NOTÍCIAS

Excesso de prisões preventivas superlota cadeias e fortalece o crime organizado

Para organizadora de livro sobre o sistema prisional, falta de políticas públicas na área contribui para o aumento da violência

Foto: Reprodução

No ranking oficial de aprisionamentos, o Brasil possuía em 2014 mais de 620 mil pessoas presas, formando a quarta maior população de custodiados do mundo, superado apenas por Estados Unidos, China e Rússia. “É mito afirmar que o Brasil é o país da impunidade”, observa a socióloga Eli Narciso da Silva Torres, doutoranda da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp e coordenadora do Observatório da Violência e Sistema Prisional. “Prende-se muito, em especial, por duas motivações distintas. Primeiro, porque o Código Penal assevera a punição para crimes contra o patrimônio, como furto, roubo e, também, ao tráfico de drogas. Segundo, essas prisões são efetivadas por meio do uso excessivo de prisões preventivas”, justifica.

Eli Torres, juntamente com Gesilane Maciel José, organizou o livro Prisões, Violência e Sociedade: debates contemporâneos, que está sendo lançado pela Paco Editorial e reúne resultados de investigações de pesquisadores da pós-graduação de instituições de prestígio no país. Na entrevista que segue, a socióloga comenta capítulos do livro abordando questões como a política prisional no país, a seletividade do sistema de punição, drogas e prisões no centro da capital paulista (Cracolândia), o encarceramento em massa no Estado de São Paulo e o aspecto organizacional do PCC, bem como o direito à educação e a situação da mulher dentro das prisões.


Jornal da Unicamp – Qual a crítica que se faz atualmente à política prisional no país?

Foto: Reprodução
A socióloga Eli Narciso da Silva Torres, coordenadora do
Observatórioda Violência e Sistema Prisional: “A privação
da liberdade,do ponto de vista jurídico, deveria consistir em
um instrumentode exceção penal, não a regra”

Eli Torres – A ausência de responsabilidade social com a questão penitenciária possibilitou o alargamento da invisibilidade das condições de encarceramento em curso, além de potencializar conflitos e a expansão do crime organizado dentro e fora das prisões ao longo das últimas décadas. No ranking oficial de aprisionamentos, o Brasil possuía, em 2014, 622. 202 mil pessoas presas, ou seja, a quarta maior população de custodiados do mundo, superado apenas por Estados Unidos, China e Rússia. 

Esse super-encarceramento corresponde a 301 indivíduos presos para cada grupo de 100 mil habitantes. Num comparativo mais ampliado dos últimos 20 anos, pode-se afirmar que o número de presos cresceu a uma taxa média de 8,1% ao ano, na contramão do crescimento da população brasileira que, nesse período, foi em média de 1,2% ao ano.

Apesar do crescimento, os investimentos em infraestrutura, em assistências aos custodiados como prevê a Lei de Execução Penal ou contratação de servidores penitenciários, não acompanharam a elevação destes índices. Tudo isso associado à superlotação carcerária, em confinamentos insalubres, favoreceu, sobremaneira, a elevação do número de homicídios relacionados a rebeliões e, em especial, para o surgimento, fortalecimento e manutenção do crime organizado dentro das prisões, representados, sobretudo, pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV).

Então, com certeza, é mito afirmar que o Brasil é o país da impunidade. Prende-se muito, em especial, por duas motivações distintas. Primeiro, porque o Código Penal assevera a punição para crimes contra o patrimônio, como furto, roubo e, também, ao tráfico de drogas. Segundo, essas prisões são efetivadas por meio do uso excessivo de prisões preventivas; por exemplo, o país prendeu provisoriamente, em média, 36,% dos 622.202 mil presos, o que significa afirmar que 225.000 pessoas estão reclusas sem julgamento. Assim, entendo que a prisão preventiva trata-se de um dispositivo jurídico, chave, intimamente relacionado ao encarceramento em curso.  

Esse excesso de aplicação da medida cautelar para a manutenção das prisões no Brasil contraria, inclusive, a própria legislação, quando diz que “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar”. Ou seja, a privação da liberdade, do ponto de vista jurídico, deveria consistir em um instrumento de exceção penal, não a regra. Com isso, não significa que o judiciário deveria soltar os acusados de violação à ordem social, mas, sim, buscar meios mais inteligentes de resolver os conflitos sociais como, por exemplo, a aplicação de medidas alternativas à prisão (uso de tornozeleira) ou justiça restaurativa que obrigaria, em tese, o indivíduo a restituir o bem violado.

Neste contexto também é importante observar que esse público é constituído por indivíduos, em sua maioria, moradores de regiões periféricas, negros, pouco escolarizados e por uma grande parcela de usuários de drogas.  Os crimes de furto, roubo e tráfico, e também a reincidência penal, estão intimamente relacionados ao abuso de drogas. Ou seja, deve-se pensar uma política pública preventiva para esta população e, sobretudo, desassociar, de fato, o usuário do crime de tráfico.

JU – Em que contexto e com quais propostas surge o Observatório da Violência e Sistema Prisional?

Eli Torres – O Observatório surge diante desta reflexão sobre os porquês deste super-encarceramento e da problematização sobre a necessidade de dialogar com a sociedade civil organizada sobre os inúmeros fatores que levam ao encarceramento e à ampliação da violência. Foi assim, diante desse cenário de aprisionamento crescente e da ampliação gradativa da sensação de insegurança social que, instituiu-se, no primeiro momento, a linha de pesquisa Sociedade, Educação e Sistema Punitivo – CNPq, no ano de 2014, e compreendemos que seria pertinente uma organização autônoma, que congregasse pesquisadores e especialistas interessados nas pautas relacionadas às políticas públicas, sociais e históricas, voltadas, em especial, para o combate à violência e para a organização do sistema penitenciário. A partir desse entendimento, iniciamos as atividades do Grupo de Estudo e Trabalho Observatório da Violência e Sistema Prisional.

JU – O livro traz um panorama sobre a seletividade do sistema de punição. Pode justificar esta seletividade?

Eli Torres –  Sim, no artigo “Indicadores do punitivismo, encarceramento e genocídio da juventude negra: um panorama sobre a seletividade do sistema de punição” refletimos sobre o determinismo recorrente na sociedade brasileira, na direção de criminalizar o negro, especialmente, os jovens e os moradores de localidades com altos índices de violência, numa perspectiva que a periferia produz o suspeito e o criminoso.  Consideramos que superar este estigma social, em certa medida, trata-se do mais importante desafio dos especialistas em segurança pública preventiva e, em especial, dos articuladores da defesa dos direitos humanos.

Esse estigma é desconstruído pelo Mapa da Violência de 2014 e, mais recentemente, por meio do Atlas da Violência 2017, que tratam dos casos relacionados a homicídio e juventude no Brasil, sobretudo, porque a análise indica justamente o contrário, isto é, que a população pobre e negra congrega a maior parcela dos indivíduos vitimados pelos homicídios brasileiros. Hoje, a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Isso é seletividade social.

É necessário considerar que a maior incidência de violência e criminalidade nos espaços periféricos se associa, especialmente, à ausência do Estado enquanto responsável pelas políticas públicas, que não cumpre as suas várias atribuições com políticas sociais, por exemplo, com oferta de saúde, educação e cultura. Na escassez do Estado interventor e/ou apaziguador de desigualdades, considera-se o uso da repressão e das forças de segurança o mais adequado, fato que reifica a marginalização e naturaliza a desigualdade social. Assim, sobrepõe-se o Estado que intervém municiado pelo legalismo jurídico da justiça criminal, que criminaliza as condutas e lança mão do aparelhamento penal, com o aprisionamento como mecanismo de gestão da população anteriormente vulnerável.

Entendo que o afastamento do Estado de suas atribuições na execução de políticas públicas favorece, também, a gestão do crime organizado nestes territórios, como ocorre em espaços periféricos dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, que há décadas são gerenciados por grupos faccionados ao crime organizado.

JU – Sobre as drogas e prisões no centro da capital paulista, há associação com polêmica questão da Cracolândia?

Eli Torres – Sim, possui relação com a Cracolândia. O autor Marcelo Campos discute a criminalização da pobreza e do usuário a partir da atual Lei de Drogas. Isso, ao analisar as incriminações por tráfico e uso no centro da capital paulista, particularmente, na delegacia de Santa Cecília, que recebe a maioria dos casos de uso e comércio de crack da região chamada “Cracolândia” sob o enfoque da legislação de drogas.

Vale lembrar que, do ponto de vista discursivo, esta “nova” política de drogas seria mais centrada na prevenção, atenção e reinserção social dos usuários de substâncias consideradas ilícitas e teria como objetivo “oficial” deslocar o usuário de drogas do sistema de justiça criminal para o sistema de saúde. Porém, a elevação dos índices de prisões por tráfico, demonstra que não foi o que aconteceu.  Por exemplo, o livro analisa um estudo de caso referente a uma pessoa presa pelos policiais e condenada pelo juiz na cidade de São Paulo, em 2008, na região central da cidade. Ela não tinha antecedentes criminais, alegava ser camelô e portava no interior de sua bolsa 17 pedras de crack (exatamente 4,25 gramas) e R$ 73,00 reais. O juiz, na condenação, atribuiu a pena de 3 anos e 4 meses de prisão porque, segundo o juiz, o “indivíduo” não poderia provar a origem do valor encontrado pelos policiais, conforme a ocorrência registrada.

O caso é revelador ao elencar significados ao fenômeno do hiper-encarceramento da pobreza por drogas no Brasil. Remete, ainda, ao papel protagonista da polícia na efetivação do encarceramento e também, e não menos importante, evidencia a crença na centralidade da prisão, pois boa parte dos operadores do sistema de justiça criminal e de parlamentares reafirma a necessidade da pena de prisão nas interações com usuários e pequenos comerciantes de drogas.

JU – Como explicar a relação entre o encarceramento em massa em São Paulo e o fechamento de instituições prisionais?

Eli Torres –  Não há relação com o fechamento de estrutura física, ao contrário, mesmo insuficiente, ocorreu a expansão em São Paulo. O capítulo é dedicado a discutir a relação entre encarceramento em massa e a diminuição de pesquisas etnográficas, porque ocorreu, gradativamente, a restrição do acesso do pesquisador à prisão.  Para isso, buscaram-se aproximações com o estudo realizado por Loïc Wacquant, em 2002, nos EUA. Identificou que a redução das pesquisas etnográficas em ambientes prisionais ocorreu por diferentes questões, mas uma das principais seria o crescimento vertiginoso da população encarcerada e a consequente dificuldade de acesso aos ambientes prisionais por conta de mudanças nas dinâmicas institucionais dos presídios.

Com unidades superlotadas, haveria uma diminuição de mecanismos disciplinares de reabilitação e um fortalecimento de dispositivos de segurança militarizados que também reduziriam o espaço para a realização de pesquisas nas prisões. Respeitadas as distinções de cada nação e seus respectivos sistemas prisionais, no Estado de São Paulo seria possível identificar um processo assemelhado ao apontado por Wacquant, na medida em que na experiência paulista, também, ocorreu um crescimento substancial da população encarcerada (de 60 mil em 1994 para 210 mil internos em 2014) e uma militarização dos dispositivos prisionais nas duas últimas décadas, dificultando, assim, o acesso dos pesquisadores.

JU – Por que a diferenciação entre policial de fronteira e policial da fronteira?

Eli Torres – A diferenciação entre o policial da fronteira e o policial de fronteira é pensada pelo autor Giovanni França, em geral, para distinguir dois grupos de polícias que atuam nas fronteiras brasileiras. O artigo traz essas distinções, indicando que os policiais da fronteira, são aqueles indivíduos da região, nascidos ou criados nessas cidades de fronteira e que conhecem, a partir de suas vivências, as idiossincrasias da vida fronteiriça. Esses policiais estão imbricados em relações sociais, a partir do conhecimento direto das pessoas ou parentesco, o que permite uma gestão personalizada dos conflitos e uma informação mais acurada “das ruas”.

Esses agentes, em geral convivem com a suspeita de que podem estar envolvidos em redes criminosas, “corrupção” ou que possam sofrer represálias de criminosos, caso atuem com “imparcialidade” e rigor, dentro dos padrões ideais de conduta. Todos eles têm um nome, um rosto, um cargo, uma reputação. Além disso, as pessoas podem ser vizinhas, parentes, colegas de trabalho, mas ao mesmo tempo são vizinhas de alguém que é parente de um colega do trabalho, ou são casadas com parentes ou comadres de algum vizinho ou colega de trabalho, formando uma rede intrincada de circuitos sociais na cidade.

Ao contrário, os policiais de fronteira (e outros agentes de segurança, como militares e agentes da Força Nacional) não são nascidos nessas regiões de fronteira, estão ali de passagem e em sua maioria vêm de grandes centros urbanos, onde a violência e impessoalidade são traços característicos dos seus procedimentos de trabalho, em que prevalece a “linguagem da violência urbana” no lugar da “linguagem dos direitos” na manutenção da ordem pública.  Os discursos que entendem a fronteira apenas como limite entre países e como área de segurança nacional são constituintes da formação desses agentes, que incorporam a defesa do território nacional como parte de sua “missão”, durante sua permanência nas cidades fronteiriças.

JU – O PCC (Primeiro Comando da Capital), como esperado, também é analisado. Em qual aspecto?

Eli Torres – A facção Primeiro Comando da Capital (PCC) é analisada sob o aspecto organizacional, indicando quais as funções hierárquicas, e como ocorrem os fluxos, os batismos e as exclusões de cada membro dentro do organograma da facção criminosa que se forjou na informalidade das prisões brasileiras.

O artigo apresenta também os Estatutos, as mudanças ocorridas a partir da gestão do Cidade Proibida Marcos Camacho (o Marcola), de modo a aprimorar o estabelecimento de regras aos presos sob o atual lema organizacional: Paz, Justiça, Liberdade, Igualdade e União, inspirado nos ideias  da revolução francesa Liberté, Egalité, Fraternité.  A partir da gestão de Marcola, o PCC adotou mudanças substanciais, dentre elas, encontra-se a substituição da estrutura piramidal pela horizontal entre os seus membros, visto que a horizontalidade proporciona a aparência de autonomia entre os diversos postos e níveis, reafirmando, no interior do grupo, a ideia que a facção não dispõe de natureza hierárquica entre suas funções de comando e comandados.

JU – A segunda parte do livro trata da questão da educação. Esse direito é assegurado aos prisioneiros?

Eli Torres – O direito é assegurado de maneira ainda muito insipiente no país. Isso porque apenas 11% dos custodiados frequentam as escolas nas prisões. Por outro lado, vale considerar que ocorreram conquistas significativas nos últimos 10 anos e,  dentre as mais expressivas, encontram-se a consolidação das Diretrizes Nacionais para a Educação em Prisões e a aprovação da Lei de Remição de Pena pela educação no Brasil, a qual investigo em meu doutorado na Unicamp. Alterações legislativas importantíssimas, decorrentes dos esforços de intelectuais e especialistas, que formaram um campo próprio de estudos, pesquisas e militância pela universalização da educação em espaços de privação de liberdade. Essa luta pela educação nas prisões é travada diante de constantes embates pelo cumprimento da Lei de Execução Penal que estabelece regras e indica as possiblidades de acesso à assistência educacional em penitenciárias e, também, pela ampliação da oferta sob a chancela de que a educação é um direito universal e humano tanto para indivíduos livres, quanto para os cativos.

JU – A questão de gênero dentro da prisão mereceu três capítulos do livro. Quais pontos você pode destacar?

Eli Torres – Na obra, os autores reconhecem certos avanços para a garantia de direitos da mulher, inclusive daquela em conflito com a lei, todavia, observam que as conquistas são pontuais e estão aquém de uma proposta de isonomia de gênero.  A realidade da mulher encarcerada retrata aspectos e representações sociais da sociedade envolvente e, por isso, mereceu três capítulos do livro.

Posso destacar o que identifico como “escrita de resistência”, realizada pela autora Alexandra Costa ao dar pistas importantes sobre o aborto e a punição no Brasil, a partir do caso “Neide Mota e as dez mil mulheres”, e também o fato dos autores do capítulo “Mulher encarcerada: narrativas entre o sofrimento e a indignação”, utilizarem-se, intencionalmente, da escrita gendrada, ou seja, valer-se dos artigos “o, a, os, as” com o intuito de retirar o feminino da invisibilidade, ainda utilizados para identificá-las. A iniciativa busca muito mais do que, simplesmente, evidenciar “o feminino”, mas, especialmente, apresentar novas maneiras para inquietar as cristalizações patriarcais e colaborar na constituição de novas representações sociais de gênero, onde as mulheres, privadas de liberdade ou não, apropriem-se de seu espaço na construção linguística, bem como na produção subjetiva, por exemplo.

 

Imagem de capa JU-online
Detentos em sistema prisional | Foto: EBC

twitter_icofacebook_ico