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Campinas,
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Midiativismo forja um novo homem negro

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Tese analisa série sobre paternidade negra, família, violência, racismo, homofobia, machismo e masculinidade

Marco Túlio Câmara, autor da tese: “Considerei o vídeo como uma narrativa complexa, analisando-o do início ao fim”
Marco Túlio Câmara, autor da tese: “Considerei o vídeo como uma narrativa complexa, analisando-o do início ao fim”

Na série Homens Negros, o jornalista Murilo Araújo – fundador do canal Muro Pequeno – recebe convidados negros gays e bissexuais para falar sobre paternidade negra, família, violência, encarceramento, racismo, homofobia, machismo e masculinidade. Composta por cinco vídeos, a obra foi produzida em 2018 como parte do projeto Creators for Change, uma iniciativa do YouTube para, segundo anunciado pela plataforma digital, amplificar as vozes de youtubers que abordam temas relacionados à promoção de mudanças sociais. Ao encerrar a série, Araújo convoca: “Ouçam as bichas pretas!”.

A mesma frase dá título à tese de doutorado de Marco Túlio Câmara, que analisou, na série Homens Negros, a relação estabelecida entre masculinidades negras e linguagem multimodal para a construção de seu sentido midiativista. O trabalho foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e realizado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, inserindo-se em uma linha de pesquisas desenvolvida pelo grupo Mídia, Discurso, Tecnologia e Sociedade (MíDiTeS).

Câmara explica que sua ideia inicial era investigar a construção do midiativismo em vídeos no YouTube à luz da multimodalidade fenômeno semiótico que compreende os elementos verbais e não-verbais da comunicação. O pesquisador esclarece que a série Homens Negros foi eleita como objeto de estudo por ter sido escolhida para integrar um projeto que chancela a “vocação para a transformação do Youtube”. Para Rodrigo Lima-Lopes, professor do IEL que orientou a tese, o pesquisador inaugurou uma nova temática no grupo MíDiTeS. “A pesquisa do Marco abriu o caminho e permitiu uma abertura inédita para a discussão sobre midiativismo e multimodalidade”, ressalta o docente.

Conceito de midiativismo

Na busca pelo conceito de midiativismo, Câmara, que é professor de jornalismo da Universidade Federal do Tocantins (UFT), notou que a maioria dos artigos teóricos tratava o assunto de forma superficial, como se fosse algo óbvio, resultado da junção das palavras mídia e ativismo, explica. “Mas não é. Como se deve juntar essas duas coisas? E em que situações? É quando se faz uma transmissão de manifestação ou seria convidar alguém para um protesto? Precisa ser algo relacionado a manifestações ou não? É necessário estar ligado a algum movimento social?”, indaga.

Em sua tese, o doutor em linguística aplicada se encarregou de conceituar o termo – ainda que defenda que o mesmo deva ser mantido aberto, já que o fenômeno, assim como as tecnologias, está em constante evolução. O midiativismo, resultante da relação estabelecida entre ativismo e mídia, deve incluir cinco frentes de atuação essenciais: informar; construir conhecimento; servir como artefato de defesa; marcar presença; e fazer resistência. “Não é necessário que estejam todas sempre presentes para caracterizá-lo. Entretanto, não pode haver apenas uma. Se a premissa é visar a mudança social, esses elementos se complementam e o que vale é a interação entre eles”, justifica.

O professor Rodrigo Lima-Lopes, orientador do estudo: “A pesquisa permitiu uma abertura inédita para a discussão sobre midiativismo e multimodalidade”
O professor Rodrigo Lima-Lopes, orientador do estudo: “A pesquisa permitiu uma abertura inédita para a discussão sobre midiativismo e multimodalidade”

Contra-hegemonia

Conceito definido, o jornalista, ancorado na análise dos elementos do discurso, partiu para o estudo de Homens Negros. Ao assistir à série, pesquisou os detalhes da interação dos participantes entre si e com a câmeraseus gestos, olhares, falas, posturas, roupas, penteados. Interpretou, também, detalhes do cenário, sons e enquadramentos de câmera. Para tanto, examinou minuciosamente cada vídeo. “A maioria dos trabalhos [acadêmicos sobre vídeos] utiliza o frame ou a cena. Já eu considerei o vídeo como uma narrativa complexa, analisando-o do início ao fim. Tanto em construção como em movimento”, pontua.

A análise dos diferentes modos de linguagem encontrados nos deos, além da interação estabelecida entre esses elementos, revelou as diferentes formas de representação escolhidas pelos participantes de Homens Negros (conscientemente ou não) para se apresentarem no vídeo e para os outros. Uma pluralidade reivindicada por pessoas de tamanhos, cabelos, timbres vocais, personalidades e orientação sexual diversos. “A junção desses modos de linguagem traz outros jeitos de ser homem. As cores com que alguém se veste, se usa trança ou penteado black power, tudo são informações sobre como essa pessoa se identifica em relação à racialidade, por exemplo. Esses discursos afastam a representação hegemônica do homem negro machão, violento, que não chora, não fala fino. De quem é esperado um certo vigor sexual, seja gay ou bissexual, sempre ativo”, descreve.

Enquanto desenvolvia seu estudo, Câmara percebeu que as masculinidades negras retratadas na série dialogavam com os próprios recursos de linguagem observados nos vídeos, impondo-se como mais um elemento atuante para a construção do sentido midiativista (na própria obra). Dessa forma, decidiu considerá-las como parte de sua metodologia de pesquisa. “Em seu processo de análise, Marco buscou elementos que desconstruíssem estereótipos, para mostrar como as categorizações sociais não necessariamente representam a totalidade das pessoas. Seu trabalho deixa [o cenário] mais aberto possível para que se entenda que existe muito mais dentro dessa questão do que representações sociais cristalizadas”, avalia o orientador.

Ao acompanhar a multimodalidade nos vídeos e sua relação com as masculinidades negras, o jornalista constatou a formação de uma mensagem midiativista, personificada na figura de uma rede de homens negros não hegemônicos. “Os vários modos de linguagem nos dão o embasamento para a transformação. Quando [a série] mostra que é possível ser sensível, fornece uma informação e, ao mesmo tempo, marca presença. Ao recusar a masculinidade hegemônica, faz resistência. Além disso, uma construção de conhecimento coletivo, pois as discussões sempre são encerradas com a indicação de caminhos possíveis. Todas essas intersecções vão culminar na mudança social que eles mesmos estão propondo, produzindo seu sentido midiativista”, conclui.

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