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Honoris Causa, Paulo Sérgio Pinheiro relembra os primórdios da Unicamp

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Cientista político fundou o Arquivo Edgard Leuenroth e organizou conferência histórica no período em que atuou como docente na Universidade

Foto de um homem que aparece de lado e do peito para cima. Ele tem o cabelo, barba e bigode brancos, usa terno claro e está sorrindo.
Paulo Sergio Pinheiro na cerimônia em que recebeu o título de Doutor Honoris Causa: "O IFCH era um barracão" (Foto: Antonio Scarpinetti)

“Um choque. Um grande choque.” É assim que Paulo Sérgio Pinheiro define o que sentiu ao desembarcar em Campinas, em maio de 1971, para iniciar sua  carreira como professor na Unicamp. Aos 27 anos de idade, o jovem carioca jamais havia estado na cidade – tampouco na universidade que o contratara e para a qual, então, afluíam dezenas de pesquisadores, brasileiros e estrangeiros. 

Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Pinheiro chegara de uma estada de quatro anos em Paris, onde acabara de doutorar-se pela Sciences Po, uma das mais respeitadas escolas de ciências sociais e políticas do mundo. Trazia consigo um segundo diploma, de graduação em Sociologia, emitido pela progressista Universidade de Vincennes, atual Universidade de Paris-VIII. 

Durante o período em que permaneceu  na capital francesa, Pinheiro foi testemunha privilegiada da história. Acompanhou in loco a eclosão da revolução estudantil de maio de 1968 e a debacle do gaullismo, em meio à efervescência intelectual característica dos ambientes que frequentava. Do sociólogo Alain Touraine ao filósofo Jean-Paul Sartre, viu e ouviu de perto alguns dos principais intelectuais do século XX.

Foi nesse contexto que o futuro professor da Unicamp recebeu as primeiras notícias sobre a então recém-criada instituição, trazidas pelos numerosos compatriotas que chegavam a Paris para realizar seus estudos de graduação e de pós-graduação. “O que o André [Maria  Pompeu] Villalobos contava era uma coisa fantástica”, lembra Pinheiro, referindo-se ao colega que se tornaria, anos mais tarde, coordenador-geral da Universidade na gestão do reitor José Martins Filho (1994-1998). 

Já contratado pela Unicamp, Villalobos indicou o nome do colega para Fausto Castilho, o “filósofo criativo e visionário”, nas palavras de Pinheiro, que se aliara a “um cientista humanista capaz de lidar com os militares” – o reitor Zeferino Vaz – para estruturar, em plena ditadura, um centro de pensamento crítico e alternativo na zona rural campineira. Tratava-se do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH), uma das primeiras unidades de ensino e pesquisa a entrar em funcionamento na nova universidade.

“Eu estava animadíssimo”, revela o mais recente recebedor do título de Doutor Honoris Causa da Unicamp, que lhe foi outorgado em cerimônia realizada no último dia 11 de outubro, ao falar de sua expectativa, há 51 anos, com relação ao emprego que se preparava para assumir. A despeito de nunca haver lecionado na vida, Pinheiro fora aceito por Castilho para integrar o corpo docente do IFCH – estava de malas prontas para Campinas.

Barão Geraldo, distrito campineiro escolhido para abrigar o campus da Unicamp, em nada lembrava o Saint-Germain-des-Prés, bairro de Paris em que se situava a Sciences Po. No lugar de ruas estreitas e prédios centenários, Pinheiro encontrou avenidas de terra que  ligavam o centro de Barão – “uma ‘cidade’ pequena, pequeníssima”, na descrição do cientista político – a um imenso canteiro de obras,
rodeado por milhares de pés de cana-de-açúcar. “Não existia quase nenhum prédio”, recorda. “O IFCH era um barracão.”

Passado o choque inicial, o novato professor logo se sentiu em casa. “Eu me acostumei facilmente”, conta. “Havia muita gente do exterior, um grupo bem cosmopolita. Era uma espécie de Paris no meio do canavial.”

Foto em preto e branco, aérea, que mostra alguns prédios em um campo de plantação.
Vista aérea do campus da Unicamp, em Barão Geraldo, no início da década de 1970: canteiro de obras rodeado por pés de cana-de-açúcar (Foto: Siarq/Unicamp)

O fato de Castilho ter conseguido reunir toda aquela plêiade de intelectuais, naquelas condições precárias, dizia muito sobre o filósofo, avalia Pinheiro. “Ele tinha o jeitão do Orson Welles”, compara, citando em seguida o hábito do diretor de fumar cigarros feitos à mão, motivo pelo qual sempre carregava consigo uma “maquininha de amassar fumo”. “Era uma figura extraordinária. Um realizador mágico. Nós embarcamos no projeto dele.”

Dentre as numerosas façanhas de Castilho, destaca-se a de haver levado, em 1960, para a Faculdade de Filosofia de Araraquara, onde lecionava antes de transferir-se para a Unicamp, ninguém menos que Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, então em visita ao Brasil. A célebre conferência proferida por Sartre na ocasião não somente deu origem a um  livro como também conferiu fama ao anfitrião do ilustre casal.

O respeito que Pinheiro e muitos de seus colegas nutriam por Castilho deixou-os em posição delicada quando as rusgas entre o chefe imediato e Zeferino Vaz – motivadas por questões de natureza regimental e amplificadas por divergências quanto aos contornos que deveria ter a nova universidade – escalaram a níveis insustentáveis. A querela culminou com a exoneração do filósofo da direção do IFCH e a posterior não renovação, em 1972, de seu contrato com a Unicamp. 

“Ninguém entendia aquela confusão toda”, rememora Pinheiro. “Havia a lealdade ao Fausto e, também, a necessidade de manter o  instituto – não apenas pelos nossos empregos, mas por um projeto que todo mundo abraçou. Muita gente tinha vindo da França, dos Estados Unidos, da Alemanha, da Espanha… para depois se suicidar?” 

Na avaliação do antigo subordinado, a retirada de Castilho do comando do IFCH “foi um desastre”, pois atrasou a consolidação do  instituto. “Agora, era um final previsível quando um diretor resolve derrubar o reitor – ainda mais o Zeferino Vaz, que era da confiança dos militares e um cientista respeitado mesmo por intelectuais que não tinham nada a ver com a ditadura.”

Composição com duas fotos. Na primeira, em preto e branco, um homem está de pé, falando ao microfone. Atrás dele há um mapa. Na segunda foto, há um homem que aparece de lado, do pescoço para cima. Ele é branco, tem o cabelo branco e usa camisa clara.
Zeferino Vaz (à esquerda) e Fausto Castilho (à direita): rusgas entre o reitor e o filósofo desencadearam uma das primeiras crises na Unicamp (Fotos: Siarq/Unicamp e Antonio Scarpinetti)

O filósofo, cujo nome hoje está estampado na entrada do principal auditório do IFCH e na fachada da Biblioteca de Obras Raras (Bora) da Unicamp, retornaria à Universidade em 1984, três anos depois da morte de Zeferino, e receberia, em 2000, o título de Professor Emérito da instituição. “Fiquei muito contente, como todo mundo, quando ele voltou para o Departamento de Filosofia”, afirma Pinheiro. “Pena que eu já não estava mais lá.” 

Pinheiro permaneceu na Unicamp até 1983, quando, já aprovado em concurso para lecionar na Universidade de São Paulo (USP), foi  trabalhar com Franco Montoro, que vencera a primeira eleição direta para o Palácio dos Bandeirantes em 20 anos. O cientista político só assumiria a sua posição na USP em 1987, após o término do mandato do governador. 

A profícua passagem de Pinheiro por Campinas foi marcada por dois feitos inimagináveis no contexto da ditadura militar e para cuja concretização o bom trânsito de Zeferino entre os generais foi decisivo. 

Um deles foi a aquisição, durante pesquisa feita em parceria com o historiador e colega docente Michael Hall, do acervo documental de Edgard Leuenroth, um dos principais militantes anarquistas do país na primeira metade do século XX. A obtenção do acervo pela Unicamp, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), na figura do sociólogo Azis Simão, resultou na criação, em 1974, do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), referência nacional e internacional para pesquisas sobre movimentos sociais,
sindicalismo e política.

Na origem do AEL estava o projeto de Pinheiro intitulado “Imagens e História da Industrialização em São Paulo”, que, em plena vigência do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), instrumento usado pela ditadura para calar opositores, recebia o apoio do ministro Severo Gomes, titular da pasta da Indústria e do Comércio e próximo de Zeferino. 

Pinheiro relata que o apoio do ministro à pesquisa deixou intrigado o então presidente da República, general Ernesto Geisel. Questionado, Severo teria respondido, “meio maroto”, segundo o cientista político: “Mas, general, como estudar a industrialização sem analisar os operários?”. Lembrando o episódio em seu discurso ao receber o título de Doutor Honoris Causa, Pinheiro ressaltou a coragem de Severo quando protegeu, em plena ditadura, “a história social e das lutas operárias, arrostando a censura, inabalável”.

O segundo feito que marcou a permanência de 12 anos de Pinheiro na Unicamp foi coordenar a organização, em 1975, da Conferência de História e Ciências Sociais, que reuniu em Campinas intelectuais renomados de várias partes do mundo, entre os quais o historiador
marxista Eric Hobsbawm.

 

Composição com três fotos. Em sentido horário, foto de um grupo de pessoas em um auditório; foto da capa de uma edição da revista Veja; foto de um grupo de homens que aparecem de pé e sorrindo.
Encontro na Reitoria de intelectuais estrangeiros que participaram da Conferência de História e Ciências Sociais, que foi capa da Veja
(acima, à direita) e reuniu centenas de espectadores (acima, à esquerda); abaixo: da esquerda para direira, na fileira da frente, Arno
Meyer, Guilhermo O’Donnell e Juan José Linz; atrás, Eric Hobsbawm, Rudolph de Jong e Kenneth Ericson (Fotos: Siarq/Unicamp)

Ao traçar um paralelo com o que fizera Fausto Castilho 15 anos antes, o cientista político minimiza a dimensão da sua proeza. “Acho que levar o Sartre para Araraquara foi uma ‘parada’ maior”, compara. “O Hobsbawm já era bem conhecido, mas não a celebridade que se tornou 10 ou 20 anos depois. Ele tinha alguns amigos brasileiros e curiosidade pelo Brasil. Não foi tão difícil convencê-lo a vir.”

A conferência transformou a Unicamp no palco do primeiro debate público sobre o autoritarismo a ser realizado no país desde 1964, ano em que os militares assumiram o poder. Pinheiro pondera que o fato de as discussões terem sido de cunho acadêmico “deixou a coisa
meio disfarçada”, dificultando que os representantes de órgãos de repressão infiltrados entre os ouvintes compreendessem a dimensão do que se passava. 

“Certamente havia agentes do SNI [Serviço Nacional de Informação] assistindo, como sempre ocorria na Unicamp”, relembra o  organizador da conferência. “Eles só não faziam alguma coisa mais drástica porque sabiam que iriam se complicar com o Zeferino, que era amigo do general [Gustavo] Moraes Rego [Reis], chefe da guarnição militar em Campinas.”

A reunião de uma tamanha constelação de intelectuais em Campinas chamou a atenção da imprensa de todo o país, a ponto de a Unicamp sair estampada na capa da Veja, principal revista de circulação nacional à época. Para além das ricas discussões, o encontro produziu alguns episódios memoráveis, como o célebre almoço em que Zeferino, apontando para um grupo de docentes do IFCH, teria perguntado a Hobsbawm, um eterno membro do Partido Comunista: “O senhor está vendo?”, recorda Pinheiro. “São todos de esquerda – mas são excelentes professores e pesquisadores.”

O cientista político considera “uma sorte” que à frente de todos aqueles docentes de esquerda estivesse um reitor como Zeferino. “Ele sabia muito bem com quem estava lidando, porque conhecia os nossos currículos e era quem assinava as nossas contratações”, afirma. “A Unicamp não poderia ter sido fundada por outra pessoa, durante a ditadura, que não alguém que tivesse legitimidade acadêmica, científica e contasse com certa tolerância por parte do establishment.” 

Discursando, por ocasião do recebimento do título de Doutor Honoris Causa, para uma plateia em que se destacavam alguns dos colegas e ex-alunos com quem conviveu em seus tempos de IFCH, Pinheiro definiu o que representaram, para ele, os anos vividos na “Paris” que florescia em meio ao canavial: “A experiência que abre a possibilidade do que se chama biografia é construída pelas conexões com outras pessoas. Depois de minha ida para Paris, foi a vinda para a Unicamp que me permitiu ter uma biografia”.

Um defensor dos direitos humanos

Foto de um homem que aparece do peito para cima. Ele é branco, tem cabelo, barba e bigode brancos, usa óculos, terno e gravata.
Paulo Sérgio Pinheiro discursa na ONU (Foto: ONU/Divulgação)

Paulo Sérgio Pinheiro nasceu no Rio de Janeiro em 1944. É bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), licenciado em Sociologia pela Universidade de Vincennes (França) e doutor em Ciência Política pela Sciences Po (França). Preside, desde 2011, a comissão independente internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) de investigação sobre a República Árabe da Síria, em Genebra. 

Na ONU, foi expert independente do secretário-geral para a preparação do Relatório Mundial sobre Violência contra Crianças, além de relator de direitos humanos para o Burundi e Myanmar.

É autor dos Princípios de Restituição de Moradia e Propriedade para Refugiados e Deslocados Internamente da ONU (“The Pinheiro Principles”) e integrou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Foi professor de Ciência Política na Unicamp, de 1971 a 1983, e na USP, entre 1987 e 2001, quando se aposentou. Na USP, foi um dos fundadores do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), do qual é pesquisador associado.

Lecionou, também, em numerosas universidades estrangeiras de prestígio, tais como Brown, Columbia e Notre Dame University (Estados Unidos), University of Oxford (Reino Unido) e École des hautes études en sciences sociales (França).

Foi ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos do governo Fernando Henrique Cardoso e integrou a Comissão Nacional da Verdade, de 2012 a 2014. Foi fundador e membro, de 1983 a 2016, da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos. Em 2018, participou da  fundação da Comissão de Defesa dos Direitos HumanosDom Paulo Evaristo Arns, da qual foi o primeiro presidente e permanece membro.

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