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Campinas,
a
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Folias populares, a nacionalidade da dramaturgia brasileira

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Livro mostra como a crítica teatral discriminou e incorporou a brasilidade de folguedos

Em sua casa na cidade paulista de Olímpia, Maria Judite Narcizo exibe bandeira escoteira de companhia de Folia de Reis: matriz ibérica com elementos das culturas africanas e indígenas
Em sua casa na cidade paulista de Olímpia, Maria Judite Narcizo exibe bandeira escoteira de companhia de Folia de Reis: matriz ibérica com
elementos das culturas africanas e indígenas

Poética do teatro-folia, livro da professora e pesquisadora Larissa de Oliveira Neves, do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, acentua como a ideologia ocidentalista adentrou a crítica teatral brasileira, criando hierarquias culturais que discriminaram os espetáculos teatrais não elitizados ou distantes da tradição europeia.

A autora entende os elementos populares – costumes, literatura oral e ritos comemorativos ou até mitológicos – como fontes únicas de nacionalidade, indicando os possíveis diálogos, desde o período imperial, entre as folias e a dramaturgia produzida no Brasil.

Jornal da Unicamp – Em quais sentidos o livro é também uma análise sócio-histórica do povo brasileiro?

Larissa de Oliveira Neves – O livro, em sua primeira parte, aborda a relação histórica do teatro com a cultura popular brasileira, realizando uma revisão crítica ao mesmo tempo que questiona os direcionamentos muitas vezes eurocêntricos dos estudos e textos sobre teatro, elaborados no decorrer dos séculos XIX e XX. Assim, a análise sócio-histórica surge ao mostrar como as culturas coletivas populares, representadas principalmente pelas festas e pelos folguedos, mas ampliadas para os costumes como um todo, foram importantes para a formação de nossa nacionalidade, por estarem livres das amarras le- tradas que regiam as culturas das elites, súditas, durante tanto tempo, de Portugal. Ao mesmo tempo, mostra também como a cultura letrada das dramaturgias não raro bebia das fontes populares para sua composição, gerando peças inovadoras em linguagem cênica e textual.

JU – Como a pesquisa inclui dramaturgos brasileiros desde o século XIX? E quais foram as principais dificuldades para reunir todo o material bibliográfico?

Larissa de Oliveira Neves – Tive a sorte de realizar minhas pesquisas de mestrado e doutorado sobre a obra de um autor do século XIX chamado Arthur Azevedo (1855-1908). Digo sorte, porque não o conhecia antes de iniciar o mestrado, e agradeço muito à minha orientadora, professora Orna Messer Levin, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, por, dentre tantos ensinamentos, ter me sugerido que trabalhasse com esse autor em vez de minha proposição inicial.

Pelas mãos de Arthur Azevedo adentrei o universo da literatura dramática que projeta os costumes e festas populares. Descobri o quanto o teatro do século XIX é rico em performatividades que vêm da cultura de rua. Temos muitas peças escondidas em arquivos e não publicadas, tanto do século XIX como do XX. Selecionei para o livro as peças com as quais trabalho em sala de aula, ou que tenho investigado mais detidamente no decorrer dos anos, porque minha intimidade com a leitura desses textos era muito grande.

Ao final, percebi que muitas são peças conhecidas por mim e por outros pesquisadores que se dedicam a analisar o teatro do século XIX, mas pouco conhecidas por um público mais ampliado. O desafio de localizar e divulgar dramaturgias escondidas e invisibilizadas faz parte, porém, de minhas pesquisas e de várias das pesquisas que tenho orientado.

JU – Por que razões pode-se dizer que os movimentos de vanguarda corroboraram a intersecção de uma dita “cul- tura popular e/ou oral” na dramaturgia brasileira?

Larissa de Oliveira Neves – A busca pela brasilidade tem sido um objetivo dos movimentos literários e artísticos brasileiros desde a Independência. Por termos passado mais de 300 anos como colônia, identificar o que nos torna brasileiros é uma questão intrigante para estudiosos e artistas. Assim, os movimentos de vanguarda do começo do século XX avançaram no pensamento e no conhecimento de como as culturas populares e orais formam a base de nosso modo de ser. Em especial, sempre se destacam os modernistas. Suas peças trazem tal estrutura. Um exemplo é O rei da vela, de Oswald de Andrade, que analiso no livro, mas podemos citar também a ópera Café, de Mário de Andrade.

No caso do teatro, tivemos o início de uma modernidade cênica a partir dos anos 1940, fruto, entre outros, do legado dos modernistas. Um dos pontos positivos da valorização da cultura popular e oral pelas vanguardas consistiu em aumentar a legitimação de tais formas de arte dentro de esferas oficiais, como escolas e universidades.

JU – Como você reconhece as folias como uma fonte de inspiração para a produção cênica brasileira e, além disso, como podemos recuperar o papel do espetáculo popular na constituição da identidade nacional?

Larissa de Oliveira Neves – Vou responder à segunda parte primeiro: o espetáculo popular participa da constituição da identidade nacional por vários motivos. Primeiramente, por ser acolhedor em sua estrutura. Assim, todas as pessoas passam a conhecer e participar de tais festas, como: carnaval, festas juninas, festas do boi, folias diversas. Na Festa do Divino que ocorria no Campo de Santana, no Rio de Janeiro, no século XIX, por exemplo, todas as classes sociais tinham momentos de união nas danças e teatralidades vivenciadas, na comida que era vendida ou partilhada, entre outros. Isso não significa que não houvesse discriminação racial e social, ou muita violência; significa que, no aspecto da música, da dança, da comida, da linguagem, a festa era um dos pontos em que as pessoas de diversas classes sociais e origens adquiriam um mesmo repertório cultural.

Outro motivo consiste no fato de que a maioria dos folguedos foi criada no Brasil, sendo fruto de suas matrizes étnicas africanas, de povos originários ou ibéricos. São formas novas de arte, cultura e convivência que se estabeleceram durante três séculos de Brasil colônia: só existem no Brasil e, portanto, são a cara de nossa nacionalidade. Muitas misturam, também, repertório que vem das três matrizes – a Folia de Reis, por exemplo, tem origem ibérica, mas suas formas brasileiras mistu- ram elementos das culturas africanas e indígenas, sendo algo que se forjou no Brasil de maneira única.

Por fim, para chegar agora à primeira parte da pergunta: grande parte dessas festas e manifestações artís- ticas, de fé e de identidade é performativa, com uso de máscaras, figurinos, elementos cênicos, indumentárias. Algumas têm enredos, personagens; todas são espetaculares em maior ou menor escala. As pessoas de teatro percebiam isso imediatamente. Assim, escrever peças que trazem estruturas dessas performatividades populares para a carpintaria dramatúrgica foi algo que aconteceu desde que se começou a escrever teatro no Brasil. O livro traz essa relação, que nomeio de teatro-folia. 

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Serviço: 

tulo: Poética do teatro-folia

Autora: Larissa de Oliveira Neves

Edição:

Páginas: 312

Formato: 14 x 21 cm

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