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Uma nova frente para estudos sobre os campos magnéticos de Urano e Netuno

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Pesquisa sobre gelo superiônico constata que fase da água tem mais facilidade de deformação do que se supunha

Composição com duas fotos de planetas em um fundo escuro.
Netuno (à esquerda) e Urano, os “gigantes do gelo”: planetas têm campos magnéticos destoantes de seus eixos de rotação (Fotos: Divulgação)

Vários fatores na dinâmica dos planetas intrigam os cientistas. No caso de Urano e Netuno, uma dessas características é o  comportamento de seus campos magnéticos. Conhecidos como “gigantes de gelo” por terem, originalmente, em sua composição uma grande porcentagem de substâncias na forma de gelo, os dois planetas chamam a atenção pelo fato de seus campos magnéticos serem destoantes de seus eixos de rotação. Urano tem uma diferença em torno de 45 graus e Netuno, em torno de 60.

A explicação estaria no efeito dínamo, teoria que descreve como a rotação e as correntes de convecção dos fluidos internos dos planetas conduzem eletricidade e geram campos magnéticos. As evidências apontam, porém, que o interior de Urano e Netuno é formado por gelo superiônico. Esse estado físico da água é obtido em temperaturas e pressões extremamente altas, na ordem de 2.000ºC a 5.000ºC e de 100 a 300 gigapascais, cerca de 1 milhão de vezes maior que a pressão atmosférica da Terra.

Até pouco tempo atrás, havia o consenso de que essa era uma forma bastante rígida da água. Entretanto, uma descoberta recente de pesquisadores do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW) da Unicamp aponta que o gelo superiônico tem facilidade para sofrer deformações e a característica de se comportar com fluidez muito maior do que se supunha.

Foto da capa de uma edição de revista com fundo vermelho.

A pesquisa foi realizada pelo professor Maurice de Koning e pelos pesquisadores Felipe Matusalém e Jéssica Santos Rego e foi destaque de capa da revista da Academia Nacional de Ciências (PNAS-Proceedings of the National Academy of Sciences) dos Estados Unidos.

Além dos três estados

Os estados físicos da água não se limitam aos conhecidos sólido, líquido e gasoso. O arranjo das moléculas e seu comportamento dependem das condições de temperatura e pressão. Conforme elas aumentam ou diminuem, o estado da água sofre alterações. Atualmente, entre sólidos e líquidos, são conhecidas 25 fases da água: 19 sólidas cristalinas, três sólidas amorfas e três líquidas, todas  diferentes entre si. Nos tipos cristalinos, as moléculas se organizam em um padrão regular, como em uma espécie de malha. Já nos tipos amorfos, elas se arranjam de forma aleatória, mas ainda rígida.

Nas fases superiônicas, a água é exposta  a condições extremas de temperatura e pressão, cenário que não existe na Terra, mas pode  ter encontrado em outros planetas. Nessas condições, as moléculas de água deixam de se comportar de forma única. Os íons de oxigênio passam a se organizar como cristal, enquanto os prótons de hidrogênio se comportam como líquido, fluindo por entre eles. 

Há várias fases superiônicas da água. A que se convencionou chamar de gelo superiônico foi teorizada no início dos anos 1990 e  verificada em laboratório em 2019, por meio de um experimento realizado por pesquisadores do Laboratório Nacional Lawrence Livermore e da Universidade de Rochester, nos Estados Unidos. 

Para reproduzir as condições extremas de temperatura e pressão, os cientistas lançaram feixes de lasers para gerar ondas de choque,  que comprimiram uma pequena quantidade de água até que essa atingisse as condições necessárias para obter o gelo superiônico. Por meio do estudo, foi possível verificar o comportamento distinto dos íons de oxigênio e dos prótons de hidrogênio.

A partir dessa descoberta, os pesquisadores da Unicamp passaram a investigar a resistência do gelo superiônico, analisando o quanto seria possível deformá-lo com base em um fenômeno chamado discordância. Esse fenômeno ocorre quando os átomos de um cristal se desalinham, criando um defeito que deforma sua estrutura. “O efeito da discordância explica como os metais podem ser deformados com mais facilidade na prática do que o previsto nos cálculos teóricos. No caso dos cristais superiônicos, também ocorrem esses defeitos que facilitam a deformação do sólido”, explica Maurice de Koning.

Foto de um homem que está de pé, ao lado de um servidor de computador. Ele é branco, tem o cabelo curto, está usando camiseta polo e calça jeans.
O professor Maurice de Koning: ineditismo do estudo rendeu a capa da PNAS (acima) (Fotos: Antonio Scarpinetti/Divulgação)

Para analisar a deformação mecânica, o grupo reproduziu simulações que já tinham sido realizadas com base em cálculos de mecânica quântica, em um experimento com cristais de 144 íons de oxigênio. São análises que verificam a velocidade da deformação gerada em relação à força aplicada contra os cristais.  Quanto mais rápida a alteração, menor seria a resistência do material. Como seria inviável realizar a mesma computação em uma escala maior de átomos, os pesquisadores recorreram ao aprendizado de máquina. Eles treinaram uma rede neural com os cálculos feitos na amostra de 144 íons de oxigênio, de forma que fossem obtidos resultados para até 80 mil íons.

O consenso existente era de que a viscosidade do gelo superiônico seria equivalente à do manto terrestre. Porém, os resultados obtidos foram surpreendentes. “Nossos cálculos indicaram que a viscosidade dos cristais de gelo superiônico é dez ordens de grandeza, ou seja, dez elevado a dez vezes, menor. Isso é muito menos do que o que era indicado pelos cálculos iniciais, que não levavam em conta esses defeitos que facilitaram a deformação do cristal”, explica De Koning, que celebra o resultado, inédito na área. “A principal contribuição do trabalho é mostrar que a fase superiônica flui muito mais rapidamente do que se esperava. É um resultado bastante novo, uma simulação nessa escala nunca foi feita. Também é um trabalho feito 100% na Unicamp.”

De Koning esclarece que a descoberta não é uma explicação para o comportamento dos campos magnéticos de Urano e Netuno. No entanto, ela abre espaço para a formulação de novas hipóteses. Mesmo que os estudos relacionados ao efeito dínamo considerem  grandes escalas, bem diferentes da escala atômica da pesquisa, o fato de o gelo superiônico ter uma viscosidade muito menor do que se supunha muda a forma de pensar as correntes de convecção que ocorrem no interior dos planetas. “Qualquer tratamento que ocorra dentro desses modelos de grande escala precisa levar esse novo dado em conta.” 

Ele também ressalta o caráter inovador do estudo, que explora os recursos da aprendizagem de máquina para atingir dimensões que não seriam possíveis por meio de métodos convencionais. “É uma jornada científica que começa em uma escala pequena e chega a uma conclusão que pode ter implicações importantes para estudos astronômicos, nos quais são consideradas escalas muito maiores”, comenta.

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