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Campinas,
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Projeto recupera, edita, digitaliza e torna acessíveis obras de compositores brasileiros

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Ciddic-Unicamp publica, em e-books, partituras de Almeida Prado, Dinorá de Carvalho e Sant’Anna Gomes, entre outros autores

O músico e pesquisador Tadeu Moraes Taffarello, organizador do projeto: “Se você não tem acesso às partituras, você não tem como tocá-las”
O músico e pesquisador Tadeu Moraes Taffarello, organizador do projeto: “Se você não tem acesso às partituras, você não tem como tocá-las”

A produção de grandes compositores brasileiros de música orquestral, a partir do século 20, poderia permanecer guardada e dispersa em acervos pessoais sob condições inadequadas de manutenção – ou seja, fadada ao esquecimento – não fosse o esforço de pesquisadores e músicos dedicados à descoberta, aquisição, organização, restauração, edição e, mais recentemente, digitalização das partituras. Mais do que tirar o pó e trazer à luz o trabalho de compositores como José Antônio Rezende de Almeida Prado (1943-2010), Dinorá de Carvalho (1895-1980), JoPedro de SantAnna Gomes (1834- 1908) e José Ignacio de Campos Júnior (1966-2009), a digitalização torna as composições acessíveis para pesquisa e para execução musical, permitindo que sejam mais conhecidas e apreciadas pelo público.

Proposto pelo músico e pesquisador da Unicamp Tadeu Moraes Taffarello, o projeto é financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e visa à publicação em formato eletrônico de oito edições de partituras musicais pertencentes à coleção da Coordenação de Documentação de Música Contemporânea (CDMC), ligada ao Centro de Integração, Documentação e Difusão Cultural (Ciddic) da Unicamp. Os e-books ficarão disponíveis para consulta gratuita na Biblioteca Digital da Unicamp e no Portal de Livros de Acesso Aberto, também da Universidade. A previsão é de que o projeto seja concluído em julho de 2024.

“O principal objetivo é disponibilizar esse material tão específico que está no arquivo CDMC/Ciddic. Muitas vezes são documentos únicos e, por esse motivo, as pessoas não os conhecem. Há, na verdade, um duplo objetivo do projeto: disponibilizar e, consequentemente, tornar esses autores e essa produção composicional mais conhecida”, afirma Taffarello, que além de pesquisador da CDMC também dá aula na pós-graduação de Música no Instituto de Artes (IA).

“São gêneros musicais que não têm um apelo midiático forte. Daí a importância da iniciativa da Universidade de trazer à tona uma produção que seja relevante artisticamente, mas não necessariamente tenha interesse mercadológico”, reafirma Taffarello. Das oito publicações previstas, uma já foi digitalizada e disponibilizada – a partitura da “Toccata da Alegria”, de Almeida Prado, que foi impressa pela CDMC em 1999, quando o compositor ainda era professor da Unicamp, onde lecionou de 1975 a 2000. “Nós revisamos [a obra], escrevemos uma introdução e publicamos online a partitura para piano. Ela está disponível no Portal da Biblioteca Digital da Unicamp em formato de livro.”

Outras quatro publicações aguardam aprovação de pareceristas e as outras três estão em etapa final. Segundo o pesquisador, novos nomes foram incluídos e talvez o projeto chegue a um total de dez publicações de partituras digitalizadas em formato de e-book, com textos introdutórios sobre o(a) autor(a) e a respectiva pesquisa. O compositor Levy Damiano Cozzella (1929-2018), por exemplo, cuja obra não fazia parte do projeto, acabou de ser incluído com peças para trompete e piano (uma com a inclusão de violino e a outra, de clarinete). A pesquisa sobre esse autor conta com a participação do professor Paulo Ronqui, do IA.

A compositora e pianista Dinorá de Carvalho: pioneirismo na luta pelo espaço da mulher na música
A compositora e pianista Dinorá de Carvalho: pioneirismo na luta pelo espaço da mulher na música

Memória artística

Taffarello lembra que havia no Cidicc vários estudos em andamento, sob a orientação do coordenador Angelo J. Fernandes, para a criação de publicações que divulgassem as pesquisas realizadas no centro. “As coisas já estavam acontecendo. Havia uma estrutura já montada e vários trabalhos de edição da memória artística do Brasil em desenvolvimento, tanto por alunos como por pesquisadores e professores. Mas estava tudo disperso. Eu resolvi juntar”, diz Taffarello.

O organizador incluiu no projeto: o material de Almeida Prado, estudado pelo músico Leandro Cavini; as obras de SantAnna Gomes – irmão de Carlos Gomes – organizadas pela professora Lenita Nogueira, do IA; as partituras de Dinorá de Carvalho, investigadas por Flávio Cardoso, professor da Universidade Federal de Uberlândia, que fez mestrado na Unicamp; e a obra de Ignacio de Campos analisada pelo aluno do IA Leylson Carvalho.

“A música torna-se conhecida quando é tocada.” Com essa máxima, Taffarello acredita que o projeto e as demais ações do Ciddic contribuem para a inserção da produção nacional orquestral no repertório das pessoas. Durante a pandemia, a Orquestra Sinfônica da Unicamp (OSU) gravou a execução de um trecho da abertura de “Noite de São Paulo”, de Dinorá de Carvalho, com material editado pelo CDMC/Cidicc. O vídeo está disponível no YouTube.

Esse mesmo trecho, editado em 2019, já foi tocado também pelas orquestras sinfônicas de Campinas, de Porto Alegre e de Minas Gerais. “Só de ter a partitura disponível, quatro apresentações aconteceram no período de quatro anos. Antes disso, desde a década de 1930, a composição tinha sido apresentada apenas quatro vezes. Se você não tem acesso às partituras, você não tem como tocá-las”, destaca o músico, que é também compositor. Taffarello fez graduação, mestrado e doutorado na Unicamp. Em 2015, ingressou como pesquisador do Ciddic. Seu instrumento principal é o trompete.

Partitura de música de Dinorá de Carvalho: peças editadas e digitalizadas serão executadas em festival que homenageia a compositora
Partitura de música de Dinorá de Carvalho: peças editadas e digitalizadas serão executadas em festival que homenageia a compositora

Festival Dinorá

Graças ao trabalho de digitalização de partituras  da compositora Dinorá de Carvalho, ocorrerá entre os dias 29 e 31 de agosto o Festival Dinorá de Carvalho, na Unicamp e no Teatro Castro Mendes, em Campinas. As peças, que serão executadas pela Orquestra Sinfônica de Campinas, são parte do material já editado e digitalizado pelo projeto: “Noite de São Paulo”, “Fantasia para piano e orquestra”, “Manhã radiosa” e “As sete canções”. A programação prevê dois concertos, um workshop com a pianista solista Sylvia Maltese e uma mesa de debates sobre a vida e a obra da compositora. “Esse vai ser um evento histórico”, diz Taffarello.

Dinorá Gontijo de Carvalho nasceu em Uberaba e foi pioneira na luta pelo espaço da mulher na composição orquestral. Ela fundou, na década de 1930, a primeira orquestra feminina do Brasil, formada só por mulheres. Foi também professora de piano de Almeida Prado e de muitos outros músicos em São Paulo. Fez toda sua carreira na capital paulista, onde vivia desde criança. Foi colega de conservatório de Mário de Andrade e, por isso, era muito próxima dos nacionalistas das décadas de 1920 e 1930. Ela só não participou da Semana de Arte Moderna de 1922 porque estava em Paris, estudando. Atravessou uma fase de busca pela identidade nacional com o uso de músicas folclóricas. Porém, com o tempo, direcionou suas composições para uma música mais atonal e experimental, sobretudo a partir da década de 1960. Seu estilo mostra-se bastante variado nas composições de música de câmara, peças corais, orquestrais, canções e outras.

Mesmo com toda a influência que exerceu sobre a cena musical paulistana, quando, por exemplo, promoveu festivais no Theatro Municipal de São Paulo, aos poucos a compositora foi sendo esquecida. “Ou apagada, talvez seja o termo mais correto”, afirma Taffarello. Ela conta com poucas referências nos livros de história da música. “Acho que isso ocorreu por múltiplos fatores, entre eles o fato de se tratar de uma mulher. Um outro fator possível é a falta de acesso aos materiais que ela produziu.”

Almeida Prado

Até falecer, em 1980, Dinorá de Carvalho cultivou sua amizade com o ex-aluno Almeida Prado. “Quando Almeida Prado foi estudar na Europa com Olivier Messiaen e Nadia Boulanger, músicos de vanguarda da época, antes do compositor retornar ao Brasil em 1973, Dinorá enveredou para o experimentalismo”, observa o pesquisador. “Eu acho que houve aí um processo de influência mútua, uma troca de experiências entre eles.”

Ao contrário da forma dispersa pela qual se constituiu o arquivo da compositora, o material de Almeida Prado chegou à Unicamp por doação dele mesmo, em 2001, logo depois de sua aposentadoria, em 2000, como professor da Universidade.

Ignacio de Campos

O conjunto da obra do compositor José Ignacio de Campos Júnior também chegou de forma mais organizada ao acervo. Como ex-pesquisador da Unicamp, onde fez sua carreira acadêmica desde a graduação, o compositor contou com a família e os colegas da Universidade para doarem peças suas ao acervo da Universidade. Ignacio de Campos faleceu aos 43 anos e compôs para orquestra, câmara e canto. Boa parte de sua produção era de música eletrônica, para a qual não existe partitura. “Eram sons eletrônicos mais voltados à pesquisa com música erudita”, descreve Taffarello. O CDMC mantém o Fundo Ignacio de Campos, que é composto por 16 partituras de vários gêneros. “Algumas ainda permanecem inéditas.”

SantAnna Gomes

Uma das publicações do projeto já aprovada pelos pareceristas é a da “Poca Filuta, do compositor SantAnna Gomes, irmão de Carlos Gomes. No material de pesquisa sobre esse autor, que vai resultar em um dos livros a ser organizado pela professora Lenita Nogueira, docente do IA e também curadora do Museu Carlos Gomes do Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas, há dois documentos que são achados novos. Um deles confirma a autoria da música “Saudade” (veja texto abaixo).

                                       SAUDADE INSPIRA PARCERIA DOS IRMÃOS

                                             SANT’ANNA E CARLOS GOMES


Três versões e três títulos diferentes para a mesma composição geraram dúvidas a respeito de sua autoria por muitos anos. “A Saudade”, “Saudade” ou “Saudade!” teria sido composta somente por José Pedro Sant’Anna Gomes (1834-1908) para o seu irmão Carlos Gomes (1836-1896) ou foi uma parceria entre os dois irmãos? A resposta mais recente confirma que Sant’Anna a compôs para o irmão, que anos depois fez um arranjo especial para a música.

“Embora não tenhamos condições de apurar a contribuição exata de Carlos Gomes para a composição, o cotejamento da peça ‘A Saudade’ para piano com ‘Saudade!’ para quinteto de cordas indica que a colaboração de Carlos Gomes transformou e valorizou a peça de Sant’Anna por meio da introdução de novos elementos”, escreve a professora Lenita Nogueira, do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, no artigo “Compartilhando música e saudade: um arranjo fraternal de Carlos Gomes”.

Estudiosa da obra de Carlos Gomes e, por extensão, da do seu irmão também compositor, Nogueira diz que a dúvida sobre a autoria perdurou por muitos anos porque a partitura original de Sant’Anna havia se perdido, enquanto uma versão reduzida da peça para piano, feita por Emílio Giorgetti (professor de música em Campinas nos colégios Florence e Culto à Ciência), havia sido publicada em um almanaque literário no final do século XIX. A princípio, a relação entre aquelas duas peças havia passado desapercebida.

Nogueira diz que na partitura de "A Saudade" guardada no Museu Carlos Gomes, em Campinas, do qual ela é curadora, consta apenas o nome de Sant’Anna como compositor, na versão para piano. Mas, em São Paulo, foi localizada a cópia de um manuscrito, no arquivo do compositor Luiz Levy (1861-1935), atestando a parceria dos irmãos José Pedro Sant’Anna Gomes e Carlos Gomes na obra “Saudade!” – com inscrição na capa: “Saudade / Melodia do M° Sant’Anna Gomes / Quinteto arranjado por Antonio Carlos Gomes / Milano, Março de 1882”.

Posteriormente, foi encontrada uma nova partitura, publicada pela Imperial Litografia J. Martin de São Paulo, que confirmou a autoria de Sant’Anna Gomes na obra intitulada “A Saudade”, com a inscrição: “Dedicada a meu irmão Carlos Gomes”. Foi essa composição que deu origem a “Saudade!”, que tem a colaboração de Carlos Gomes. Segundo Nogueira, essa última descoberta contribuiu para compreender melhor as condições em que foi composta “Saudade!”. A professora diz que a composição despretensiosa de Sant’Anna, feita para o irmão, adquiriu alto nível de elaboração após as intervenções do autor de O Guarani. “A peça original de Sant’Anna é bem romântica, com uma linha melódica bonita e delicada, mas é de menor extensão. O arranjo de Carlos Gomes deixou a peça com uma qualidade ainda maior”, analisa Nogueira.

Boa parte da obra de Sant’Anna Gomes já está organizada e digitalizada no Museu Carlos Gomes, diz Nogueira, mas agora o material passa por uma edição que se faz acompanhar de uma análise crítica mais aprofundada. “Sem dúvida esse é o diferencial desse projeto Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo]. O aparato crítico é necessário porque os compositores tinham uma maneira de escrever diferente. Eu já tinha preparado o manuscrito, mas nunca tinha feito uma revisão como agora para publicação”, afirma a professora.

Mano Juca

Sant’Anna era o mano Juca de Carlos Gomes. Filhos da mesma mãe, eles tinham muitos meios-irmãos. O pai, Manuel José Gomes, era músico de igreja. Segundo a pesquisadora, o vínculo entre os irmãos era muito forte. Quando a ópera O Guarani foi aceita pelo Teatro alla Scala, de Milão, os italianos concordaram em fornecer, para a montagem, a orquestra e os cantores, mas todo o restante da produção – como cenário e figurino – ficaria a cargo do compositor. Sant’Anna arrecadou dinheiro e foi à Itália entregá-lo para o irmão. “Ou seja, sem o Sant’Anna Gomes, não haveria O Guarani”, diz Nogueira.

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