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DNA de aranhas ‘conta’ a história evolutiva da Floresta Amazônia e da Mata Atlântica

Pesquisa desenvolvida no IB-Unicamp busca entender as mudanças sofridas pelos biomas ao longo dos últimos cinco milhões de anos

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Análises de DNA nuclear e mitocondrial de populações de Nephila clavipes, espécie comum de aranha que vive nas regiões mais quentes das Américas, estão ajudando os cientistas a compreender melhor a história evolutiva da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica ao longo dos últimos cinco milhões de anos. O trabalho, realizado pela primeira vez com invertebrados, foi desenvolvido para a tese de doutoramento do biólogo Luiz Filipe de Macedo Bartoleti, defendida no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, sob a orientação da professora Vera Solferini.

De acordo com Luiz Filipe, o estudo está inserido numa área do conhecimento denominada Biogeografia Histórica, que se ocupa de investigar os padrões de distribuição geográfica dos seres vivos num dado intervalo de tempo. Ao analisarem o DNA de diferentes populações de uma mesma espécie, os pesquisadores buscam evidências de possíveis alterações ocorridas nos biomas com o decorrer do tempo. Tais indicativos advêm do fato de o DNA ser uma molécula que sofre várias mudanças. “As mutações podem ser de ordem adaptativa, mas também podem ser neutras; neste último caso, são cumulativas”, informa o autor da tese.

Foto: Perri
O biólogo Luiz Filipe Bartoleti, autor da tese de doutorado: variabilidade genética das aranhas fornece evidências de possíveis alterações ocorridas nos biomas com o decorrer do tempo

Mas, afinal, o que o DNA de uma simples aranha pode “contar” sobre a evolução da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica? A professora Vera Solferini explica que o seu orientado colheu amostras de 40 populações de Nephila clavipes em diversas regiões da Colômbia e Brasil. Somente no território nacional, Luiz Filipe visitou 20 Estados. “Esse desenho amostral amplo permite que tenhamos uma ideia muito boa de como foi a história evolutiva desses biomas”, afirma a docente.

Na prática, o que os pesquisadores fazem é analisar como as distintas populações dessa espécie de aracnídeo estão relacionadas. Dependendo da variabilidade genética encontrada, eles têm condições de dizer se as populações encontradas em diferentes pontos mantêm contato ou se se dividiram há muito tempo. “Imagine duas populações de Nephila clavipes, uma da Amazônia e outra da Mata Atlântica. Se elas pararem, por algum motivo, de manter contato entre elas, cada uma vai acumular mutações próprias. Ou seja, vão se distanciando geneticamente uma da outra ao longo do tempo. Ao passo que se mantiverem contato, vão trocar essas mutações”, pormenoriza Luiz Filipe.

É justamente essa variabilidade genética que guarda sinais dos eventos demográficos ocorridos no passado. Na análise que fez do DNA das aranhas que coletou, o autor da tese de doutorado constatou que as populações a oeste e a leste dos Andes Colombianos acumulavam mutações diferentes, o que indica que algum evento impediu o fluxo gênico entre elas. “Nesse caso, a barreira ao contato foi o soerguimento final da Cordilheira dos Andes, ocorrido há cerca de três milhões de anos. Essa hipótese reforça o resultado de estudos de outras áreas acerca da história evolutiva daquele bioma”, pontua o biólogo.

Foto: Perri
A professora Vera Solferini, orientadora do trabalho: estudos dessa natureza contribuem para o entendimento da complexa diversificação dos biomas sul-americanos

Já as populações coletadas no Brasil apresentaram diversificação genética mais recente, que remontam aos últimos 350 mil anos. A separação das linhagens brasileiras, segundo a professora Vera Solferini, provavelmente está associada às mudanças climáticas características do período Pleistoceno, que deve ter isolado populações em diferentes biomas, causando o surgimento das linhagens encontradas. Esses mesmos eventos climáticos, pondera a docente, devem ter sido responsáveis por modificar de forma recorrente a distribuição geográfica dos biomas, o que pode ter criado “pontes” entre a Amazônia e a Mata Atlântica, através das quais as aranhas puderam se misturar durante os últimos ciclos glaciais.

Nos últimos dois milhões de anos, acrescenta Luiz Filipe, os biomas brasileiros sofreram muitas transformações. À medida que um se expandia o outro se retraía. Eles assumiram as características atuais em período mais recente, coisa de 20 mil anos. “Segundo a nossa hipótese, essas mudanças ajudaram a estabelecer essas ‘pontes’. À medida em que as florestas mudavam de forma e de posição, os organismos que viviam nelas também mudavam. Nós concluímos que surgiu no meio do Cerrado um corredor que permitiu que as aranhas transitassem de um bioma para o outro, promovendo a troca das mutações que encontramos nas análises de DNA”, esclarece o pesquisador.

Estudos desse tipo, conforme a professora Vera Solferini, contribuem para o entendimento da complexa diversificação dos biomas sul-americanos, além de demonstrar que as aranhas são organismos adequados para o estudo da história biogeográfica de regiões amplamente diversas. Nesse sentido, aponta a docente, o trabalho ofereceu outra conclusão importante, esta relativa exclusivamente à Mata Atlântica.

Muitos trabalhos dividem o bioma em duas partes – norte e sul – e consideram que cada uma apresenta um regime climático distinto. “Na nossa pesquisa, nós não conseguimos encontrar essa divisão. As aranhas que ocorriam ao norte são geneticamente parecidas com as do sul. Isso mostra que a resposta à mudança do regime climático é particular de cada espécie”, entende a docente. Ainda de acordo com ela, o conjunto de informações gerado pelo estudo também é relevante porque os fatos do passado podem ajudar a projetar o futuro.

Arquivo Pessoal
Fêmea de Nephila clavipes constrói teia de coloração dourada em Pinhalzinho, interior de São Paulo | Foto: Acervo Pessoal

Luiz Filipe detalha melhor essa questão: “É fundamental que compreendamos como a diversidade foi construída ao longo do tempo geológico. Quando entendemos como as espécies respondem no presente às mudanças climáticas ocorridas no passado, nós somos capazes de criar modelos para predizer como elas se comportarão no futuro em relação às mudanças climáticas em curso. Assim, podemos fazer prognósticos acerca de espécies que poderão ser mantidas ou extintas e de áreas climaticamente estáveis que poderão servir para fins de conservação”.

O próximo passo dentro dessa linha de pesquisa, adianta a professora Vera Solferini, será a incorporação da análise do RNA, ou seja, da expressão gênica dos organismos. Estudos similares estão sendo feitos por outros pesquisadores, principalmente com plantas e aves. “Nós mantemos contato com equipes do Brasil e do exterior para a troca de informações. Com algumas delas, mantemos valiosas colaborações, o que permite que os estudos ganhem uma abordagem multidisciplinar e avancem de forma mais sólida”, considera a docente, que destaca, ainda, a importância dos financiamentos das agências de fomento, particularmente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científicos e Tecnológico (CNPq).

 

 

Imagem de capa JU-online
Audiodescrição: Em ambiente interno, imagem close-up, de cima para baixo, aranha depositada em um recipiente de vidro transparente redondo, com cerca de dez centímetros de diâmetro e dois centímetros de altura, sendo que uma pessoa segura esse recipiente com a mão esquerda,  enquanto que com a mão direita segura uma pinça metálica, manipulando o inseto. O recipiente está apoiado sobre um tipo de mesa forrada com um tipo de papel toalha branco. Imagem 1 de 1.

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