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Estudo destaca papel de sensor de nutrientes em casos graves de covid

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De acordo com o estudo, a chave para a infecção está em uma via que emite sinais para que as células produzam proteínas

Os professores Fernando Simabuco (à esq.) e Henrique Marques-Souza: contribuindo para a Força-Tarefa contra a Covid-19 da Unicamp
Os professores Fernando Simabuco (à esq.) e Henrique Marques-Souza: contribuindo para a Força-Tarefa contra a Covid-19 da Unicamp (Foto: Antoninho Perri)

Desde que a pandemia de covid-19 começou, ficou bastante evidente que o vírus SARS-CoV-2 afetava com mais severidade indivíduos com comorbidades preexistentes, como diabetes, obesidade e doenças cardiorrespiratórias. Ao mesmo tempo, pacientes que praticavam atividades físicas tendiam a desenvolver apenas as formas leves da doença. Na época, não estava muito claro o que causava essa diferença de prognóstico, mas, agora, uma pesquisa liderada pela Unicamp e publicada no periódico Current Issues in Molecular Biology pode ter desvendado o mecanismo por trás desse efeito.

De acordo com o estudo, a chave para a infecção está em uma via chamada Alvo Mamífero da Rapamicina (mTOR, do inglês mammalian Target of Rapamycin). Essa via funciona como uma espécie de sensor, que detecta a presença de nutrientes no organismo e envia sinais para que as células produzam proteínas – as moléculas responsáveis pelos seus processos biológicos. “Do ponto de vista fisiológico, a mTOR avisa para as células que está tudo bem e que é momento de crescerem e proliferarem. Ou seja, em situações de oferta de nutrientes como o estado após refeições, a via da mTOR está ativa”, explica o docente da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Fernando Simabuco, que é um dos autores do artigo, desenvolvido quando era pesquisador na Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA). 

De acordo com Simabuco, a literatura científica demonstrava que alterações nessa via estão relacionadas a doenças como o câncer, uma proliferação de células anormais autorizada pela mTOR. No entanto, a mTOR também influencia a autofagia, processo em que células degradam e reciclam seus componentes, destruindo proteínas e organelas danificadas. Quando há uma redução de nutrientes no organismo, a mTOR fica inativada e, como consequência, as células reciclam as suas próprias proteínas deficientes para enviar nutrientes para o sangue. Isso significa que mTOR e autofagia têm uma relação mutuamente excludente: quando a primeira está alta, a segunda está baixa e vice-versa. 

Como os vírus são parasitas que usam a célula para produzir proteína e se proliferarem, os autores questionaram se, tal como no caso de uma célula tumoral, essa proliferação estava relacionada à mTOR. Um indício já havia sido obtido pela equipe do professor Henrique Marques-Souza, do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. Os pesquisadores elaboraram uma técnica para detecção do RNA do SARS-CoV-2 nas células e, por meio dela, perceberam a presença do vírus no autofagossomo, a organela onde a autofagia ocorre. “Eu costumo dizer que esse compartimento é como uma lata de lixo reciclável. E nós estranhamos a presença dele lá pois, se o mecanismo da autofagia estivesse ativo, o vírus teria sido degradado”, comenta o docente.

Experimento em laboratório do Instituto de Biologia: pesquisadores elaboraram uma técnica para detecção do RNA do SARS-CoV-21 nas células
Experimento em laboratório do Instituto de Biologia: pesquisadores elaboraram uma técnica para detecção do RNA do SARS-CoV-21 nas células (Foto: Felipe Bezerra)

A pesquisa

Com essa informação em mãos, os pesquisadores reuniram uma lista com as dez comorbidades mais frequentes em pacientes que faleceram de covid-19 – o que inclui enfermidades como hipertensão, demência, obesidade, diabetes e acidente vascular cerebral (AVC), além de câncer e doenças cardiorrespiratórias, renais e autoimunes – para verificar se alguma delas tinha relação com a mTOR elevada. Investigando na literatura científica, os cientistas descobriram que todas as patologias possuíam uma via mTOR cronicamente ativada, o que significa que, nessas enfermidades, o mecanismo está constantemente alto e, consequentemente, com o processo de autofagia prejudicado. 

Por meio de uma parceria com o Laboratório de Vírus Emergentes do IB-Unicamp, coordenado pelo professor José Módena, os pesquisadores também analisaram a infecção em uma cultura de células. Para tanto, uma amostra do vírus foi doada pelo professor Edison Luiz Durigon, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), e multiplicada em uma linhagem celular chamada Vero E6, oriunda das células epiteliais do rim de um macaco. A análise dessas células demonstrou níveis aumentados da via mTOR e de marcadores relacionados à síntese de proteínas, algo essencial para a propagação do vírus, além da presença do SARS-CoV-2 nos autofagossomos.

Os autores ainda analisaram dados públicos de pessoas com covid-19, a partir de uma parceria com a Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP. Para tanto, os pesquisadores Helder Nakaya e Thomaz Luscher Dias utilizaram dados de sequenciamento de células únicas (Single Cell Sequencing, no original em inglês) para analisar como os genes estavam expressos em cada paciente e se a célula observada estava ou não infectada pelo vírus. Essa etapa revelou que, em pacientes com quadros severos, tanto as células infectadas quanto as adjacentes tinham genes de sinalização mTOR ativados e fluxo de autofagia reduzido.

Os dados obtidos sugerem que pessoas com quadros graves de covid-19 possuem ativação de mTOR independente da infecção, o que indicaria uma pré-disposição à severidade, mas também pode sugerir que o vírus é capaz de modificar essa via de forma sistêmica. “Por que a doença surgiu com tanto impacto?”, questiona o docente Marques-Souza. “Nosso trabalho sugere que, quando começou a infectar seres humanos e se espalhar pelo mundo, o vírus encontrou pessoas que tinham um ambiente celular muito propício para o seu desenvolvimento”, afirma.

Os resultados da pesquisa abrem uma discussão sobre possíveis maneiras de lidar com a covid-19. Alguns medicamentos inibem a mTOR, mas trazem consequências como supressão da imunidade, sendo comumente prescritos para pacientes transplantados. Por outro lado, os autores especulam que praticar atividades físicas ou jejuns e restrição calórica, que também inativam a mTOR e ativam a autofagia, poderia ser uma forma saudável e barata de, ao menos, evitar o desenvolvimento de sintomas graves da doença. “Nós não chegamos a testar esse tratamento, mas há uma associação entre eles. Para o paciente que já está gravemente acometido, talvez o jejum não seja uma intervenção adequada, mas exercício físico é uma prática que sabidamente previne uma série de doenças”, constata Simabuco.

A eficácia desses tratamentos precisaria ser comprovada com mais pesquisas laboratoriais e clínicas. No entanto, o foco da pesquisa de Marques-Souza e Simabuco não são mais os estudos com o vírus Sars-CoV-2. Seus temas de pesquisa originais são, respectivamente, o estudo de moléculas de RNA no controle de pragas agrícolas e a atuação da via mTOR no câncer. Os docentes, porém, temporariamente voltaram seus esforços de pesquisa para o vírus como uma forma de contribuir para a Força-Tarefa contra a Covid-19 da Unicamp. Ainda assim, esperam que a publicação do trabalho surta algum efeito na comunidade científica e que possa inspirar outros pesquisadores a continuarem os estudos sobre o tema. 

Leia a íntegra do artigo: 

Increased mTOR Signaling and Impaired Autophagic Flux Are Hallmarks of SARS-CoV-2 Infection

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