Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 262 - de 16 a 22 de agosto de 2004
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Tela angelical
 

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Em mestrado no IA, escritor apresenta
o primeiro estudo completo sobre cinema infantil brasileiro

A tela angelical



LUIZ SUGIMOTO


Cena de A Dança dos Bonecos: do universo interiorano à metrópoleXuxa e os Trapalhões vêm lotando as salas de exibição nas duas últimas décadas, sem que ninguém se preocupasse em refletir sobre o cinema que está sendo feito para as crianças brasileiras. A tela angelical: infância e cinema infantil, dissertação de mestrado defendida pelo escritor e jornalista João Batista Melo no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, sob orientação da professora Sheila Schvarzman, é o primeiro registro completo de história do cinema infantil brasileiro, segundo apurou o próprio autor. “Quando tratamos de crianças, acho fundamental analisar o que se faz para elas, como e por quê. O cinema infantil sempre foi visto como algo culturalmente marginal, pouco sério. Escrever ou filmar uma obra infantil significa envolver-se num patamar menor de arte, pois o público seria de seres imperfeitos, ainda não evoluídos. Se meu trabalho possui algum mérito, é o de procurar mostrar que esse gênero merece a mesma atenção dada ao Cinema Novo, às chanchadas, ao underground ou à novelle vague”, afirma.

Primeiras produções datam de 1956

A figura do Saci, que inspirou  uma das primeiras produções cinematográficas  Relacionado entre os principais contistas surgidos no país durante os anos 1990, João Batista Melo guarda vários prêmios nacionais importantes por seus livros e, para desenvolver a dissertação, somou a experiência como crítico de cinema e diretor de curtas-metragens. Ele informa que, desde 1908 até 2002, foram produzidos 3.415 longas-metragens brasileiros, mas apenas 2% (cerca de 70 filmes) destinaram-se ao público infantil. As duas primeiras produções para crianças são de 1956: O Saci, de Rodolfo Nani, inspirada na obra de Monteiro Lobato, e Sinfonia Amazônica, nosso primeiro desenho animado, que traz muitas influências de Walt Disney.

“No plano mundial, o cinema infantil nasceu como um descendente da literatura infantil, que por sua vez foi derivada das narrativas orais e dos contos de fadas. Antes do cinema e, mesmo depois do seu surgimento, o mundo infantil teve laços importantes com os livros de aventura e fantasia, as histórias em quadrinhos, as narrativas de professores, pais e avós”, observa João Batista. Segundo ele, a literatura infantil também foi a grande referência dos primeiros filmes nacionais, mas nas últimas décadas esta ligação deixou de existir e o espaço acabou dominado por atores e personagens da televisão. “Daqueles setenta filmes, a metade é dos Trapalhões”, constata.

Diante da total ausência de bibliografia específica – mesmo no exterior, os livros abordando o cinema para crianças não passam de meia dúzia –, João Batista Melo utilizou como ponto de partida os teóricos da literatura infantil. “Eu precisava conhecer melhor o destinatário desta produção cultural: quem é a criança, o que é ser infantil”, explica. Mencionando Philippe Ariès, considerado o grande historiador das atitudes, o escritor conta que na Idade Média a criança era vista como “um adulto em miniatura”, não havendo separação entre infância e maturidade. “A criança compartilhava os mesmos conhecimentos do adulto”, ilustra.

O escritor acrescenta que, em cima da tese de Philippe Ariès, o americano Neil Postman, estudioso das ciências da comunicação, viria a dizer que a criança começou a se separar do mundo adulto por causa da invenção da imprensa e da conseqüente imposição de códigos para se acessar o conhecimento e a informação; até que aprendesse os códigos, a criança ficava enclausurada no universo dos pequenos. Foi a televisão, ainda de acordo com Postman, que promoveu a reaproximação entre os dois mundos, dispensando conhecimentos específicos para que todos recebessem as informações por ela veiculadas. “Esta teoria, embora polêmica, serviu para embasar a pesquisa, já que eu buscava justamente as junções entre literatura, televisão e cinema”, observa João Batista.

Leitura imposta – Na avaliação do escritor, o governo militar foi responsável por um período profícuo e de boa qualidade da literatura infantil brasileira, mas a disseminação se deu por meio de processo extremamente burocrático e impositivo que tornou a leitura obrigatória nas escolas. “Isso acabou criando uma distância entre criança e literatura”, observa. Ao mesmo tempo, a ditadura incentivou o fortalecimento da televisão como agente de divulgação da ideologia militar e da unificação nacional. Inevitavelmente, a televisão se encarregaria de reproduzir e transmitir também as ideologias do mercado econômico. “Os filmes ligados à tevê sempre trazem, explícita ou implicitamente, a mensagem de venda de um produto”, acrescenta.

Outro aspecto abordado por João Batista é o cinema enquanto produto de uma indústria cultural que acaba substituindo a cultura infantil tradicional, até então gerada em ambiente lúdico. “Antes, a criança criava e reproduzia sua própria cultura. A partir do momento em que a criança foi tirada das ruas, deixou de ser produtora para ser consumidora de produtos culturais”, compara. Por isso, sua concordância com a definição feita pelos pesquisadores ingleses Staples e Bazalgette, segundo os quais o filme infantil é aquele que traz um olhar infantil. “Esta é uma característica das produções nacionais não ligadas à televisão, em que a criança toma as decisões e define seu destino, ao passo que o adulto é um agente passivo, muitas vezes tratado como incompetente. Já em filmes como Xuxa e os duendes, o adulto permanece no centro da narrativa, e a criança tem um papel mais passivo, de subordinação ao adulto, por exemplo, quando a menina chora no ombro da protagonista porque o pai vendeu sua casa”, compara.

O escritor afirma que o ambiente rural e interiorano é um traço predominante de filmes como O Saci, O Cavalinho Azul, Meu Pé de Laranja Lima e Picapau Amarelo, mas que as produções mais recentes já travam um diálogo inevitável com o meio urbano, desenrolando-se nas grandes cidades. Ele cita A Dança dos Bonecos, em que a heroína parte do universo interiorano para recuperar seus brinquedos e percorre a metrópole capitalista para conhecer a frieza do mercado e dos meios de comunicação. E, em contraponto, Xuxa e os duendes e O Noviço Trapalhão, onde se vê na essência um compromisso com o lucro e a lógica do mercado, como industriais que aparecem como heróis ou amigos dos heróis.

Desprezados – João Batista Melo reconhece em produtores como Xuxa e os Trapalhões, assim como em Mazzaropi, o mérito inegável de ajudarem a formar um espectador para o cinema nacional, num trabalho isolado e persistente. “Talvez, essas crianças sejam os adultos que hoje vêem Carandiru, Central do Brasil e Cidade de Deus”, prevê. Insiste, porém, que o cinema infantil poderia retomar o vínculo com a literatura, a exemplo de Europa e Estados Unidos com Harry Potter e O Senhor dos Anéis, apenas os fenômenos mais recentes do casamento entre as duas artes. “No Brasil, filmes baseados nas obras de Monteiro Lobato, José Mauro de Vasconcelos e Maria Clara Machado são honrosas exceções. Apesar da força da literatura infanto-juvenil no mercado editorial, o cinema vem desprezando autores como Ana Maria Machado, Lygia Bojunga, Ângela Lago, Tatiana Belinky, Lúcia Machado de Almeida e Ruth Rocha”, finaliza.

Um autor premiado

Os escritor e jornalista João Batista Melo: “O cinema infantil nasceu como um descendente da literatura infantil”Premiado por coletâneas de contos como O inventor de estrelas, As baleias do Saguenay e Um pouco mais de swing, João Batista Melo escreveu um romance intitulado Patagônia, baseado na passagem da dupla Butch Cassidy e Sundance Kid como fazendeiros na Argentina, o que exigiu do autor seis viagens aos territórios chileno e argentino, percorrendo mais de 10 mil quilômetros. Seu conto Colecionador de sombras foi incluído na antologia Geração 90, organizada pelo escritor Nelson de Oliveira, que escolheu os mais importantes contistas surgidos nos anos 1990. Outro conto, Após o crepúsculo, integra a antologia Des nouvelle du Brésil, lançado no Salão do Livro de Paris, entre autores como Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector.

João Batista Melo colabora com críticas de cinema e literatura para jornais mineiros e também dirigiu o curta-metragem A quem possa interessar, sobre o preconceito contra idosos no mercado de trabalho, filme selecionado para o Festival Internacional de Bilbao. Atualmente, está finalizando o curta-metragem infantil Tampinha, baseado no livro homônimo da escritora Ângela Lago, como parte de um projeto da TVE e do Ministério da Cultura para incentivar a produção de telefilmes infantis.

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