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Campinas,
a
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Lume pereniza processo criativo de peça em livro

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Obra discute as fronteiras entre o real e o ficcional

Cena da peça Kintsugi, 100 memórias: espetáculo surgiu de pesquisa sobre a doença de Alzheimer
Cena da peça Kintsugi, 100 memórias: espetáculo surgiu de pesquisa sobre a doença de Alzheimer

Após pesquisar a doença de Alzheimer e ver, no esquecimento e na memória, um caminho para a arte, quatro atores produziram a peça Kintsugi, 100 memórias. Para eternizar o processo de pesquisa, criação e encenação do espetáculo, três deles – Ana Cristina Colla, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini – escreveram o livro Entre cenas, memórias e estilhaços, publicado pela Editora da Unicamp. Os autores trabalham juntos, desde 1994, no Lume – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp. Além deles, um quarto ator, Jesser de Souza, participou do processo criativo e da apresentação da peça.

A ideia de produzir o espetáculo teatral a partir do estudo sobre Alzheimer surgiu porque, segundo os autores, o tema da memória sempre esteve presente nas pesquisas e criações artísticas que realizaram. Assim, por meio de uma linha de trabalho que denominaram Mímesis Corpórea, realizaram pesquisas de campo com sertanejos, ribeirinhos, pessoas em situação de rua, com operários, brincantes e seus próprios ancestrais.

Por volta do ano 2014, em encontros de pesquisa, o grupo percebeu que desejava alargar o campo da Mímesis Corpórea e da memória. Em um certo momento, Colla deparou-se com uma edição da revista Superinteressante que trazia uma notícia sobre um pequeno povoado na Colômbia chamado Angostura, na região de Antioquia. A reportagem dizia que, dos 12 mil habitantes de Angostura, 12% tinham um tipo raro de Alzheimer, que se manifesta por volta dos 35 anos e que é hereditário. Foi então que o grupo começou a pensar em tratar da memória a partir do esquecimento, tendo como base a doença de Alzheimer.

Jornal da Unicamp – Já existia o interesse em escrever um livro sobre a peça Kintsugi, 100 memórias desde o início do estudo?

Autores – Interesse em escrever um livro, especificamente, não. O que ocorre é que, quando se inicia um processo de criação de um espetáculo, não se sabe em que ele resultará, pois cada processo é distinto, e cada espetáculo tem uma estética diferente provocando reflexões diferentes.

No caso de Kintsugi, 100 memórias, a pesquisa estava muito ancorada em um projeto de pesquisa financiado pela Fapesp e pelo CNPq, chamado “Angostura: memórias, esquecimentos, presenças, vida”, que nos levou a discutir questões ligadas à observação e à pesquisa de campo na relação com a Mímesis Corpórea, a discutir fronteiras entre performatividade e teatralidade, entre o real e o ficcional, a pensar os objetos como corpo e como potência de memória, a mergulhar em uma espécie de saturação de objetos e memórias na criação dramatúrgica.

A pandemia da covid-19 nos obrigou a interromper as apresentações do espetáculo. Assim, debruçamo-nos na escrita do processo de criação e de pesquisa de campo, junto com a organização e seleção das fotografias.

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JU – No prefácio, é dito que o livro reúne e torna acessíveis todos os efeitos colaterais da peça, mas que também é literatura. A partir disso, qual público vocês esperam alcançar?

Autores – Escrever é sempre um desafio. Em nenhum momento pensamos em escrever um livro sobre a peça teatral e todos os seus desdobramentos. O que nos interessa é descobrir uma escrita que nos mobilize de forma semelhante ao fluxo de criação cênica, uma escrita que nos faça dançar, que dance, que seja dançada. Assim como a peça, o livro atualiza memórias pessoais de grupo e sociais. O livro deve interessar sobretudo às pessoas ligadas às artes da cena, mas também às artes em geral, à Antropologia, à História, à Saúde, àquelas pessoas que cuidam, que amam a leitura, a literatura, que amam lembrar.

JU – Como nasceu o nome do livro e como ele se relaciona com o espetáculo?

Autores A memória tem cor, gênero, vencedores e vencidos. A história oficial, essa que ainda lemos nos livros e salas de aulas, não é, nem de longe, coletiva. Ela é parcial, recortada, organizada e estruturada por forças de poder e saber que reforçam narrativas que incluem poucos corpos e excluem tantos outros.

Por debaixo da clareza hierárquica da oficialidade histórica, rios de resistência, de inventividades e de vozes outras possuem fortes correntezas. E, numa inversão linda, enquanto a história oficial é nada coletiva e constantemente impessoal, a micro-história, singularizada e única, possui um enorme potencial de gerar coletividades, de gerar relações, de gerar poesia. Assim é Kintsugi, 100 memórias. Dessa forma, o nome do livro não poderia fazer outra coisa a não ser refletir as frestas poéticas geradas por entre as cenas, as memórias e esses potentes estilhaços.


Título: Entre cenas, memórias e estilhaços

Autores: Ana Cristina Colla, Raquel Scotti Hirson e Renato Ferracini

Edição: 1a

Páginas: 232

Dimensões: 16 cm x 23 cm

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