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Uma farinha proteica à base de grilos

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Cientista ouviu a opinião de 780 consumidores de todo o país sobre o consumo de insetos

À direita, a farinha de grilo, desenvolvida em parceria com pesquisadores alemães; à esquerda, insetos em processo de secagem
À direita, a farinha de grilo, desenvolvida em parceria com pesquisadores alemães; à esquerda, insetos em processo de secagem

Por que comer insetos? Para responder a essa questão, baseando-se na ciência, o cientista de alimentos Antonio Bisconsin Junior defendeu a tese de doutorado “Insetos Comestíveis: Estudo do Consumidor e Desenvolvimento de Ingrediente Alimentício”, na Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp. Orientado pela professora Lilian Regina Barros Mariutti, o pesquisador, que é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia (Ifro), investigou o que os brasileiros pensam sobre a possibilidade de comer insetos e descobriu haver uma preferência por grilos, bem como uma maior aceitação dessa alternativa por parte de consumidores do Norte e do Centro-Oeste do país. Em sua tese, Bisconsin também pesquisou as vantagens do alimento e produziu uma farinha proteica de grilos – uma espécie de whey protein –, desenvolvida com tecnologias emergentes não térmicas, em parceria com o Instituto Leibniz para Tecnologia Agrícola e Bioeconomia (Alemanha). Ele acredita que a ingestão de insetos pelos seres humanos, uma prática iniciada na era paleolítica, pode vir a fazer parte da alimentação da maior parte das pessoas no futuro.

De acordo com a orientadora da tese, além dos resultados inéditos, o trabalho também pode contribuir para a elaboração de uma legislação, até hoje inexistente no Brasil, sobre a utilização de insetos como alimento humano. “Há subsídios na pesquisa para que seja criada uma política pública pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] a fim de regulamentar a criação de insetos. Esses são dados importantes para a indústria e para a academia”, diz Mariutti. Já existe, no país, em pequena escala, a criação de insetos para consumo animal.

A antropoentomofagia – uso de insetos na alimentação humana – começou na época dos hominídeos. Apesar de a prática parecer exótica aos olhos da população urbana ocidental do século XXI, os insetos já chegaram às mesas de restaurantes premiados do Brasil e fazem parte da cultura de diversas etnias dos povos originários brasileiros, assim como são comuns, por exemplo, na Tailândia – com seus espetinhos de grilo – e no México, onde são vendidos a granel.

Os insetos já fazem parte do cardápio de quase 2 bilhões de pessoas em todo o mundo, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU). “Os maiores obstáculos para inseri-los maciçamente na alimentação humana são culturais e psicológicos”, afirma Bisconsin. Natural de Rondônia, ele lembra que, na infância, já sabia da existência desse hábito entre os povos originários, embora os insetos não integrassem a sua dieta.

Antonio Bisconsin Junior, autor da tese: consumo esbarra em obstáculos culturais e psicológicos
Antonio Bisconsin Junior, autor da tese: consumo esbarra em obstáculos culturais e psicológicos

Saudável e sustentável

Hoje, no entanto, o pesquisador enumera os vários motivos para considerarmos os insetos uma alternativa alimentar para a população mundial. Dois deles destacam-se como os mais fortes: o primeiro está relacionado à qualidade nutricional; e o segundo, à sustentabilidade. Na comparação com as carnes bovina, suína, de frango e de peixe, predominantes no cardápio da população ocidental, os insetos possuem altos teores de proteína. Além disso, descreve o cientista, trata-se de “um alimento com proteína de boa qualidade, com lipídios saudáveis e fibra insolúvel que pode ajudar no trato intestinal. Eles têm todos os aminoácidos de que necessitamos na dieta, ao contrário dos produtos de origem vegetal”.

As vantagens enumeradas pela pesquisa não param por aí. Para fornecer a mesma quantidade de proteína produzida pelas criações de animais convencionais, os insetos demandam menos alimento, menos água e menos espaço, além de produzirem uma quantidade muito menor de gases causadores do efeito estufa O impacto ambiental, portanto, é muito menor.

Graduado em Ciência dos Alimentos pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), Bisconsin fala que se interessou pelo tema depois da publicação de um relatório da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês) em 2013, que causou forte impacto sobre o assunto mundialmente. O relatório apresentava o uso de insetos na alimentação humana como alternativa para auxiliar no combate à fome no planeta. O interesse despertado pelo documento deu origem a um congresso internacional e a uma revista científica especializada no tema.

A professora Lilian Regina Barros Mariutti, orientadora: trabalho pode contribuir para a elaboração de legislação
A professora Lilian Regina Barros Mariutti, orientadora: trabalho pode contribuir para a elaboração de legislação (Foto: Felipe Bezerra)

Pesquisa de consumo

O estudo de Bisconsin foi dividido em duas partes. A primeira apresenta os resultados de uma pesquisa que ouviu 780 pessoas de todas as regiões do país, com entrevistas presenciais realizadas por uma rede de colaboradores formada por professores da Unicamp e de outras universidades e institutos de pesquisa. Esses colegas pesquisadores saíram às ruas com prancheta nas mãos. “Foram seis meses de coleta, no período pré-pandemia, em oito Estados diferentes.”

O método utilizado na pesquisa foi o de associação livre de palavras, com perguntas como: “Quando eu digo alimento feito com insetos, o que vem à sua mente?”. Na resposta, o entrevistado deveria citar até cinco palavras ou termos relacionados ao assunto. A pessoa falava o que vinha à sua mente. “Na análise, confirmamos que a grande maioria associa a ideia de comer insetos a algo nojento”, diz Bisconsin.

A pesquisa revelou, ainda, que as pessoas das regiões Norte e Centro-Oeste tendem a ter uma visão mais positiva sobre os insetos comestíveis que as pessoas do Sul, Sudeste e Nordeste. “Verificamos essa familiaridade principalmente por causa da cultura regional, mais próxima dos povos originários”, diz Bisconsin. O perfil da maioria que aprovou a alternativa alimentar era jovem, com grau de escolaridade maior e do gênero masculino. O estudo de consumidor também contou com a participação do professor Jorge Herman Behrens, do Departamento de Ciência de Alimentos e Nutrição (Decan) da FEA.

O grilo despontou como o tipo de inseto comestível mais aceito, desbancando larvas, baratas e formigas. Também foi observado no estudo que haveria uma aceitação melhor do alimento se os insetos estivessem “disfarçados” no produto, ou seja, se não fossem identificáveis na sua forma natural.

Para manter o grilo “escondido”, Bisconsin desenvolveu um concentrado proteico do animal, “um grilo protein”. Esse trabalho foi realizado com o auxílio de um financiamento do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD, na sigla em alemão) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) em parceria com o pesquisador Oliver Schlütter, que trabalha com os grilos da mesma espécie (Gryllus assimilis) que o brasileiro já estudava. O Brasil, diz Bisconsin, tem um enorme potencial para a criação de insetos comestíveis, e isso porque, entre outros motivos, o clima mais quente permite aos animais um ciclo de vida mais curto.

Segundo Mariutti, o setor já movimenta muito dinheiro em todo o mundo Atualmente, existem também pesquisas voltadas para o estudo de possíveis reações alérgicas aos insetos – os componentes presentes neles assemelham-se aos presentes nos crustáceos. “Nós não trabalhamos com análise sensorial, mas experimentamos insetos no laboratório. Eles têm um gosto muito parecido com o de castanha. Fica saboroso moído como farinha para empanado.”

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