| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU |Edição 343 - 13 a 19 de novembro de 2006
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Livro apresenta os vestígios materiais deixados
pelas ditaduras militares na América Latina

A arqueologia da repressão

Pedro Paulo Funari: a arqueologia deixou de centrar seus estudos na pré-história (Fotos: Divulgação/Antoninho Perri)Está sendo traduzido para o português o livro Arqueologia da repressão e a resistência na América Latina (1960-1980), que acaba de ser lançado na Argentina, em versão inicial destinada aos países de língua espanhola no continente. “Provavelmente, quando a maioria das pessoas pensa em arqueologia, uma das primeiras idéias que vêm à cabeça é Indiana Jones e a busca de algum tesouro de uma civilização remota. Isto se justifica porque apenas nas últimas décadas a arqueologia deixou de centrar seus estudos na pré-história”, escreve na introdução o professor Pedro Paulo Funari, do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da Unicamp. Funari organizou o livro juntamente com o argentino Andrés Zarankin, seu ex-aluno de doutorado na Unicamp e hoje professor da UFMG.

Ciência traz uma visão alternativa à história documental

O lançamento da editora da Universidade Nacional de Catamarca faz parte das solenidades evocando os 30 anos do golpe militar na Argentina, promovidas pela Secretaria de Direitos Humanos daquele país. “O livro dá um testemunho de como a arqueologia e a antropologia forense se expandiram e constituem na atualidade um instrumento fundamental para o estudo das seqüelas do terrorismo de estado e para o avanço da justiça em países da América Latina”, ressalta a entidade governamental. “Os trinta anos do golpe na Argentina levam à reflexão e à reafirmação da democracia em uma região do mundo que precisa assegurar o respeito aos direitos humanos no dia-a-dia”, acrescenta o organizador da obra.

Pedro Paulo Funari explica que a arqueologia, entendida como o estudo da sociedade através da cultura material, possibilita gerar visões alternativas à história escrita, independente de variáveis como o espaço e o tempo: “Tradicionalmente, a história, ao trabalhar majoritariamente com fontes escritas originárias do poder, apresenta uma visão parcial e sectária do passado, deixando de fora segmentos considerados marginais ou sem importância, tais como as mulheres, as crianças, certos grupos étnicos e religiosos e as classes exploradas, que constituem os chamados indivíduos ou grupos sem história. Democrática, a arqueologia estuda o que todas as pessoas produzem: restos materiais”, afirma.

Capa do livro organizado por Funari e Andrés Zarankin, que já está sendo traduzido para o portuguêsSegundo o professor da Unicamp, o livro, que retrata o terrorismo de estado e a lógica da repressão na América Latina, contribui com a antropologia forense por revelar a verdade individual de vítimas da repressão. “A arqueologia e a antropologia forense trazem para muitas famílias a esperança de recuperar a história e os restos mortais de entes desaparecidos”, observa. Os capítulos são assinados por estudiosos da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, e também de países como México e Venezuela, que não foram submetidos a ditaduras militares mas onde houve, igualmente, violação dos direitos humanos.

Seqüelas – Em seguida à revolução cubana (1959) e até meados dos anos 80, as ditaduras disseminaram-se na América Latina. O terrorismo de estado, por meio da supressão das liberdades e a repressão aos movimentos de esquerda, deixou sérias seqüelas principalmente em países como a Argentina, onde entidades buscam uma forma de reparação dos danos. As fontes de estudo das ditaduras latino-americanas geralmente são os documentos escritos, provenientes principalmente de arquivos de órgãos de repressão, e a história oral, reunida através de entrevistas com vítimas sobreviventes ou testemunhas da época de repressão.

Na opinião de Funari, estas duas fontes, embora importantes, oferecem problemas. Segundo ele, muitos documentos escritos desapareceram e os que restaram não registram episódios que comprometam os órgãos de repressão, enquanto a história oral está sujeita aos ruídos de seqüelas físicas e psicológicas por parte dos depoentes. Já a arqueologia, observa o professor, se detém aos vestígios materiais: os restos mortais dos desaparecidos encontrados em cemitérios clandestinos, valas comuns ou enterrados sem identificação, que permitem a identificação das vítimas ou pelos menos da causa da morte; e os sinais deixados em prisões oficiais ou clandestinas, muito comuns na Argentina.

Arqueólogo emprega o georradar para precisar locais de sepultamentoCom o fim das ditaduras, os centros de detenção clandestina praticamente desapareceram, pois não havia interesse em mantê-los expostos. No entanto, o professor da Unicamp informa que tais edifícios, ainda que parcialmente destruídos pelas transformações urbanas, preservam paredes com grafites que permitem localizá-los. Relatos de ex-prisioneiros ajudam a levantar inclusive as plantas originais, com seus recintos de detenção, de tortura e da guarda. Trata-se de vestígios ambientais e humanos que ajudam a reconstruir e compreender este passado negro e recente da América Latina.

Crenças – “A arqueologia traz informações que não constam de documentos escritos e orais, ou que são diferentes e mostram até contradições. Pessoas acusadas de comunistas, por exemplo, fizeram grafites com imagens religiosas, revelando crenças que não surgem em outros testemunhos. O nazismo não deixou documentos ordenando a morte dos judeus, ao passo que a memória é falha, inclusive porque as vítimas nem sempre desejam lembrar o que sofreram. Já a documentação material mostra fatos”, insiste o pesquisador do NEE.

Um aspecto da arqueologia ressaltado por Pedro Funari é o envolvimento com grupos de vítimas ou de parentes de desaparecidos, promovendo uma interface da ciência com a sociedade, cuja participação muitas vezes é fundamental para a identificação dos corpos. Há ocasiões, também, em que o arqueólogo evita contrariar expectativas. “Em Buenos Aires, uma senhora que acompanhava as escavações desmaiou ao ver uma camiseta, julgando que fosse do filho desaparecido. As análises, porém, mostraram que a roupa era de época posterior. A mãe não soube deste detalhe, já que naturalmente quis guardar a camiseta; o pesquisador não tinha o direito de se apropriar daquela imagem”, ilustra o professor.

Outros objetos escavados, aparentemente sem importância para o pesquisador, vêm carregados de sentimentos e significados. “Mesmo que desvinculados do período investigado, esses objetos remetem sobreviventes ao passado de repressão. Como por exemplo, as bolinhas de gude de uma escavação, associadas aos jogos de pingue-pingue com que se divertiam os guardas na prisão. Ouvir o pingue-pongue da bola era um alívio para os prisioneiros, que sabiam que não haveria tortura enquanto aquele barulho perdurasse. São acontecimentos que não seriam resgatados sem a presença dos vestígios materiais e das testemunhas. Daí a importância do trabalho com as vítimas e parentes”.

Calendários contando os dias na prisão ou marcando a data em que termina a penaDuas versões – A versão em português de Arqueología de la represión y la resistência em América Latina deverá ser publicada com apoio do Memorial da América Latina do Estado de São Paulo. A obra também pode ganhar tradução em inglês, através de uma editora norte-americana que já publicou um trabalho de Pedro Paulo Funari e Andrés Zarankin sobre teoria arqueológica. Esta editora pretende incluir Arqueologia da repressão em uma coleção de arqueologia histórica. “O tema das ditaduras na América Latina interessa a um público bastante diversificado e não apenas a estudiosos”, diz Funari.
O pesquisador da Unicamp lembra que as ditaduras representam um passado que atingiu muita gente e que ainda nos atinge, e por isso a importância do trabalho de resgate apresentado no livro. “A tortura, a arbitrariedade e a supressão dos direitos humanos são inadmissíveis sob qualquer alegação. Mas continuam sendo praticados, em diferentes contextos, e os motivos não deixam de ser políticos”.


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