros indiscriminada e prolongada é uma tarefa francamente exaustiva, irritante e ingrata”, pois cabe “inventar constantemente reações a livros frente aos quais não se tem qualquer sentimento espontâneo”.

Já em “Por que escrevo” (1946), Orwell examina um processo semelhante ao exposto por Naipaul, desencadeado, nele também, pela decisão precoce de se tornar escritor, mesmo sem uma noção clara do que isso significava. Desde a infância, porém, percebia-se dotado de “habilidade com as palavras e capacidade para enfrentar fatos desagradáveis”. Na adolescência escreve pouco, mas cria mentalmente narrativas heroicas, expandindo-se em descrições muito detalhadas, provavelmente ecoando o estilo dos autores que admirava. Com o Paraíso Perdido de Milton descobre o prazer sonoro das palavras, firmando-se sua vocação estética.

Para Orwell, “não se pode avaliar o que move um escritor sem a noção de seu desenvolvimento inicial”. Mas as circunstâncias históricas que lhe couberam no período adulto - a opressão colonial, as guerras europeias, os totalitarismos - despertam nele motivações além do entusiasmo estético, contudo nunca abandonado. Ele se dedica, então, ao projeto de “transformar a escrita política em arte”: “Escrevo porque existe uma mentira que pretendo expor, um fato para o qual pretendo chamar a atenção e minha preocupação inicial é atingir um público, mas não conseguiria escrever um livro [...] se não fosse também uma experiência estética.” Não é fácil, admite. “Escrever um livro é uma luta exaustiva, como um prolongado ataque de uma enfermidade dolorosa”.

Como professor, indago-me sobre o potencial pedagógico de tal forma de relato. Poderia ele estimular uma escrita mais pessoal, mais desenvolta, que dialogue com os que compartilham dificuldades semelhantes? A chamada “autobiografia de leitor” ajudaria, talvez, o aluno a rever seu passado de descobertas e frustrações de uma perspectiva de autoconhecimento. Ela também poderia favorecer experimentos novos, mais exigentes. Aliás, pode um estudante de literatura aquilatar a dimensão estética de um texto consagrado se não é capaz de considerar as resistências que deve enfrentar em seu próprio embate com as palavras?

Na tradição vigente até o século XVIII (quando a Retórica ocupava o centro do sistema escolar), a leitura dos clássicos incitava exercícios de imitação. Nossa crença no primado absoluto do original contribuiu para o descrédito do papel formativo, de caráter prático, dos exercícios de escola, enviando a “literatura” para um Olimpo a ser reverenciado. Um percurso pelos domínios menos grandiosos da escrita, em nada incompatível com a frequentação dos autores notáveis e dos gêneros elevados, pode ter o efeito de abertura para uma experiência mais direta com as palavras, reconciliando esses dois caminhos complementares: ler e escrever.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

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