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Células de gordura humana são ‘reservatórios’ do vírus da covid-19

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Resultado de estudo é mais um passo para a compreensão da fisiopatologia do novo coronavírus

Foto mostra um homem olhando em um microscópio.
O professor Marcelo Mori, um dos integrantes do grupo de pesquisa, em laboratório no Instituto de Biologia (Foto: Felipe Bezerra)

Um estudo brasileiro com a participação de pesquisadores da Unicamp constatou que o vírus SARS-CoV-2, causador da covid-19, infecta o tecido adiposo humano (formado por células de gordura), contribuindo potencialmente para uma severidade maior da doença em pacientes obesos. A pesquisa, realizada no contexto da Força Tarefa Unicamp contra a Covid-19, também descobriu que células de gordura visceral, adjacentes aos órgãos internos do corpo, são mais suscetíveis à replicação do vírus do que as subcutâneas, localizadas abaixo da pele, embora o vírus consiga infectar ambos os tipos de tecido, alojando-se neles. 

O resultado é mais um passo para a compreensão da fisiopatologia do novo coronavírus e ajuda a explicar por que a população masculina tem sido mais afetada pela forma grave da doença. Apesar de mulheres possuírem, na média, mais adiposidade do que os homens, a distribuição dessas células no corpo difere de acordo com os gêneros, com mulheres tendendo a possuir maior quantidade de tecido adiposo subcutâneo e homens, maior massa visceral. 

Segundo um dos integrantes do grupo de pesquisa, o docente do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp Marcelo Mori, desde o início da pandemia já se sabia que o vírus tinha um efeito extrapulmonar e que o acúmulo de gordura estava relacionado ao agravamento da doença. Com isso, foi levantada a hipótese de que o tecido adiposo, especialmente o visceral, poderia ser um reservatório para o vírus. “Porque, já naquele momento, sabíamos que os principais fatores de risco eram o envelhecimento, a obesidade e o diabetes não controlado, condições que normalmente se caracterizam pelo acúmulo alterado de gordura”, explica.

Para testar essa suposição, o grupo realizou testes com tecido adiposo humano. Em um primeiro momento, eles obtiveram 47 amostras de gordura da região torácica de pacientes que haviam falecido de covid-19 no Hospital das Clínicas da USP de Ribeirão Preto, detectando a presença do RNA viral em 23 exemplares, ou 49% do total. Confirmada a presença do vírus nas células, verificou-se, a seguir, se a infecção ocorria de forma similar em diferentes tipos de tecido adiposo ou se variava de acordo com a sua origem. 

Nessa etapa, os cientistas realizaram  experimentos com células de gordura obtidas de três doadores que haviam sido submetidos, antes da pandemia, a cirurgia abdominal no Hospital de Clínicas da Unicamp. “Em um contexto controlado, in vitro, nós expusemos essas células ao vírus”, explica o professor Mori. “Diminuímos ao máximo possível o número de variáveis para avaliar se células de gordura provenientes de duas regiões anatômicas diferentes tinham reações distintas ao vírus e confirmamos que a visceral tem uma susceptibilidade intrínseca maior à infecção”, revela.

Resultados

O estudo conseguiu detectar 240 vezes mais RNA do SARS-CoV-2 e 770 vezes mais partículas virais infectantes nas células viscerais quando comparadas às subcutâneas. Isso significa que o primeiro tecido é mais suscetível que o segundo à replicação do vírus e tem um potencial maior de infectar outras células. Essa maior quantidade de células infectadas está associada a uma maior produção de citocinas, que são mediadores inflamatórios responsáveis por conter a infecção, mas que, em níveis elevados, podem causar danos aos tecidos. De acordo com Marcelo Mori, a chamada tempestade de citocinas (quando há uma resposta inflamatória excessiva do corpo) é um importante gatilho na progressão para o quadro grave da covid-19, porque leva à inflamação local e sistêmica, o que causa morte tecidual e disfunções cardiovasculares e metabólicas. “A gordura visceral é uma fonte importante de produção de citocinas, mas, quando o vírus infecta esse tecido, há produção ainda maior, o que pode gerar uma inflamação ainda mais alta”, esclarece.

No caso da gordura subcutânea, o estudo demonstrou que a infecção pelo SARS-CoV-2 desencadeia uma resposta celular de inibição da lipólise, que é o processo de quebra de gordura (triglicerídeos) para liberação de ácidos graxos e glicerol, os quais, por sua vez, participam das vias metabólicas e alimentam outras células do organismo. Embora também gere efeitos no metabolismo, esse processo inibe uma via que interfere na capacidade de replicação do vírus. Por isso, os cientistas acreditam que essa pode ser uma forma de resposta antiviral da célula adiposa subcutânea ao SARS-CoV-2.

Mori explica que o estudo brasileiro é importante, porque adiciona uma nova camada de conhecimento a investigações anteriores sobre o efeito do vírus nas células de gordura. “Confiamos que nossos números, que evidenciam a frequência relativamente alta de infecção do tecido adiposo em pacientes com covid-19, estejam próximos do real, porque outros estudos fizeram o mesmo tipo de análise e encontraram mais ou menos os mesmos resultados. Isso sugere que o tecido adiposo é um sítio importante de infecção extrapulmonar”, avalia.

Linhagens

Um terceiro passo da pesquisa envolveu a comparação dos efeitos, nas células de gordura, das variantes que causaram o maior número de mortes no Brasil. Essa análise revelou que a linhagem gama, identificada em Manaus em novembro de 2020, tinha capacidade de propagação e indução de citocinas menor do que a linhagem ancestral, que foi a primeira a entrar no país, em fevereiro do mesmo ano. Tal resultado denota uma diminuição da gravidade da infecção do SARS-CoV-2 no tecido adiposo.

Se, por um lado, esses dados parecem surpreendentes, devido ao número de fatalidades causadas pela linhagem de Manaus, Mori explica que, de um ponto de vista biológico, a atenuação da gravidade da infecção viral é algo esperado. À medida que o vírus evolui, há uma tendência de a doença ser atenuada, porque isso favorece a propagação e sobrevivência do patógeno no ar e nos hospedeiros. “Isso também denota uma importância funcional, porque, se há a atenuação de uma característica fenotípica, você espera que esse fenômeno seja relevante para a fisiopatologia da doença”, esclarece.

Com a vacinação e a queda no número de mortes provocadas pela doença, a perspectiva é que os dados obtidos ajudem no estudo e tratamento da Síndrome da Covid Longa, em que pacientes continuam com sintomas mesmo após o fim da infecção. Embora muitas pessoas tenham se curado da síndrome respiratória, ainda se sabe muito pouco sobre o que acontece a médio e longo prazo no que diz respeito à infecção em outras regiões do corpo. Para isso, são necessários estudos com amostras maiores, o que vem sendo realizado por vários grupos no mundo.

Por sua vez, o Laboratório de Biologia do Envelhecimento (LaBE), que Mori coordena, visa utilizar a infecção viral para entender a biologia do tecido adiposo. “Por exemplo, o que causa a inibição da lipólise? Saber isso pode ter um impacto para além de doenças infecciosas, porque encontrar mecanismos de regulação de lipólise pode ajudar a entender como o tecido adiposo funciona. É esse caminho que  estamos seguindo”, finaliza. 

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