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A história da política que deu voz à agricultura familiar

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Socióloga investiga legado e fatores que resultaram na derrocada da Pnater

Os agricultores familiares representam atualmente 72% dos lavradores brasileiros
Os agricultores familiares representam atualmente 72% dos lavradores brasileiros (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

Por nove anos, de 2004 a 2013, a agricultura familiar teve voz no Brasil, contemplando desde o descendente de colonos europeus no Sul e no Sudeste até os moradores das comunidades quilombolas, passando por assentados da reforma agrária, silvicultores, pescadores e extrativistas. A Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater), lançada em 2004, foi singular sob diversos aspectos. As condições que a forjaram, seu legado e os fatores de sua derrocada foram investigados pela socióloga Carolina Rios Thomson, em sua pesquisa de doutorado, desenvolvida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Foi apenas no início do século XXI que o Estado promoveu uma política federal de extensão rural voltada exclusivamente para a agricultura familiar, com base na agroecologia, no ideário humanista do educador Paulo Freire e na participação da sociedade.

Orientada por Sonia Bergamasco, colaboradora do Centro de Estudos Rurais do IFCH e professora titular aposenta- da da Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri) da Unicamp, a pesquisa está integrada à linha de pesquisa Processos Sociais, Identidades e Representações do Mundo Rural, do IFCH. Segundo a orientadora, a tese, intitulada “(Im)Possibilidades da extensão rural para a agri- cultura familiar: uma análise dos ciclos de Ater no Brasil”, é “um trabalho essencial, que mostra o investimento do Estado em uma política necessária, reunindo dados inéditos”. Sua importância se deve, entre outros motivos, à abrangência do público contemplado. “Embora ocupem uma menor área, agricultores familiares são atualmente 72% dos lavradores brasileiros”, justifica Bergamasco.

Como um serviço de atendimento ao agricultor, a extensão rural abrange educação não formal, como formação e capacitação em agroecologia, gestão da propriedade, acesso a mercados, certiicação de orgânicos e cooperativismo. Possibilita, também, o acesso a políticas públicas — crédito agrícola, regularização fundiária, mercados institucionais —, além de fornecer orientações técnicas relacionadas à produção agropecuária, como prescrição de receituários agronômicos, manejos produtivos, entre outras atividades.

Muitas políticas em uma

A autora do estudo ressalta que a Pnater surgiu para atender realidades diversas, já que o agricultor familiar brasileiro é todo aquele que não seja médio ou grande produtor rural. “Territórios quilombolas, por exemplo, são de domínio coletivo. Só isso já mostra que é impossível aplicar uma mesma receita para todos”, esclarece.

Complexo, o programa contava com um comitê inserido no Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Agricultura Familiar (Condraf) e com conselhos responsáveis por levar as demandas de cada região ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).  Envolvia o lançamento de editais de projetos, feitos em conjunto com os agricultores, respeitando as características de sua realidade e seus saberes ancestrais. Entrava em cena a agroecologia e saía, portanto, o difusionismo produtivista propagado, sobretudo, no regime da ditadura militar, segundo o qual a extensão rural servia para instruir o agricultor – visto como um simplório, ignorante – a adotar práticas, técnicas, maquinários e insumos que visavam ao aumento da produção e do lucro.

Sem esse aparato, a Pnater não teria se legitimado junto à população, argumenta Bergamasco, cujas pesquisas são referência em desenvolvimento rural sustentável. “A estratégia tem de ser outra, porque a relação com a terra é diferente. O agricultor familiar vive no campo e do campo. São necessárias estratégias inteligentes para preservá-lo, porque é a herança dos seus filhos.” Por isso, defende a docente, os agricultores necessitam de uma extensão rural com projetos voltados para suas especificidades, de modo que tenham autonomia para discernir o que é bom para eles próprios.

A socióloga Carolina Rios Thomson, autora da tese: “É impossível aplicar uma mesma receita para todos”
A socióloga Carolina Rios Thomson, autora da tese: “É impossível aplicar uma mesma receita para todos” (Foto: Felipe Bezerra)

Conjuntura rara

Ao longo da pesquisa, Thomson efetuou um resgate das políticas de assistência técnica e extensão rural (denominadas Ater) dos séculos XX e XXI. Levantou e analisou todos os 1.936 contratos federais de extensão rural coordenados pelo MDA e pela Agência Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Anater); entrevistou funcionários do alto escalão do antigo MDA – incluindo o ex-ministro Miguel Rossetto – e obteve relatos confidenciais de extensionistas rurais que atuaram em fases distintas.

Partindo da interpretação da realidade brasileira feita pelo sociólogo Armando Boito, professor de Ciência Política do IFCH, e baseada na teoria do filósofo grego marxista Nicos Poulantzas, Thomson contextualiza as condições envolvidas na formação e no desmantelamento da Pnater. Assim, ela associa os diferentes ciclos de extensionismo rural dos séculos XX e  XXI aos sujeitos políticos e às orientações macroeconômicas que os determinaram.

Baseada na noção de Boito de que a classe dominante brasileira é dividida em frações, a pesquisadora defende que o apoio dado ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela burguesia interna — formada pelo agronegócio, a indústria e os bancos nacionais — foi resultado de uma ruptura no poder devido ao acirramento do neo-liberalismo ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Uma vez eleito, Lula transformou o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) em financiador desses grandes segmentos da burguesia interna e, como contrapartida, conseguiu posicionar e fun- damentar novas políticas públicas voltadas para as classes populares, como a Pnater.

Fogo amigo

Ao definir seu objeto de estudo, Thomson partiu da hipótese de que o Partido dos Trabalhadores (PT) não tinha intenção de concretizar a Pnater como política. Essa hipótese foi rapidamente refutada. “Entrevistei pessoas intrinsecamente ligadas à construção da Pnater, que foram categóricas ao confirmar o engajamento do governo. O presidente Lula, por exemplo, negociou diretamente com o então ministro da agricultura Roberto Rodrigues, do Mapa [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento], para que a extensão rural fosse exclusivamente dedicada à agricultura familiar e coordenada pelo MDA.” 

Lançada em um momento em que Lula estava em alta entre a burguesia interna e os partidos políticos que compunham o governo, não demorou muito tempo para a Pnater sofrer boicotes, incluindo até mesmo investigações do Tribunal de Contas da União (TCU) e pressões do MDA. Esse fogo amigo era parte de um fenômeno macroestrutural, inerente aos Estados capitalistas. “A partir da crise de 2008, para sustentar o apoio da burguesia interna, o governo cedeu. Como se diz, num cenário de farinha pouca, o pirão vai sempre primeiro para as classes dominantes.”

A Pnater foi sendo crescentemente descaracterizada, e, em 2010, a extensão rural passou a ser subsidiária do programa Brasil sem Miséria, para garantir a frágil popularidade da presidente Dilma Rousseff. Com a retirada do PT do poder, em 2016, a política de extensão rural para a agricultura familiar foi extinta.

UM POSSÍVEL RETORNO?

A professora Sonia Bergamasco, orientadora do estudo: “Trabalho essencial, que mostra o investimento do Estado em uma política necessária”
A professora Sonia Bergamasco, orientadora do estudo: “Trabalho essencial, que mostra o investimento do Estado em uma política necessária” (Foto: Felipe Bezerra)

Lula voltou a comandar o Executivo 20 anos depois da Pnater. Isso garantirá a retomada da política que, segundo a professora, revolucionou a agricultura familiar? Para Thomson, existe uma conjuntura favorável para esse retorno, pelo menos nos primeiros anos de governo. “Vejo que pelo menos uma parte da burguesia interna preocupada em frear o processo de neoliberalismo ortodoxo.” O cenário, pondera, é outro. “Historicamente, as classes dominantes levam em conta o dinheiro acima de tudo. Mas, recentemente, a questão ideológica tem pesado”, argumenta.

A socióloga espera que a publicação de sua dissertação possa servir de subsídio para gestores públicos, governo e movimentos sociais ao elaborarem seus programas. Na academia e nos cursos técnicos, já há interesse, conta a autora. “Já recebemos contatos de professores. Principalmente por se tratar de um conteúdo que engloba o governo [Jair] Bolsonaro.”

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