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Um mergulho na indústria da proteção

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Antropóloga investiga relações entre grupos do mercado de seguros

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A indústria da proteção, segundo a antropóloga Deborah Fromm, é complexa e heterogênea, envolvendo desde altos executivos até grupos clandestinos. Os atores que a compõem compartilham o fato de disputarem projetos de futuro para o país e precificarem a incerteza. Do nascimento à morte, são diversos os seguros oferecidos com o objetivo de lidar com o inesperado. Conflitos e alianças entre os diferentes grupos também foram estudados pela autora.

Em tese de doutorado, intitulada “Indústria da Proteção: sobre as interfaces entre seguro, segurança e seguridade” e defendida no programa de Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp, Fromm realizou uma etnografia multissituada, circulando por diversos grupos e em diferentes locais. A pesquisadora frequentou eventos de seguradoras, realizou entrevistas e estudou diversos materiais sobre o assunto para desenhar um panorama sobre o mundo da indústria da proteção.

“Comecei estudando a indústria de seguros e depois percebi que há uma indústria de proteção maior, que inclui atores formais e empresariais, mas também atores criminais, informais e estatais, das forças da ordem, das polícias, que começam a empreender e a atuar nesses mercados da segurança, tanto patrimonial como de seguridade social”, conta.

Além de situar visões políticas, estratégias de mercado, disputas e alianças, a pesquisadora evidenciou o fato de que há uma financeirização da vida e que a racionalidade do seguro tem efeitos na interface entre o público e o privado. Essa indústria, ainda, lida com as incertezas em relação ao futuro e tem relação com a criação dos Estados de Bem-Estar Social.

“O seguro enquanto uma tecnologia de reparação, de indenização e de socialização do risco teve um papel relevante na constituição do Estado de Bem-Estar Social. Ele tem uma função muito importante na social-democracia e na constituição dos sistemas de seguridade social. Mas uma contradição: ao mesmo tempo que é uma tecnologia central em termos de alívio da pobreza, também serve a um modelo de acumulação privada das grandes companhias”, explica a antropóloga, para quem a contradição também se expressa no fato de que quem pode pagar mais por um seguro nem sempre é quem está mais vulnerável.

O interesse de Fromm foi o de olhar as desigualdades a partir de grupos de elites e unir a discussão às questões de segurança pública e seguridade social. “A indústria, o tempo todo, conecta [as questões] porque as seguradoras vendem proteção, tanto patrimonial como no sentido de seguro-desemprego e outras formas de seguro. Meus interlocutores estavam tempo inteiro cruzando os temas da segurança pública com os de reformas estatais e de reformas do sistema de seguridade social”, diz.

A pesquisadora, no entanto, buscou fugir da dicotomia entre o público e o privado. Ela ressalta o fato de que há muitos modelos diferentes que não são necessariamente excludentes. “No Brasil, o seguro-saúde é um sistema público ao qual todos têm acesso. Sua criação, porém, não implicou uma decadência do seguro privado. Pelo contrário, seguro privado vem crescendo junto com a implementação do público”, exemplifica.

Conflitos e alianças

Fromm conta que pensava no poder “de cima para baixo”, com as grandes seguradoras ditando o mercado e influenciando políticas públicas — pressionando, por exemplo, por reformas estatais que fossem benéficas à expansão do mercado privado. Mas, ao realizar o trabalho de campo, percebeu que há uma disputa crescente no mercado.

“De um lado, há as elites instituídas tentando popularizar os seguros e, de outro, há atores empreendendo nos mercados populares e acumulando muito capital e representação política.” A disputa pela clientela se expressa no aumento de seguros vendidos a essa parcela da população: o seguro para pessoas de baixa renda bateu recorde em 2022, ultrapassando R$1 bilhão em receita.

Ela constatou também o crescimento das Associações de Proteção Veicular (APVs), constituídas como cooperativas e vistas como ameaças pelo mercado tradicional. Nesse meio desregulamentado, policiais, milicianos e agentes de segurança privada passaram a disputar clientela com as seguradoras.

Na tese, ao discutir o crescimento das APVs a par- tir do caso do roubo de um carro, Fromm cita o relato de um interlocutor para ilustrar como opera o serviço: “Quando você faz o boletim de ocorrência, o policial pergunta qual a seguradora e oferece os serviços [para a seguradora] de uma empresa recuperadora dele próprio ou parceira”.

A divergência entre ambos os grupos, diz, também se expressa politicamente. Enquanto os grupos do mercado emergente e mais popular declaram-se bolsonaristas, as elites tradicionais demonstram preferência pelas elites políticas da direita tradicional.

“Houve reverberações do conflito entre grandes instituições financeiras instituídas e o mundo da rua, o mundo da violência e dos mercados de proteção que têm que lidar com facções criminosas, com territórios controlados, com armamento e acionar a estrutura da força policial”, avalia.

Mas há relações entre ambos os grupos. “As grandes instituições precisam do trabalho mais ‘sujo’ da base, mas elas não controlam exatamente esses grupos sociais, que também se organizam politicamente e muitas vezes contestam os interesses dos grupos dominantes, adotando um discurso antissistema.”

Inovação do trabalho

A orientadora da tese foi a professora Taniele Rui. Ela assinala que o trabalho evidencia também as disputas entre as concepções sobre direitos e demonstra as vinculações entre os atores desse mercado. “Toda a tese mostra, por exemplo, como um empresário que mora em Alphaville, em São Paulo, e se desloca pela cidade de helicóptero está em conexão com o pessoal da rua. Para o estudo das elites e do poder, é algo novo”, afirma.

A professora também pontua que a inovação do trabalho é “a fusão da segurança, da seguridade, da perspectiva prática e empírica, todas inseridas na vida cotidiana e não apenas nas ideias”.

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