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Negras tiveram quadros clínicos mais graves entre as gestantes com covid

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Dados coletados em 15 maternidades do país revelam disparidades raciais na assistência obstétrica

Segundo a autora da pesquisa, estudos prévios indicam que as pacientes negras têm receio de sofrer preconceito durante o atendimento
Segundo a autora da pesquisa, estudos prévios indicam que as pacientes negras têm receio de sofrer preconceito durante o atendimento

##“A cor da pele importa?” Foi essa pergunta que motivou a médica Amanda Silva a realizar a dissertação de mestrado sobre mulheres gestantes e a covid-19, defendida no Programa de Pós-Graduação em Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. O objetivo foi avaliar se as disparidades raciais na assistência obstétrica interferiam nos desfechos maternos e perinatais entre mulheres com covid-19. Ao analisar dados de 710 gestantes, Silva constatou que as grávidas negras chegaram ao atendimento em estado mais grave e tiveram quadros clínicos piores. A dissertação foi contemplada pelo Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog na categoria Ciências Biológicas e da Saúde.

Os dados analisados pela médica são da Rede Brasileira de Estudos da Covid-19 em Obstetrícia (Rebraco) e foram coletados em 15 maternidades do país, entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2021. A rede é multicêntrica e tem, em sua coordenação, professores da Unicamp. A pesquisadora debruçou-se sobre características sociodemográficas, testagem, tempo para procurar atendimento médico e resultados após o parto. Participaram do estudo 301 mulheres negras (autodeclaradas pretas e pardas) e 409 não negras.

“Vimos que as negras chegavam em pior estado ao serviço, com taxa de saturação de oxigênio menor. Elas também tiveram piores desfechos, com maior número de internações em UTI e de casos de intubação. Ou seja, tiveram quadros clínicos mais complicados”, aponta Silva. Entre as mulheres negras, registraram-se, ainda, uma maior proporção de adolescentes, uma menor escolaridade, um menor Índice de Massa Corporal (IMC) e uma maior taxa de gestação não planejada.

A professora Fernanda Surita, orientadora da tese: dados evidenciam a relação entre o racismo institucional e a diferença na atenção
A professora Fernanda Surita, orientadora da tese: dados evidenciam a relação entre o racismo institucional e a diferença na atenção

Um dos dados que chamou a atenção da pesquisadora foi a saturação de oxigênio, ou seja, a taxa de oxigênio no sangue, logo na admissão das mulheres em um serviço de saúde. O estudo verificou que a dessaturação (taxa de oxigênio abaixo de 95%) foi quase quatro vezes mais frequente entre as mulheres negras. Para pessoas não portadoras de doença pulmonar crônica, o valor da saturação considerado normal é entre 95% e 100%. O motivo de chegarem em estado mais grave, indica a médica, sugere uma dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Silva acrescenta que isso ocorre por motivos socioeconômicos, como a dificuldade de parar de trabalhar, de não ter com quem deixar os filhos e de se locomover.

Estudos prévios, relata a médica, já haviam indicado o peso do racismo, ao constatarem que as pacientes têm receio de sofrer preconceito durante o atendimento. “Há trabalhos mostrando que elas têm medo de procurar o serviço de saúde porque sabem que vão sofrer discriminação. A percepção da discriminação também se associa a piores resultados de saúde.”

Em relação à mortalidade, houve quatro mortes, sendo três de mulheres negras. Por serem apenas quatro mulheres em um universo de mais de 700, a médica explica que esse dado não possui relevância estatística, mas avalia que a proporção entre mulheres negras e não negras chama a atenção.

Maior abertura

A orientadora do trabalho, a professora da FCM Fernanda Surita, comenta que ainda não é comum, no meio médico, levar em consideração o racismo como um dos fatores que podem afetar a saúde. Contudo, tanto ela como a orientanda acreditam que esteja havendo uma abertura maior para pesquisar e debater o assunto.

“Muitas pessoas acham que, quando citamos esse tema, estamos exagerando. Temos que mostrar que não, que apenas há uma normalização da questão. Para as pessoas mais novas, é mais fácil, mas para pessoas da minha geração, ainda é difícil, apesar da existência de dados, em todas as áreas, evidenciando a relação entre o racismo institucional e a diferença na atenção”, pondera a professora. Na opinião da docente, a pandemia amplificou o problema das desigualdades e expôs vulnerabilidades. Exemplo disso foi a primeira morte por covid-19 registrada no Brasil: uma trabalhadora doméstica, negra, que se infectou após os patrões voltarem da Europa contaminados.

A médica Amanda Silva: “Existe uma discriminação que é histórica, institucional, cultural, estrutural e que permeia também os assuntos na área de saúde”
A médica Amanda Silva: “Existe uma discriminação que é histórica, institucional, cultural, estrutural e que permeia também os assuntos na área de saúde”

Silva alerta para a diferença na atenção, trazendoexemplos do quanto o racismo afeta a saúde das mulheres. “Mulheres negras têm pior acesso ao pré-natal, têm maior taxa de complicação durante a gestação, maior risco de pré-eclâmpsia e de hemorragia pós-parto. Elas relatam uma experiência pior durante a assistência pré-natal, durante o parto e durante o puerpério e recebem menos medicação para dor no pós-parto. O racismo estrutural associa-se, sim, a piores resultados em saúde e, especificamente, em saúde da mulher. Existe uma discriminação que é histórica, institucional, cultural, estrutural e que permeia também os assuntos na área de saúde.”

Segundo a médica, o prêmio concedido pela Unicamp e pelo Instituto Vladimir Herzog é importante para reconhecer o problema e avançar em práticas de combate à discriminação na área da saúde. Para Surita, trata-se de um reconhecimento relevante para uma pesquisa que foca nos determinantes da saúde, os quais dizem respeito a questões sociais, econômicas, culturais, étnico-raciais, psicológicas e comportamentais que se relacionam aos problemas de saúde e fatores de risco.

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