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Campinas,
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Jovens migrantes na fronteira do abandono

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Venezuelanas enfrentaram pobreza menstrual e falta de atenção básica à saúde sexual durante pandemia em Boa Vista

Venezuelanas desembarcam em Brasília vindas de Boa Vista: migrantes viviam em situação de vulnerabilidade extrema
Venezuelanas desembarcam em Brasília vindas de Boa Vista: migrantes viviam em situação de vulnerabilidade extrema

Meninas, adolescentes e jovens mi- grantes venezuelanas que viviam em Boa Vista (RR) no início de 2021 encontravam-se em uma situação de vulnerabilidade extrema, marcada pela pobreza menstrual, pela falta de acesso a serviços indispensáveis de saúde sexual e reprodutiva e pelo medo constante da violência

Essa foi a principal conclusão de um estudo conduzido pela médica Rachel Soeiro, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Tocoginecologia da Unicamp, sob a orientação da professo- ra Maria Laura Costa, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). O estudo integra a pesquisa “Avaliação dos serviços de saúde sexual e reprodutiva para venezuelanos nas fronteiras venezuelanas com o Brasil e a Colômbia”, financiada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e coordenada pelo também docente da FCM Luis Bahamondes.

Soeiro dividiu o estudo em duas partes: na primeira, avaliou o acesso das jovens venezuelanas a serviços de saúde sexual e reprodutiva; na segunda, investigou as condições de higiene e saúde das migrantes relacionadas à menstruação. Devido às restrições impostas pela pandemia de covid-19, a médica optou pela aplicação de questionários autor- respondidos em dois acampamentos de migrantes venezuelanos localizados na capital roraimense.

A primeira parte do estudo envolveu 153 venezuelanas, com idade média de 17,7 anos. Dois terços das entrevistadas tinham menos de 20 anos e mais da metade se situava na faixa de 12 a 17 anos de idade. A busca por melhores oportunidades econômicas foi o que motivou a maior parte delas a deixar o seu país de origem. A maioria chegara ao Brasil havia menos de seis meses – ou seja, durante a pandemia – e um terço fizera o trajeto sem a companhia de qualquer pessoa da família. Todas se mantinham por meio de doações. Nenhuma frequentava a escola.

A situação era particularmente delicada entre as jovens migrantes venezuelanas que eram mães ou que estavam grávidas quando responderam os questionários da pesquisa. Dentre as grávidas, que correspondiam a 10% do total de entrevistadas, 30% não estavam fazendo qualquer acompanhamento médico.

A barreira linguística foi apontada como um dos empecilhos para a realização do pré-natal, assim como o recebimento de informações desencontradas. Embora o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS) seja universal, Soeiro relata que algumas venezuelanas desistiram de procurar o serviço porque haviam sido informadas nos hospitais e Unidades Básicas de Saúde (UBSs) sobre a necessidade de apresentarem algum documento para serem atendidas.

A qualidade do pré-natal também foi motivo de preocupação para as entrevistadas. Segundo 40% delas, exames rotineiros como o hemograma e o de urina não foram solicitados nas consultas. A medição da pressão arterial e os exames de ultrassom também eram raros. Todas mencionaram, ainda, a falta de informação sobre sinais comuns que indicariam riscos para a gestação.

O impacto da dificuldade de comunicação não foi sentido apenas pelas gestantes, já que receber poucas informações foi uma queixa geral. As reclamações também foram generalizadas no que se refere à qualidade do atendimento médico e ao acesso a produtos de higiene. Ao procurar os serviços de saúde em busca de contraceptivos, a maioria não conseguiu ser atendida: 91% saíram de mãos abanando.

A médica Rachel Soeiro (de jaleco) durante entrevista na capital roraimense
A médica Rachel Soeiro (de jaleco) durante entrevista na capital roraimense

Pobreza menstrual

Na segunda parte do estudo, que tinha como objetivo investigar as condições de higiene e saúde relacionadas à menstruação, Soeiro entrevistou 142 migrantes ve- nezuelanas, com idades entre 12 e 24 anos.

A pesquisadora apresentou a seguinte pergunta às entrevistadas: “O que significa a menstruação para você?”. “Não sei” foi a resposta oferecida por um quarto das jovens. Quase todas as demais participantes deram respostas resignadas ou negativas, relacionando o menstruar com algo doloroso, terrível.

“Elas não sabiam nem mesmo que havia uma medicação para a cólica e que, portanto, a experiência não precisava ser dolorosa”, destaca Soeiro. Vista como tabu, a menstruação era motivo também de constrangimento: 93,2% mostraram algum tipo de preocupação com a possibilidade de seus descartes serem vistos por alguém.

Os resultados evidenciam uma situação de miséria menstrual. Ao menos metade das entrevistadas afirmou conviver com a falta de absorventes e disse não ter recebido nenhum kit higiênico desde a sua che- gada a Boa Vista. Dentre as que receberam o kit, 53,6% se queixaram da qualidade do absorvente, considerado desconfortável, e um terço afirmou que a quantidade do produto era insuficiente.

Para além da falta de absorventes, da desinformação e do constrangimento, a precariedade sanitária tornava a experiência ainda mais sofrida. Embora 88% das participantes da segunda fase do estudo tivessem acesso a banheiros onde podiam trocar seus absorventes, todas enfrentavam condições de higiene consideradas insatisfatórias. Lavar as mãos sempre que sentissem necessidade não era uma possibilidade para 61% das mulheres ouvidas.

Igualmente preocupante para elas, conclui a pesquisadora, era a sensação constante de insegurança. As migrantes conviviam com o temor de serem atacadas por uma pessoa (75,9%) ou por um animal (82%) sempre que iam ao banheiro. Um medo com fundamento, já que um terço afirmou ter sofrido violência de gênero – apenas dez casos foram re- portados às autoridades.

Quadro preocupante

O ineditismo da pesquisa está em abordar uma realidade ainda inexplorada no Brasil, delineando um quadro preocupante sobre as condições de vida de meninas, adolescente e jovens mulheres migrantes.

O retrato feito por Soeiro da situação das venezuelanas em Roraima no início de 2021 se assemelha, segundo a pesquisadora, à realidade enfrentada por refugiadas em outras partes do mundo. “Em comparação com a população geral, elas estão mais suscetíveis à violência, são as mais negligenciadas”, afirma.

A médica espera que as duas etapas do estudo realizado em Boa Vista joguem luz sobre a situação de vulnerabilidade enfrentada pelas jovens migrantes e contribuam, consequentemente, para a for mulação de políticas públicas que combatam o problema.

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