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A fome oculta

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Identificar uma dieta inadequada na gestação e oferecer uma orientação alimentar podem reduzir desfechos indesejáveis

Janieli Galdino Sousa, funcionária do setor de Nutrição do Caism, com refeição destinada a uma gestante
Janieli Galdino Sousa, funcionária do setor de Nutrição do Caism, com refeição destinada a uma gestante

Identificar a carência de nutrientes na dieta de uma gestante e mudar seus hábitos alimentares podem salvar a vida do bebê e mesmo da mãe, além de prevenir a prematuridade e outras doenças, como a pré-eclâmpsia e a diabetes gestacional. Para chegar ao diagnóstico de falta de nutrientes – que caracteriza a fome oculta –, contudo, é preciso seguir os atuais protocolos de avaliação e monitoramento nutricionais no pré-natal, o que demanda a presença de um profissional da área de nutrição, nem sempre disponível em grande parte dos centros de saúde do Brasil.

“Não basta matar a fome e controlar o peso, é preciso nutrir adequadamente”, diz Maria Julia de Oliveira Miele, vencedora do Prêmio Capes de Tese de 2023 na categoria Medicina III, com a pesquisa de doutorado “Associação entre estado nutricional materno e os desfechos gestacionais adversos em coorte de nulíparas de baixo risco”.

“Normalmente, o que a gente vê é a orientação para comer menos, por causa do ganho de peso na gravidez. E a fome oculta?”, questiona Miele. O recordatório alimentar (coleta de dados sobre alimentação), instrumento de análise da dieta, não costuma ser usado no pré-natal. Sabendo que o estado nutricional representa um fator de risco evitável para desfecho adverso da gestação, a pesquisadora escrutinou os hábitos alimentares de 1.500 gestantes – todas em seu primeiro parto –, de cinco centros de saúde diferentes de três regiões do Brasil (Nordeste, Sudeste e Sul), com o objetivo de identificar seus padrões, diagnosticar uma eventual falta de nutrientes e propor formas de reverter a situação de vulnerabilidade.

O professor José Guilherme Cecatti, orientador da pesquisa: chamando a atenção para a epidemia de obesidade
O professor José Guilherme Cecatti, orientador da pesquisa: chamando a atenção para a epidemia de obesidade

Questão mundial

Em 2015, registraram-se mais de 2,5 milhões de natimortos em todo o mundo e 300 mil mulheres morreram por questões relacionadas à gravidez, aponta a pesquisadora em sua tese. Ao abraçar seu objeto de pesquisa, Miele buscou contribuir para a prevenção desse tipo de perdas. Meses após a defesa da tese, a pesquisadora começou a trabalhar como consultora internacional para consumo alimentar da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) e hoje analisa dados de diversos países e seus diferentes perfis de padrão alimentar. Esses dados são publicados em uma plataforma de ciência aberta, utilizada também na criação de políticas públicas. “Isso foi resultado direto do conhecimento que adquiri durante a tese”, confirma a nutricionista.

Na pesquisa, Miele usou como fonte de dados o projeto internacional Preterm Screening and Metabolomics in Brazil and Auckland (em tradução livre, análise e metabolômica pré-natais no Brasil e em Auckland), financiado conjuntamente pela Fundação Bill & Melinda Gates e pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Do projeto participam cinco universidades brasileiras – a Unicamp, a Universidade Estadual Paulista (Unesp), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a Universidade Federal do Ceará (UFC). Somente no Caism – Hospital da Mulher Professor Dr. José Aristodemo Pinotti da Unicamp, outras cinco teses já foram defendidas a partir do mesmo banco de dados.

Orientada pelo médico obstetra e professor José Guilherme Cecatti, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, no Programa de Tocoginecologia do Caism, Miele aborda com profundidade a questão da fome oculta, que não depende necessariamente do peso ou do índice de massa corporal (IMC) da mulher. “A fome oculta ocorre quando a pessoa, mesmo comendo muito e ingerindo a quantidade necessária de calorias, descobre seu corpo faminto de nutrientes. As células estão com fome. Isso inclui o caso de pessoas acima do peso, porque obesidade não significa boa nutrição”, diz a autora da tese. 

Painel

A fim de garantir um mesmo padrão na coleta de dados nos cinco centros participantes do estudo, a nutricionista elaborou um programa de treinamento para avaliação nutricional voltado às equipes de pesquisadores responsáveis por obter esses dados. Dessa inciativa, foi criado um painel detalhado sobre o perfil das gestantes, que tiveram parto e pós-parto acompanhados por pesquisadores, identificando, entre outras coisas, os hábitos alimentares (uma questão multifatorial) dessas mulheres em cada uma das três regiões do país. Criou-se também um biobanco com amostras de sangue e cabelo das grávidas em acréscimo ao banco de dados contendo as medidas antropométricas (de peso), o índice de massa corpórea, as pregas cutâneas e os hábitos alimentares (apresentando os alimentos em si e o cálculo dos respectivos nutrientes).

Segundo a pesquisa, o Sudeste e o Sul registraram resultados mais preocupantes do que o Nordeste. “Percebemos que as gestantes da região Nordeste se alimentam melhor que as mulheres das regiões Sul e Sudeste porque consomem mais alimentos in natura, como frutas e vegetais, além de sementes e castanhas, que contêm selênio e zinco. Em geral, elas comem calorias mais adequadas àquele momento da gestação. No Sul e Sudeste, a grande questão são os açúcares e os alimentos ultraprocessados e industrializados em excesso, que resultam em má nutrição e sobrepeso. Comese muito hambúrguer, presunto e misto quente, mas pouco feijão, arroz e peixe. É uma questão de hábitos. Infelizmente, os bons hábitos alimentares característicos da dieta dos brasileiros estão sumindo do cardápio”, lamenta a nutricionista.

Cecatti destaca que o consumo de ultraprocessados é algo típico das grandes cidades. “Nós vivemos, inclusive, uma epidemia de obesidade devido ao consumo de alimentos inadequados”, diz o orientador. De acordo com a pesquisadora, o padrão alimentar associado à obesidade pode aumentar em duas a três vezes a chance de a gestação ter algum desfecho indesejável, como pré-eclâmpsia ou diabetes gestacional.

Maria Julia de Oliveira Miele, autora da tese: “Não basta matar a fome e controlar o peso, é preciso nutrir adequadamente”
Maria Julia de Oliveira Miele, autora da tese: “Não basta matar a fome e controlar o peso, é preciso nutrir adequadamente”

Soluções

Miele não se restringiu ao diagnóstico apontado pelo painel dos hábitos alimentares elaborado em sua pesquisa. Foi feita também uma análise do perímetro braquial (do braço) como ferramenta para a identificação dos riscos de haver complicações na gravidez. “Propomos a utilização da medida da circunferência de braço como mais uma ferramenta capaz de avaliar e caracterizar o estado nutricional da gestante. Pouco difundida para gestantes no Brasil, essa é uma forma mais simples e rápida em casos nos quais se desconhece o peso ou há dificuldade para o acompanhamento desse dado. E também fizemos a relação entre o que a mãe comeu com as características físicas da criança”, diz a agora doutora. A pesquisa concluiu ainda que a circunferência cefálica da mãe tem relação com a circunferência cefálica da criança.

A tese compõe-se de sete artigos já publicados em revistas internacionais. Entre as contribuições propostas estão quatro modelos preditivos específicos − para os desfechos de prematuridade, restrição do crescimento fetal, pré-eclâmpsia e diabetes gestacional − e um modelo geral para qualquer uma dessas situações. A pesquisa também propôs a criação de um modelo de regressão linear múltipla com as circunferências cefálicas maternas e neonatais e os padrões alimentares, socioeconômicos e demográficos. E, finalmente, desenvolveu um arcabouço conceitual para rastreamento e monitoramento de maior e menor risco nutricional durante a gestação.

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