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Campinas,
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Grupo une esforços para descrição de borboletas brasileiras

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Cientistas de laboratório do Instituto de Biologia já identificaram e nomearam dezenas de indivíduos

Conhecer os diferentes tipos de borboletas, seu comportamento e sua história evolutiva é essencial para entender a biodiversidade do planeta
Conhecer os diferentes tipos de borboletas, seu comportamento e sua história evolutiva é essencial para entender a biodiversidade do planeta

Ela não tem a cor da canela e nem o cheiro do cravo, mas se chama Gabriela e pode ser encontrada na Bahia, voando pelos limites das matas costeiras. Seu nome foi inspirado na famosa personagem de Jorge Amado e, tal qual a homônima literária, encanta pela liberdade com que vive sua vida. Ela é uma espécie do gênero Yphthimoides, que integra um grupo de borboletas marrons e exclusivas de regiões neotropicais — a subtribo Euptychiina — e que está entre as dezenas de espécimes descritas por pesquisadores do Laboratório de Ecologia e Sistemática de Borboletas (Labbor) do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp.

Processo comum no campo das ciências biológicas, a descrição refere-se à identificação e ao registro formal das características de um ser vivo para que a comunidade científica possa conhecer os organismos descobertos e como eles se diferenciam, ou não, daqueles já conhecidos. “Descrevemos as características externas do animal, como a distribuição do padrão de cores e veias nas asas, a genitália, a presença de ocelos – as manchas no formato de olhos que algumas borboletas têm–, assim como as informações moleculares, obtidas do DNA do ser vivo”, explica o ecólogo Eduardo Barbosa, responsável pela descrição da Y. gabriela.

Conhecer os diferentes tipos de borboletas, seu comportamento e sua história evolutiva é essencial para entender a biodiversidade do planeta. Além de ajudarem na polinização de alguns tipos de plantas, esses artrópodes atuam como bioindicadores, revelando a qualidade dos ambientes onde vivem. Como são bastante vulneráveis à degradação ambiental, seu desaparecimento ou surgimento – no caso de espécies mais adaptadas à fragmentação – indica um processo amplo de desaparecimento de outros animais e de destruição florestal, o que pode levar a um colapso ecológico que afetará diretamente a humanidade.

O Brasil abriga 3.500 das cerca de 20 mil espécies descritas no planeta
O Brasil abriga 3.500 das cerca de 20 mil espécies descritas no planeta

Por esse motivo, desde os anos 2000, no Labbor, foram descritos e nomeados 83 indivíduos de borboletas, abarcando 25 gêneros, 48 espécies e 10 subespécies. Mais recentemente, em um artigo publicado no periódico ZooKeys, cientistas do laboratório e das universidades federais de Minas Gerais (UFMG) e do Paraná (UFPR), além das universidades da Flórida e de Harvard, apresentaram a descrição de duas  novas espécies de borboleta encontradas na Amazônia. Pertencentes ao gênero Caeruleuptychia, as borboletas C. harrisi e C. aemulatio, como foram chamadas, fazem parte da mesma família de marrons da Y. gabriela, mas se diferenciam por possuírem uma cor azul brilhante.

As razões para essa diferença de cor ainda não foram descobertas, mas podem estar relacionadas a uma adaptação evolutiva com o objetivo de atrair parceiros sexuais, especulam os pesquisadores. De acordo com o coordenador do Labbor, André Freitas, embora não seja o caso dos insetos capturados na Amazônia, em espécies com dimorfismo sexual – quando indivíduos de cada sexo possuem características físicas distintas –, os machos tendem a ser mais coloridos como forma de atrair as fêmeas. “Indagamos se o fenômeno não poderia estar relacionado à atração da fêmea por cor, mas esse não é o nosso foco nessa pesquisa. Com essa família de marrons, o ponto principal é descrever a diversidade, porque é um grupo muito negligenciado e que ficou desconhecido por anos”, revela o docente.

Lacuna de conhecimento

Como parte desse esforço para identificar as borboletas da família de marrons, em 2018, o grupo também descreveu o gênero de borboletas Nhambikuara, que abriga duas espécies que ocorrem na região do Cerrado, a N. cerradensis e a N. mima. Segundo maior bioma brasileiro, o Cerrado tem passado por um processo de desmatamento para a formação de pastos, colocando em risco um grande número de organismos endêmicos da região. Como consequência, os pesquisadores do Labbor temem que muitas espécies possam estar desaparecendo antes mesmo de serem descritas.

Reverter esse cenário, no entanto, não é tarefa fácil. No caso de insetos, a melhor alternativa é a conservação dos habitats originais, visto que o remanejamento de espécies – como é feito no caso de aves e mamíferos – é muito mais complexo. Além disso, há uma ausência muito grande de conhecimento sobre as borboletas no que se refere a aspectos como ciclo de vida, planta hospedeira, alimentação e lagartas. “A diversidade biológica ainda é desconhecida, e o incentivo para a taxonomia, a ciência da descrição das espécies, no Brasil e no mundo, é muito pequeno. Precisamos de mais pessoas e investimento para desvendar essa diversidade”, afirma Freitas.

O coordenador do Labbor, professor André Freitas: “Precisamos de mais pessoas e investimento para desvendar essa diversidade”
O coordenador do Labbor, professor André Freitas: “Precisamos de mais pessoas e investimento para desvendar essa diversidade”

Essa lacuna de conhecimento é ainda maior na América Latina, região que possui a maior diversidade de borboletas do mundo. Para se ter uma ideia, o Brasil abriga 3.500 das cerca de 20 mil espécies descritas no planeta; na Colômbia e no Peru, esse número ultrapassa as 4.000. Por outro lado, em todo o continente africano, a quantidade de espécies não chega a 3.000, ao mesmo tempo que na Europa – com exceção da Rússia – esse número é de 400. Vale destacar que, somente na Mata de Santa Genebra, localizada no distrito de Barão Geraldo, em Campinas, existem cerca de 700 espécies de borboleta, enquanto que no campus da Unicamp, no mesmo distrito, esse número passa de 200.

A expectativa, no entanto, é que a quantidade de borboletas descobertas no Brasil aumente, porque praticamente toda coleta realizada em viagens de campo acaba trazendo espécies novas, mesmo que já conhecidas. Em 2012, o Labbor foi responsável por descrever e nomear uma espécie bastante comum de borboleta, a Yphthimoides ordinaria, que nunca havia sido identificada, mas que é muito presente na Mata Atlântica no Paraguai e na Argentina – é abundante também no campus da Unicamp.

Provavelmente, a demora em descrever essa espécie se deve a uma combinação de dois fatores. Em primeiro lugar, a fragmentação dos habitats pode ter tornado essa Yphthimoides mais comum nos tempos recentes, uma vez que elas são mais adaptadas a ambientes abertos e de borda de matas. Em segundo lugar, sua coloração contribui para que passem despercebidas. “Elas são marronzinhas, sem graça para a maioria das pessoas, e parecem todas iguais. Há muitas espécies diferentes, mas as pessoas olham e acham que é a mesma”, comenta Freitas, ressaltando que, na realidade, elas têm um aspecto bastante interessante.

As espécies de Yphthimoides surgiram de um ancestral comum que deu origem a cerca de 20 espécies diferentes, mas extremamente parecidas em suas características físicas. Como essas borboletas ocorrem nos mesmos habitats, e muitas não produzem feromônios – as substâncias químicas liberadas para atrair parceiros –, surge a dúvida: como esses insetos reconhecem os indivíduos da mesma espécie e, assim, se reproduzem? “Deve haver uma vantagem adaptativa na cor marrom, mas as borboletas precisam se diferenciar de alguma forma que ainda não conhecemos. Ainda temos muito a aprender sobre elas”, ressalta o docente.

Borboleta do gênero Caeruleuptychia (no alto, à esq.), identificada recentemente na Amazônia, e detalhes de indivíduos do Laboratório de Ecologia e Sistemática de Borboletas, no IB
Borboleta Caligo Illioneus (no alto, à esq.), identificada recentemente na Amazônia, e detalhes de indivíduos do Laboratório de Ecologia e Sistemática de Borboletas, no IB 

Confusão taxonômica

Além de descrever as duas espécies de borboleta, o artigo publicado no periódico Zookeys também propôs a mudança taxonômica de outras duas espécies, que passaram por um processo de sinonimização. Por meio de uma ampla investigação histórica, os autores constataram que duas borboletas do gênero Euptychia – que também integram a subtribo das borboletas marrons –, descritas anteriormente como pertencentes a espécies diferentes, eram, na realidade, uma mesma espécie. “O indivíduo utilizado para descrever a espécie Euptychia stigmatica foi registrado como vindo da Argentina, mas descobrimos que ele veio do Rio de Janeiro. Tivemos que realizar um trabalho de formiguinha, ir atrás dos naturalistas do século 19 e do começo do 20, para entender onde esse bicho foi coletado”, relata Barbosa.

A pesquisa histórica demonstrou que houve uma confusão entre as cidades de Três Rios, na Argentina, e de Entre Rios, no Rio de Janeiro, atualmente também chamada de Três Rios. Esse era um tipo de erro bastante comum naquela época, porque não existia GPS para ajudar os pesquisadores a se localizarem, além de haver muita confusão envolvendo siglas e abreviações. “No século 19, também era muito comum que os naturalistas que vinham paraidentificassem o Rio como o local de origem dos materiais. Qualquer localidade do Brasil era considerada o Rio de Janeiro”, acrescenta o ecólogo.

Embora pareça um detalhe sem relevância, entender a origem de uma espécie, e corrigir eventuais erros taxonômicos, é essencial para o campo da biologia, porque informações erradas impactam, por exemplo, as estratégias de conservação. A confusão com a Euptychia stigmatica fez com que, por mais de um século, figurasse na lista de borboletas da Argentina uma espécie que não era de lá, mas sim de regiões da Mata Atlântica de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia, além do Rio de Janeiro, cujo clima é mais quente.

O ecólogo Eduardo Barbosa, responsável pela descrição da Y. gabriela: “Já fizemos alguns trabalhos em que percebemos que uma espécie tinha três nomes diferentes”
O ecólogo Eduardo Barbosa, responsável pela descrição da Y. gabriela: “Já fizemos alguns trabalhos em que percebemos que uma espécie tinha três nomes diferentes”

De acordo com Freitas, esse tipo de informação auxilia na modelagem de sistemas biológicos e influencia a concepção que os cientistas têm do destino dos ecossistemas. “Poderíamos tirar uma conclusão errônea sobre o destino de uma fauna inteira. Por exemplo, a existência de uma borboleta tropical em uma região de clima quase temperado poderia nos levar a acreditar que aquela região da Argentina tem conexões com a Amazônia e concluir que ela tem possibilidades de se tornar um refúgio em mudanças climáticas futuras”, esclarece.

Além disso, esse tipo de erro gera uma confusão taxonômica que é difícil de resolver. Se esse trabalho histórico não tivesse sido executado, os autores acabariam descrevendo uma espécie que já possuía um nome, criando uma terminologia científica que não teria validade. “Já fizemos alguns trabalhos em que percebemos que uma espécie tinha três nomes diferentes, porque ela possui uma distribuição ampla e sua morfologia vai mudando de acordo com o local. Com isso, os pesquisa- dores deram três nomes distintos para cada um desses morfotipos e nós precisamos reunir todos eles em um artigo”, lembra Barbosa.

Atualmente, os pesquisadores do Labbor continuam envolvidos na descrição de borboletas e nos estudos sobre ecologia de comunidades e de conservação. Além disso, eles têm se debruçado sobre lacunas de conhecimento – em locais desprovidos de uma tradição de coleta sistemática – e investido em história genética, tanto para entender as adaptações que levaram à diferenciação nas borboletas de regiões diversas como para desvendar a história geográfica das várias espécies. Essa última abordagem, conhecida como filogeografia, produz resultados que podem ser relacionados às variações do clima no passado, ajudando a entender a história das espécies ao longo do tempo e a prever, em última instância, cenários para o futuro da biodiversidade em um planeta em constante mudança.

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