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Philippe Dubois e a teatralização da memória

Pesquisador francês da área de imagem ministra seminário na Unicamp

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O professor Philippe Dubois, titular da cadeira de "Teorias de formas visuais" do Departamento de Cinema e Audiovisual da Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris 3, vai ministrar na Unicamp o seminário “Fotografia e Cinema”. Financiado pela Fapesp, o seminário integra atividade conjunta dos programas de Pós-Graduação em Multimeios e em Artes Visuais, do Instituto de Artes (IA), no âmbito de duas disciplinas a serem ministradas também pelos professores Fernando C. de Tacca e Alfredo Luiz Paes de Oliveira Suppia. O seminário ocorrerá todas as terças-feiras de agosto, a partir do dia 8,  no auditório do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).

Membro do Institut Universitaire de France (IUF), Dubois publicou 15 livros e mais de uma centena de artigos sobre fotografia, cinema e vídeo. Seu primeiro livro, “L’Acte photographique” (1983), foi traduzido em muitas línguas, inclusive o português [O ato fotográfico, Papirus, 1993]. No Brasil também foi publicado Cinema, vídeo, Godard (Cosac Naify, 2004). Sua última obra é “La Question vidéo. Entre cinéma et art contemporain” (Yellow Now, 2012).

Foto: Reprodução
Philippe Dubois fotografado por Fernando de Tacca

O professor foi crítico e editor do International Journal of Cinema. É também um dos responsáveis pela publicação de várias coleções, entre as quais “Arts et cinema”(DeBoeck), “Cinéthésis” (Forum) e a revista Cinéma & Cie. Suas áreas de especialidade, sempre com uma abordagem multidisciplinar, são teorias visuais, imagens estéticas, arte contemporânea, metodologia e análise de filmes, além de foto e vídeo. Debois ministra hoje (3), às 14 horas, na Galeria de Artes da Unicamp, a palestra “Paolo Gioli, bricoleur de dispositifs et inventeur d’images. L’esthétique du Sténopé élargi”. Na entrevista que segue, concedida ao professor Fernando de Tacca, do Instituto de Artes, ele fala sobre o eixo temático do seminário.


Fernando de Tacca – Seu livro, “Fotografía & Cine” (Fundación Televica/Editora Serieeve, 2013), publicado no México, não tem tradução para outras línguas e se coloca como o apoio principal de seu seminário. Peço que comente a natureza do livro, sua origem e suas principais questões.

Philippe Dubois Em duas palavras, este livro, publicado somente no México em tradução espanhola, resulta de uma encomenda dentro de uma coleção em espanhol de autores estrangeiros (franceses, sobretudo: Dubois, Frizot, Rouillé, etc).

De minha parte, propus uma compilação de vários artigos que já haviam sido publicados em francês sobre o tema geral das relações entre fotografia e cinema. Concebido então como um reagrupamento de textos anteriores, este livro abrange, de um lado, capítulos mais teóricos sobre as “problemáticas” globais e transversais (por exemplo, a memória, a autobiografia e o autorretrato, a foto-instalação, o movimento, a sombra e o espelho, o panorama, o fotograma, etc), e, de outra parte, capítulos monográficos sobre o trabalho deste ou daquele fotógrafo ou cineasta (Victor Burgin, Win Geleynse, Michel Lamothe, Christian Lebrat, Hervé Rabot, Eric Rondepierre, etc.).

É apenas o segundo capítulo, intitulado “A imagem-memória ou a fotografia como filme no cinema autobiográfico moderno”, que corresponde parcialmente ao assunto do seminário que ministrarei na Unicamp. Digo parcialmente porque esse texto é antigo e, para mim, um pouco “ultrapassado”: ele é datado, tinha sido publicado originalmente em francês no catálogo do “Mês da fotografia” de Montreal, em 1991, depois em inglês no livro americano “Imagem fugitiva”, coordenado por Patrice Petro, e na sequência em português, no Brasil, primeiro na revista Imagens nº4, em 1996, e em seguida na revista online Laika – nº1 – do laboratório de investigações da ECA/USP. Por isso, para mim, está um pouco envelhecido, tendo em vista sua data de aparição.

O seminário retomará, então, apenas uma pequena parte desta antiga pesquisa, mas sobretudo, proporá prolongamentos e consequentes renovações, expandindo consideravelmente seu “corpus”; o que concerne apenas à primeira parte do seminário. A segunda parte será inteiramente nova, e não foi ainda publicada.

Foto: Reprodução
Autorretratos dos professores Fernando de Tacca  e Alfredo Suppia


Fernando de Tacca – Gostaria que comentasse os principais tópicos do seminário anunciando os autores a serem analisados, ciné-photographes français, iniciando pela relação entre fotografia e cinema a partir das estratégias de uma “art de la mèmorie”.

Philippe Dubois – O seminário « Fotografia e Cinema » será ministrado em 8 sessões de 3 horas cada uma. Será estruturado em 2 grandes partes – de 4 sessões cada uma. A primeira parte tem como título “Autobiografia, autorretrato e arte da memória em Raymond Depardon, Agnès Varda, Chris Marker e Jean Eustache”.

O argumento desta parte é o seguinte: certos cine-fotógrafos franceses “modernos”, tão fotógrafos quanto cineastas, desenvolveram obras mistas, fizeram frequentemente fotografias re-filmadas, desenvolvendo um trabalho singular de memória, que tomam forma de autobiografia ou de autorretrato (às vezes, indiretos). Será necessário distinguir cuidadosamente essas duas grandes formas (com ajuda de obras de Philippe Lejeune, sobre autobiografia, e de Michel Beaujour, sobre autorretrato).

De fato, são as diferentes estratégias de teatralização da memória entre fotografia e cinema que serão analisadas, através de modelos mnemônicos como esses das “artes da memória”. O modelo das “artes da memória” (no sentido das práticas identificadas e analisadas por Frances Yates em seu livro de referência A arte da memória) remonta à antiguidade e à antiga retórica, e atravessou as eras e as artes, da arte oratória à arte do teatro, do esotérico à pintura clássica, e também a fotografia e o cinema, que são suas encarnações modernas mais notáveis.

O “corpus” será constituído pela obra de quatro cineastas franceses, que são também fotógrafos, da mesma geração, pertencendo à modernidade, (pós) Nouvelle Vague: Raymond Depardon, Agnès Varda, Chris Marker e Jean Eustache, dos quais serão estudados apenas alguns filmes específicos, segundo o programa abaixo.

Programa das sessões:

Sessão 1 : Introdução à problemática: 1) re-filmar fotografias; 2) Autobiografia e autorretrato; 3) A tradição das  "artes da memória".

Sessão 2 : Raymond Depardon (Os Années-déclic au Journal de France )

Sessão 3 : Agnès Varda (Ulysse, Salut les Cubains)

Sessão 4 : Chris Marker (Si j’avais quatre dromadaires, La Jetée) e Jean Eustache (Les photos d’Alix)

A segunda parte do seminário (4 sessões também) tratará sobre um outro tema bastante distinto do primeiro e mais “filosófico”, ou, em todo caso, “estético”. Esta parte é intitulada: “Além da oposição imobilidade X movimento (fotografia x cinema): a elasticidade temporal das imagens”.

O argumento desta parte é o seguinte: ao longo do século XX, sempre se opuseram, de maneira maniqueísta, fotografia e cinema, em nome da imobilidade e do movimento na e da imagem.

Trata-se de interrogar essa separação e de mostrar que:

1) Se está longe de poder definir conclusivamente os dois domínios, mesmo historicamente, já que existem “formas intermediárias” entre os dois (“fotos que se movem”, filmes que são fixos, da câmera lenta à parada da imagem);

2) Hoje, desde o invento do digital, temos formas de porosidade generalizada entre imobilidade e movimento, que se abrem a uma estética de elasticidade temporal das imagens.

Programa das sessões :

Sessão 1: História do surgimento do campo: as formas canônicas do tempo fotográfico.

Sessão 2: História do surgimento do campo: as formas canônicas do tempo fílmico.

Sessão 3: As diferenças e as formas intermediárias: as poses longas, as trepidações, movimentos e filés na fotografia; câmera lenta, acelerações, as paradas da imagem no cinema.

Sessão 4: A virada digital e a elasticidade ontológica do tempo manipulado (animação, stop motion, time lapse, morphing, etc.)

Foto: Reprodução
Chris Marker (acima) e Raymond Depardon (abaixo)


Fernando de Tacca – Para além da oposição canônica entre fotografia e cinema, existe um lugar comum de encontro e de proposição no ciné-photo?

Philippe Dubois – Como expliquei na resposta anterior, é principalmente na segunda parte do seminário que esta questão será tratada. Para mim, o encontro entre fotografia e cinema acontece primeiramente a partir das experimentações temporais desses dois meios, quando a fotografia para de se focar sobre o princípio único (e ideológico) do instantâneo para se abrir às experiências de tempo diferentes, e quando o cinema para de se crer imitação de nossa visão/percepção “natural” do tempo e do movimento tal qual se pode perceber normalmente na vida. Isto é, quando se quebra a concepção “canônica” (dominante) do tempo que rege o uso dominante destes meios.

Por exemplo, quando se desenvolvem formas fotográficas “inéditas”, de captação da duração ou do movimento, nas práticas como o panorama fotográfico (o aparelho se movimenta durante a tomada) ou em certas exposições de longa duração da película, por exemplo, com o light painting, ou o borrão mais ou menos calculado (os trêmulos de Didier Morin, os efeitos de flou de filé [imagem desfocada em movimento de câmera da slitscan photography], ou nas poses muito longas de Michael Wesely – que fez tomadas nas quais o tempo de exposição é de vários anos!).

E isso parece-me unir-se ao outro extremo do espectro, desde o cinema, o campo das experiências cinematográficas singulares (mais ou menos inovadoras) onde se experimenta a câmera lenta e acelerada, a parada da imagem e a reversão, isto é, “variações de velocidade” da imagem, que oferecem uma visão de mundo que só o cinema pode propor, que são invisíveis como aquelas da visão natural (os filmes científicos de Marey), as experiências do filme acelerado ou lento do cinema mudo, e todos os tipos de manipulações temporais mais ou menos intrigantes do cinema contemporâneo, seja experimental (vários exemplos), seja de ficção (Soukourov, Gus Van Sant, Wong Kar-waï).

É isto que chamo de “formas intermediárias” (entre cinema e foto, cruzando ou mesclando as duas estéticas temporais do instante e da duração, de maneira, às vezes, bastante paradoxal). Serão estudados inúmeros exemplos desse tipo


Fernando de Tacca – Como analisar possíveis contradições sobre a questão temporal entre a imagem fixa, fotografia, e a imagem em movimento, o cinema?  Você cita “formes intermédiaires” entre os dois e anuncia na proposta do seminário que hoje, com o evento digital, temos o surgimento de uma “ esthétique de l’élasticité temporelle des images”. Peço que comente, por favor.

Philippe Dubois – Eu expliquei isso na resposta da questão precedente. Posso acrescentar que o advento das tecnologias digitais só ajudou a amplificar bastante este princípio, a ponto de instalar, nos dispositivos de imagens digitais hoje generalizados, o princípio de uma verdadeira “porosidade” entre os dois campos canônicos opostos.

Hoje em dia, fotografia e cinema são duas categorias obsoletas, isto é, elas não se opõem mais em nome da imobilidade de uma diante do movimento natural da outra. Elas são intrinsecamente fundidas uma na outra, não é mais uma oposição (maniqueísta), é uma modulação (uma variação contínua). Passa-se (alegremente) da imobilidade ao movimento (aos movimentos, é necessário dizer, no plural), sem ruptura, sem mudar de domínio, de forma plástica e maleável.

É o que chamo “elasticidade temporal” das imagens contemporâneas. Mas insisto sobre um ponto: isto não é próprio ao digital, já era assim desde o começo, como uma possibilidade, na história da fotografia e na história do cinema. Simplesmente, hoje, não é mais uma possibilidade (pouco explorada), se tornou uma evidência praticada em toda a parte e o tempo todo. A elasticidade temporal se tornou o novo padrão das imagens.


Fernando de Tacca – Como podemos classificar, se isto é possível, o fotofilme nos tempos atuais de grande acesso à produção, nos quais as pessoas podem produzir suas próprias estratégias de uma “art de la mèmorie domestique”?

Philippe Dubois – Como acabo de dizer, essa facilidade de acesso das ferramentas digitais à produção de imagens particulares (mas tornadas públicas pela possibilidade de difusão via redes sociais) apenas amplificou o fenômeno em proporções absolutamente incríveis. É por isso que eu digo que essa é o “novo padrão” das imagens. Mas esta questão chama menos à concepção (a uma filosofia) da imagem, ou do tempo de dentro da imagem, do que a uma reflexão sobre seus usos. Para que servem as imagens hoje? A questão da memória é ela mesma recolocada em questão nesses dispositivos de circulação louca das imagens, até sua desaparição programada desde seu surgimento: memória ou fluxo?

Inúmeras questões contraditórias surgem nesses usos: a questão do documento e do momento, do arquivo e da circulação, do estoque e do fluxo, da memória e de sua diluição (ou seu apagamento), da presença e da ausência, etc.

Todas essas questões (e ainda outras mais) poderão ser levantadas a partir das discussões do seminário.

Tradução: Paula Cabral

 

Imagem de capa JU-online
Obra de Agnès Varda, cujo trabalho será analisado no seminário | Reprodução

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