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Brasil protagoniza sistema de certificação de orgânicos

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Modelo criado no país começou a ser concebido em 1992 e hoje está presente em 78 países

Agricultura orgânica em horta na região central de Campinas
Agricultura orgânica em horta na região central de Campinas

O protagonismo brasileiro na criação do Sistema Participativo de Garantia (SPG) e o acordo inédito entre o Brasil e o Chile de equivalência do SPG, que permite a comercialização indireta dos produtos orgânicos entre os dois países, compuseram o tema da pesquisa realizada pelo engenheiro agrônomo Luís Henrique Conti Tasca, na Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp, sob orientação da professora Vanilde Esquerdo. Em sua dissertação de mestrado “Sistemas Participativos de Garantia na Equivalência de Certificação Orgânica entre Brasil e Chile”, Tasca descreveu o histórico dos mercados nacional e internacional de orgânicos, incluindo o processo de criação dos selos e suas formas de aferição (auditoria ou sistema participativo), a criação das leis e, finalmente, a certificação binacional com a equivalência do SPG entre Brasil e Chile, assinado em 2018.

No contexto internacional, o mercado de produtos orgânicos cresce anualmente cerca de 10% desde o ano 2000. O consumidor brasileiro já está familiarizado com os alimentos sem agrotóxicos identificados pelo selo de garantia Produto Orgânico Brasil. Pouca gente percebe, no entanto, o escrito, em letras bem pequenas, identificando se o processo de qualificação foi realizado pela Certificação por Auditoria ou pelo Sistema Participativo. Ambos são reconhecidos pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), mas o primeiro foi criado pela União Europeia (UE) e o segundo, pelo Brasil.

Na certificação por auditoria criada na Europa em 1991 para validar a qualidade dos produtos orgânicos que chegavam ao continente, uma empresa auditora (normalmente europeia ou norte-americana) é contratada para avaliar as conformidades da cadeia produtiva sob análise, emitir o laudo e, se tudo estiver certo, conferir o selo. A forma de certificação participativa, baseada na confiança entre produtores e consumidores, surgiu em meio aos produtores da região Sul do Brasil, em 1992, um ano depois de a UE ter criado a certificação por auditoria. A iniciativa brasileira fazia frente aos padrões e normas estabelecidos pela entidade europeia para o mercado internacional. Hoje, o SPG está presente em 78 países, dos quais 16 o reconhecem com força de lei (dez deles na América Latina).

“O fato de o Brasil ter o protagonismo na certificação participativa não é pouca coisa. O mundo reconhece isso, e tem crescido a adoção dele por sistemas legais diversos”, diz Esquerdo. “O SPG é muito novo e tem se espalhado pelo mundo com marcada influência brasileira. O sistema tem um potencial socioeconômico e ambiental muito grande, além de trazer empoderamento para os agentes da cadeia produtiva”, define Tasca.

Em sua dissertação, o pesquisador mostra como o Brasil, no contexto latino-americano, se tornou um pilar econômico. “O Brasil começa a se tornar um parceiro mais próximo dos seus vizinhos. Isso se reflete na tentativa de levar o acordo para o Mercosul. O acordo inédito entre Brasil e Chile foi um marco para a América Latina, criando uma política de orgânicos voltada para a região, fortalecendo o mercado latino-americano e posicionando o Brasil como referência em certificação participativa no mundo”, afirma o pesquisador.

Produto em loja especializada: rede ecológica e sistema participativo
Produto em loja especializada: rede ecológica e sistema participativo

Responsabilidade solidária

O SPG tem por base o controle social e a responsabilidade solidária. O controle social da qualidade orgânica é feito pelos pares (os próprios agricultores), pelos consumidores (que podem participar do processo) e pelos técnicos do Mapa, que realizam visitas de verificação sobre as conformidades orgânicas. Os agricultores se organizam por grupos que estabelecem um cronograma.

A responsabilidade solidária diz respeito ao cumprimento das exigências da agricultura orgânica. O produtor que descumpre as normas pode receber assessoria de seus pares dentro de um prazo de adequação. Se não conseguir adequar-se, pode ter o selo suspenso. E, se o técnico do Mapa detectar que houve algum tipo de “vista grossa”, o grupo inteiro perde o selo. Existe, portanto, uma responsabilidade solidária que impulsiona a autogestão no processo de avaliação da conformidade, com uma dinâmica de grupo democrática e participativa.

“Há muita troca de conhecimento durante essas visitas, há uma riqueza no processo, que não é meramente fiscalizatório. O controle social e a responsabilidade solidária ajudam inclusive quem tem mais dificuldade com a burocracia. Em relação à auditoria, o SPG pode ter um valor menor, mas seu custo está no tempo e na participação”, explica a orientadora.

A professora Vanilde Esquerdo, orientadora, e o engenheiro agrônomo Luís Henrique Conti Tasca, autor da dissertação: histórico dos mercados nacional e internacional de orgânicos

Agroecologia

Segundo Tasca, a história do sistema participativo, “enquanto forma de reivindicação de um grupo”, está inserida na história do movimento da agroecologia. Desde a década de 1960, os produtores de orgânicos já compunham uma rede ecológica de confiança mútua. O SPG começou a se disseminar aos poucos, por intermédio de grupos brasileiros do próprio movimento agroecológico da América Latina e do Caribe, até se espalhar para o resto do mundo. Hoje, há mais de 180 países produtores de orgânicos e forte participação no mercado consumidor de países como a China, a Índia e a Rússia, além da Europa e dos Estados Unidos.

Os países europeus formavam o maior mercado de produtos orgânicos do mundo, responsáveis por quase 80% do consumo internacional. Nasceu a partir daí um setor de empresas auditoras que passaram a atuar também no Brasil. Foi nesse contexto que os produtores brasileiros criaram sua própria certificação.

Os produtores se organizaram e conseguiram exercer forte influência na criação da legislação sobre a agricultura orgânica, em 2003. No entanto, o SPG não ganhou estatuto legal nessa ocasião. Ocorreram, então, muitos conflitos com as certificadoras por auditoria que já estavam no Brasil e, naquele primeiro momento, não houve aceitação de outra forma de certificação. “Isso foi algo paulatinamente construído. Não foi uma coisa tranquila. Foi bem conflituoso”, explica Tasca.

O Mapa reconheceu a certificação participativa em 2007 e criou, em 2009, o credenciamento para que os SPGs pudessem se cadastrar como Organismo Participativo de Avaliação da Conformidade (Opac). O primeiro registro foi feito pela Associação de Agricultura Natural de Campinas e Região (ANC), em 2010. Os produtores que adotam o SPG voltam-se principalmente para o abastecimento local.

Os produtos que chegam a mercados distantes normalmente são os menos perecíveis – como café, vinho, mel e cerveja. Esquerdo lembra que, ao valorizar o SPG, não há uma desqualificação da auditoria. “É bom lembrar que não são todos os agricultores que têm predisposição para o sistema participativo.”

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