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Em busca da arte total

O multifacetado Flávio de Carvalho – pintor, arquiteto, designer, escultor,
escritor, cenógrafo, fazendeiro, empresário – tinha acabado de se formar engenheiro em Newcastle (Inglaterra) e trabalhava no escritório de Ramos Azevedo, em São Paulo. Costumava circular por ali só de short, um despudor para a época, alheio à indignação das finíssimas senhoras. Diante de um abaixo-assinado para que deixasse o prédio, reagiu: “Vocês só me tiram daqui a bala... mas vai ser difícil, porque vou instalar uma metralhadora em meu ateliê”. No dia seguinte, um anúncio em destaque no Diário Popular provocou um frêmito de pânico no velho edifício: “Compra-se uma metralhadora. Tratar com Flávio de Carvalho no Instituto”.

Este episódio, por si, reflete o espírito contestador e irônico do artista. E o anúncio do jornal foi uma das últimas e divertidas relíquias pinçadas por Flávia Carneiro Leão, supervisora do Centro de Documentação “Alexandre Eulalio” (Cedae), nos meses de mutirão para tratar o acervo pessoal de um dos nomes mais importantes do Modernismo Brasileiro e, também, um dos menos conhecidos. Parte desta documentação, que revela o processo de criação e facetas então desconhecidas do artista, está na exposição “Flávio de Carvalho, em busca da arte total”, que fica aberta até 15 de outubro no Cedae – órgão vinculado ao Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

Flávia Leão conta que o artista morreu em 1973 e, não fosse a persistência da Unicamp em abrigar e conservar o espólio documental, informações preciosas para as áreas de artes, arquitetura e ciências humanas teriam se perdido. “Ele vai muito além da moldura de ‘artista excêntrico’. Estudioso de Freud, de Darwin e do antropólogo James Frazer, reuniu psicanálise, biologia e antropologia para fundamentar seu pensamento. A amplitude de seus interesses lhe possibilitou uma abordagem da arte como poucos haviam praticado até então no Brasil: a da experimentação de diversas linguagens artísticas. Por isso, o subtítulo da exposição: em busca da arte total”.

Flávio de Carvalho é autor de retratos e nus de alto valor de mercado e que estão em museus e coleções particulares, como a impactante série “Minha mãe morrendo” – encontram-se no Cedae desenhos da chamada Série Trágica, que ele próprio refez anos depois. Entretanto, as “experiências” é que colocavam o artista nas páginas dos jornais. “Ele inaugurou no país o conceito da performance como conhecemos hoje, procurando de modo provocativo algo sobre o que refletir. Em sua primeira experiência, caminhou na contramão de uma procissão e teve que se esconder em uma leiteria para não ser linchado, só saindo sob proteção da polícia. A resultante do episódiofoi o livro ‘Experiência nº 2 – A psicologia das massas’, diretamente influenciado por Freud”.

Há documentos que mostram a faceta do Flávio de Carvalho estilista, vestindo-se com a ajuda dos atores Paulo Autran e Tônia Carrero e depois percorrendo as ruas de São Paulo de saiote e meias arrastão. Para Flávia Leão, tão surpreendente quanto a performance é a descrição que fez do projeto “New Look – Traje de verão para homens”. “A blusa tem mangas largas e um mecanismo que bombeia o ar para dentro da roupa, conforme o movimento dos braços. Ele explica que o tecido se lava em três minutos e seca em três horas, com maior higiene e economia. A meia é para esconder as varizes. E as cores vivas do traje substituem desejos de agressão, tendendo a evitar guerras”.

Arquiteto de poucas obras
De acordo com a supervisora do Cedae, Flávio de Carvalho ficou mais conhecido como arquiteto, mas apesar da grande quantidade de projetos, pouquíssimos resultaram em obras. “Ele construiu apenas a sua casa em Valinhos e um conjunto de sobrados na alameda Lorena, em São Paulo. Os projetos serviram sobretudo para fomentar a discussão sobre arte e arquitetura. Nos folhetos de propaganda que ele mesmo produzia, vendia a casa não pela área construída, mas pelo bem-estar espiritual que propiciava: enaltecia cores que incitavam a sentimentos de tranquilidade, defendia o uso de cortinas claras para refletir a luz exterior e pretas, verdes ou azuis escuro para absorver a luz interior e conservar o ambiente fresco e arejado”. 

O desejo de colocar sua arquitetura em discussão levou Flávio de Carvalho a participar de vários concursos oficiais, adotando pseudônimos como “Eficácia”. Flávia Leão lembra que um dos primeiros projetos foi do palácio do governo paulista. “Eram projetos arquitetônicos monumentais, mas ele nunca ganhou concurso algum. Suas participações em concursos podem ser entendidas como uma forma de divulgar o projeto moderno. O palácio teria holofotes para guiar aviões noturnos, baterias antiaéreas, catapultas. Se o medo da guerra pairava no ar, ao mesmo tempo, o projeto concebia um salão de festas com pista de dança para cinco mil pessoas, além de um jardim elevado com espécimes da mata brasileira e numerosos pássaros”.  

Fascinado pelo alumínio
O projeto da casa-sede da fazenda Capuava, em Valinhos, onde Flávio de Carvalho morou, é de 1929, sendo que a construção foi concluída em 1938. Fiel ao seu slogan “não copio, não imito, não adapto”, o arquiteto forrou a cozinha e o banheiro com placas de alumínio – por conta da higiene e da facilidade em moldá-lo – muito antes do aço inox de hoje. “É bom lembrar que ele era dono da fábrica Tropicalumínio (e de uma cerâmica). E, sendo designer, projetou cada móvel, cada peça de decoração, cada arandela. É uma residência completamente diferenciada, emblemática”.  

Flávia Leão conheceu a casa, mas quando já estava desfigurada. Daí seu encanto ao se deparar com as fotografias coloridas do tempo em que o artista lá residiu. “A porta de entrada tem perto de cinco metros de altura. Havia uma lareira peculiar, no formato de cone e, lógico, revestida de alumínio. Quando a chapa esquentava, um sistema borrifava água e criava vapor, que era iluminado por lâmpadas coloridas. Havia a preocupação do arquiteto em umedecer o ar ao redor da lareira, e do cenógrafo em produzir um efeito de iluminação”.

Agitador
O espírito inquieto de Flávio de Carvalho fez dele um grande animador do meio artístico paulista nos anos 1930, sendo fundador do Teatro Experiência e do Clube dos Artistas Modernos (CAM) – um espaço de encontro e de manifestações culturais, com grande vocação crítica e anárquica: “Detestamos elites; não temos sócios doadores”, provocava. “O material sobre o CAM é fantástico, com fotografias, recortes de jornais, relatos dos saraus etc. Há inclusive uma documentação sobre um jantar em que foi servida uma sopa de cebola, acompanhada de pão e vinho. Quem era o cozinheiro? Flávio de Carvalho, paramentado com a dolmã de chef, junto com a receita que ele mesmo preparou”, conta Flávia Leão. 

Carvalho marcou grande presença no teatro. Sua peça “O bailado do deus morto”, remetendo às nossas origens em que a morte era celebrada – sendo que a de Deus simbolizava o fim da esperança – provocou o fechamento do teatro pela polícia na noite de estreia, seguido de uma polêmica entre o artista e o bispo de São Paulo. Detalhe: no cenário havia um totem, de alumínio. A Bienal de São Paulo, que começa em 25 de setembro, convidou José Celso Martinez e o Teatro Oficina para reencenar a peça na casa de Valinhos, com transmissão ao vivo para o pavilhão no Ibirapuera.    

Vale saber, por fim, que Flávio de Carvalho também filmou as expedições que fez à Amazônia. As fitas, inéditas, foram digitalizadas através de uma parceria com a TV Cultura e com a Fundação Bienal de São Paulo. “Além de maletas especiais, ele projetou tambores de alumínio para transportar o material de filmagem. A intenção era a de mergulhá-los no rio para mantê-los em temperatura constante. As imagens das expedições testemunham, entre outras coisas, o primeiro contato com uma tribo do alto rio Negro.”

O esforço para adquirir o acervo

O empenho do Cedae em adquirir o acervo pessoal de Flávio de Carvalho remonta aos anos 1980, diante da informação de que documentos estavam abandonados na sede da fazenda Capuava, em Valinhos. Depois de negociações com a família, a Universidade conseguiu recolher, em regime de comodato, 1.113 livros, 16 manuscritos, 264 recortes de jornal, 110 fotos e 103 desenhos.

Embora esse conjunto representasse apenas parte do espólio documental de Carvalho, o Cedae reconheceu sua importância para a pesquisa em ciências humanas, arquitetura e artes, acabando por adquiri-lo em 1992. Em 2003, o Centro recebeu proposta de venda de uma segunda parte deste arquivo e buscou recursos para reunir o acervo, então ameaçado de desmembramento. Somente no final de 2009, entretanto, a Universidade conseguiu fechar a compra de todo o material.



 
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