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Timoneiros em mar revolto
A prudência, a retórica e a história nas obras
dos florentinos Maquiavel e Guicciardini

Os dois historiadores italianos de maior expressão do Renascimento, Nicolau Maquiavel (em italiano Niccolò Machiavelli) (1469-1527) e Francesco Guicciardini (1483-540), se inspiraram nos problemas políticos do seu tempo para repensar um conjunto de temas como a prudência, a retórica e a própria história. Para que se tente compreender a obra de ambos com base no critério do verossímil histórico, ou seja, o que podem ter representado em seus contextos originais de elocução, é importante compreender o que significam os conceitos que estruturam essas obras e saber compreendê-los na sua diferença.

Fazer uma história do conceito de prudência, por exemplo, é tentar entender como ele se transformou ao longo dos tempos, sem, contudo, deixar de ser uma categoria central para a análise política na Antiguidade e na Época Moderna. Para ambos, tal conceito é fundamental para se assimilar como proceder à análise política. “O que eles faziam era uma análise prudencial da realidade e concebiam a própria história, entendida como gênero letrado, como uma performance do bom juízo, que era capaz de saber, definir e estabelecer as melhores deliberações e ações para situações específicas”, conclui o historiador Felipe Charbel Teixeira no seu livro Timoneiros: Retórica, Prudência e História em Maquiavel e Guicciardini, recém-lançado pela Editora da Unicamp.

Motivo de menção honrosa no concurso de melhor tese de doutoramento em História da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da seção fluminense da Associação Nacional de História (Anpuh) em 2010, a pesquisa de Charbel, que parte da sua tese, defendida na PUC-Rio, traz um título bastante sugestivo que remete a uma metáfora náutica muito comum nos textos políticos da Antiguidade e do Renascimento – a ideia de que o bom governante era como um piloto de navio, movendo-se diante das turbulências da realidade como bom piloto que se coloca perante as turbulências do mar. Inclusive o subtítulo da introdução, “Navegando num mar agitado pelos ventos”, é uma frase de Guicciardini, a qual enfatiza que o bom piloto deve dar o melhor rumo para a sua cidade e para o Estado.

O autor comenta que o livro traz uma proposta de discutir a relação entre os conceitos de retórica, prudência e história como interdependentes. A ideia básica é que, no pensamento de Maquiavel e Guicciardini, esses conceitos são indissociáveis e decisivos para o modo como fizeram a sua reflexão política e histórica. O problema central é como essa tríade conforma uma unidade e como esta unidade é estruturante para uma compreensão histórica do que podem ter significado as obras desses autores para aquele público que foi o seu primeiro leitor.

Timoneiros, informa Charbel, é dividido em três capítulos. O primeiro teve como foco a prudência. Para isso, o autor fez uma breve história do conceito, visitando a Antiguidade, a Idade Média e o Renascimento, com o intuito de compreender as particularidades nas obras de Maquiavel e de Guicciardini.

No segundo capítulo, lembra ele, aborda-se o conceito de Fortuna, trazido para o âmbito da discussão sobre prudência. Fortuna, comenta Charbel, tem uma grande proximidade com as noções de sorte e acaso, indicando a impossibilidade de domínio completo dos efeitos das próprias ações no mundo inacabado das contingências. Só que era um conceito de certo modo antropomorfizado. Então entendia-se que a Fortuna era uma deusa ou similar a uma deusa que regulava os bens e os danos, e tudo aquilo que é dado e retirado, como a riqueza e o ‘soprar de ventos’ que favorece ou prejudica politicamente.

No terceiro capítulo, o destaque é posto nas obras históricas que ambos os pensadores escreveram, a priori História de Florença (Istorie fiorentine), de Maquiavel, e História de Itália (Storia d’Italia), de Guicciardini. Maquiavel escreveu uma história da cidade de Florença e fez do conhecimento histórico o caminho comparativo das experiências de antigos e modernos, que constitui o seu livro-referência sobre os romanos. Guicciardini também foi autor de uma história de Florença, mas a sua façanha historiográfica e intelectual foi a escrita daquela que é considerada a primeira história da Itália. Uma curiosidade: os dois eram florentinos.

O autor de Timoneiros ressalta que a história como gênero tinha singularidades muito marcantes nesse período. Em seu livro, a história é tratada como um gênero retórico mas com um fim delimitado, que é a de se constituir como uma performance do bom juízo prudencial, que implica dizer que a história deve ser escrita pelo homem prudente, pelo homem que conhece a realidade política e por aquele que sabe se colocar corretamente na realidade política, tomando as ações mais efetivas. Então a história acaba sendo uma espécie de substituta dessa ação. “E é um pouco nessa chave que as histórias desses dois autores são interpretadas aqui”, acentua o historiador.

A retórica, aponta ele, tinha um papel decisivo na época estudada e permeava toda a formação do indivíduo, a educação humanista, porque ela conformava não somente preceitos sobre a boa colocação verbal. Também retratava visões de mundo, hierarquias e um sistema ético. “Neste sentido, era fundamental na formação intelectual. Portanto, ela se faz ‘inescapável’ para análise de qualquer trabalho de tal período, de qualquer obra e de qualquer escrito.”

Charbel resgata que o Renascimento foi uma etapa bastante profícua para a livre expressão, especialmente no início do século XVI, por ser um momento em que a reflexão política e histórica começaram a ganhar novos contornos. As obras desses autores tinham uma característica singular em relação ao trabalho de outros predecessores do humanismo. E, justiça seja feita, Maquiavel e Guicciardini não podem ser propriamente enquadrados na categoria de humanistas. Mas foram pensadores que mostraram uma legítima preocupação com a realidade e com as transformações do momento pelo qual estavam passando.

O Príncipe

É nesse contexto que um dos argumentos do conceito de prudência é decisivo para Maquiavel. Normalmente as reflexões sobre o trabalho dele, em particular baseadas em O Príncipe, tida como a sua obra prima, nem são tão analisadas quanto as histórias de Florença e os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, embora isso também seja analisado. Porém não atuam como obra prima neste panorama e sim como escritos segundo gêneros retóricos específicos. “E nesse caso o argumento é de que o conceito de prudência é tão relevante quanto os conceitos de Virtú, que reflete a capacidade de ação política, e Fortuna. Há uma chave interpretativa muito recorrente nos estudos sobre Maquiavel que também parte de uma oposição, de uma tensão entre Virtú e Fortuna”, descreve Charbel.

O que o autor procura defender no livro é que o conceito de prudência é um terceiro elemento que permite lançar novas luzes sobre esta posição entre Virtú e Fortuna. Assim sendo, o conceito de prudência torna-se decisivo e estruturante igualmente para a compreensão da obra de Maquiavel.

A obra O Príncipe foi interpretada e quase canonizada por uma tradição ocidental como um manual de procedimento para as pessoas que pretendiam seguir carreira política, aponta Charbel. Contudo, a intenção (nem tanto nesse livro) era demonstrar que O Príncipe tem elementos fortemente convencionais no sentido da tradição retórica e que se trata de um discurso que não foi feito para chocar ou apenas para trazer lições práticas. O conteúdo era voltado para um público que seguia procedimentos e preceitos de um gênero específico. “Buscamos compreender então essa relação entre convencionalidade do discurso e suas singularidades.”

Também O Príncipe prossegue sendo considerado pela crítica o trabalho de maior repercussão de Maquiavel e há fortes indícios de que Guicciardini o tenha lido, bem como as histórias de Florença. Isso porque eram interlocutores que mantinham um diálogo acerca da situação política italiana e europeia naquele Timoneiros em mar revoltomomento. Influenciaram-se mutuamente, mesmo não chegando a se completarem em termos de unidade de pensamento, pois é certo que esses autores tinham divergências ao abordar alguns problemas, como por exemplo os usos da história.

Enquanto Guicciardini era reticente quanto a esses usos para a vida política, Maquiavel, por demais decidido em empregá-las, deixava claro que as ações políticas devem se orientar sim pela leitura das histórias. Para isso, ambos eram produto de um momento italiano e florentino que dizia respeito à história. Especialmente de Guicciardini saiu uma obra primorosa, Storia d’Italia, lida e traduzida para diversas línguas ainda no século XVI. “Foi assim que a reputação dos dois ficou muito marcada como historiadores. E a de Maquiavel particularmente mais marcada ainda como analista político do que como historiador”.

O autor relata que Gucciardini tinha uma posição social hierarquicamente mais elevada que Maquiavel. Descendia de uma família nobre, chegando a ocupar cargos muito significativos na sociedade de então, como os de governador, presidente de diversas províncias e secretário do papa Clemente VII, da família Médici.

A relação dos dois historiadores, no entanto, conta Charbel, era muito próxima, apesar de Maquiavel ser um pouco mais velho que Guicciardini. Inclusive eles chegaram a trocar correspondências expressando admiração mútua. Era uma relação de amizade e de respeito intelectual. Guicciardini era leitor dos manuscritos de Maquiavel, o que significa que o seu trabalho nem tinha sido ainda publicado e já era submetido à apreciação do amigo. Por outro lado, é fato que também Maquiavel nutria uma grande admiração por Guicciardini como homem público e grande estadista.

Sobre uma possível aplicação do conceito de prudência na política atual, aconselha Charbel, isso deve ser visto com cautela, pelo fato de ele ter passado por transformações significativas. Prudência na modernidade tem a conotação de precaução, o mesmo verificado nas obras de Maquiavel e de Guicciardini, contudo com maior ênfase à severidade decisória: a velocidade com que se toma a decisão, o saber se colocar diante da realidade e ter a melhor escolha, o que envolve inclusive dominar os preceitos da arte retórica para saber se apresentar publicamente, tanto por escrito como nas instâncias de debate. “Este seria um conceito bem aplicado hoje, desde que repensado à luz de toda uma tradição intelectual que remonta a Aristóteles, o primeiro filósofo de renome a se dedicar à ética e à análise do conceito de prudência.



SERVIÇO
Obra: Timoneiros – Retórica, Prudência e História em Maquiavel e Guicciardini
Autor: Felipe Charbel Teixeira
Editora da Unicamp
Páginas: 231
Preço: R$ 40,00



 
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