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O que há por trás do ‘mata-mata’ na Paraíba

Tese de doutorado é guiada por uma questão: por que grupos tão distintos como sem-terras e LGBT são vítimas das mesmas armas?

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Os grupos de extermínio atuantes na região de fronteira entre Pernambuco e Paraíba assassinam, dentre suas vítimas, adolescentes e jovens em conflito com a lei, supostos marginais, trabalhadores rurais, sem-terra e homossexuais. Esta constatação, registrada no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Extermínio do Nordeste, concluída no ano de 2005 na Câmara de Deputados, despertou a pergunta que guia a pesquisa de doutorado do cientista social Roberto Efrem Filho: por que “grupos sociais” tão diversos como trabalhadores sem-terra e LGBT figuram como vítimas das mesmas armas?

“Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território” é o título da tese de Efrem Filho, que foi orientada pela professora Regina Facchini, no âmbito do Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). O autor teve acesso a narrativas documentais e sobretudo de militantes de movimentos sociais campesinos e do Movimento LGBT, acerca das violências que atravessam suas vidas e os conflitos em que se acham implicados. Na entrevista que segue, ele conta como desenvolveu, assim, o que chama de “contextura” do objeto da tese: relações de classe, gênero, sexualidade e territoriais reciprocamente constituídas e oportunizadas por narrativas sobre violência e pelas condições em que as vítimas produzem essas narrativas.
 

Foto: Antonio Scarpinetti
Roberto Efrem Filho: relações de classe, gênero, sexualidade e territoriais são reciprocamente constituídas e reveladas nas narrativas de violência

Jornal da Unicamp – Primeiramente, peço que fale do contexto em que se deu a pesquisa.

Roberto Efrem Filho – A pesquisa partiu de um dado que estava no relatório final da CPI sobre Grupos de Extermínio no Nordeste. Essa CPI foi concluída em 2005 na Câmara dos Deputados e resultou de um investimento muito grande de organizações de direitos humanos da Paraíba para que esses sujeitos identificados como grupos de extermínio fossem denunciados e enfrentados. Principalmente pelo fato de que esses grupos estavam diretamente implicados nos conflitos agrários. Havia vários casos de trabalhadores rurais que lutavam por reforma agrária e que eram violentamente reprimidos, ou mesmo assassinados, em razão da ação desses grupos e de sua ligação com o latifúndio – os proprietários de terras daquela região. É uma região de cana de açúcar, muito próxima da Zona da Mata, e que desde sempre foi muito conflituosa, desde sua fundação que há conflito e há morte.

Eu parto desse dado porque achei muito interessante, de antemão, que grupos de extermínio assassinassem sujeitos tão diferentes, como os sem-terra, bandidos (ou classificados como tal) e homossexuais. Comecei a me perguntar o que unifica esses sujeitos para que as mesmas armas atuem sobre eles. Também comecei a me perguntar sobre como os dados relativos a essas mortes eram produzidos. Eu supunha inicialmente que essas mortes decorriam do conflito agrário, que matava os sem-terra, e de relações de gênero e de sexualidade, que levavam à vulnerabilidade e à morte de LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais).

Quando fui pesquisar como são produzidos esses dados, compreendi que as relações sociais que permitem as mortes desses sujeitos são relações entrecruzadas. No caso de um conflito agrário, por exemplo, uma mulher foi violentada sexualmente, com a introdução de um objeto em sua vagina. Mas o que uma cena de violência sexual tem a ver com um conflito agrário? Comecei a perceber, então, que as relações de gênero e de sexualidade perfaziam o conflito territorial: aquela coisa de “a terra virgem que precisa ser conquistada” ou “a terra que deve ser desbravada” – e a mulher, no meio deste conflito, pode ser violentada.

JU – Há esse paralelo com a mata virgem. Mas não há também um viés psicológico, por exemplo, vamos violentar as mulheres deles para assustá-los, fazer com que fujam?

Roberto Efrem Filho – Certamente havia a produção do impacto. Violentar aquela mulher era chegar a um ponto extremo de dizer: “vocês não podem ir além, não podem lutar mais”. Mas o que a gente tem que se perguntar, eu acho, é por que o extremo significa atingir o corpo de uma mulher sexualmente? Por que o brutal precisa ser construído a partir da sexualização? Por que, se eu quero ameaçar ao extremo, ao invés de esfaquear o sujeito homem, eu violento sexualmente a mulher na frente do marido e dos filhos, como foi caso? É como se o corpo da mulher fosse ele mesmo um território sob conflito: um território generificado, de sexualidade, sob conflito.

E isso se repercute nos casos de mortes de LGBT. Ao investigar as mortes de travestis que se prostituem, por exemplo, há sempre um processo de disputa territorial – com a polícia, com o mercado de drogas, com os modos de criminalização – que leva a esses assassinatos. Um dos casos que estudo na tese é o de uma travesti assassinada numa praça pública em João Pessoa, no meio da noite, no meio de muitas pessoas. Levou três ou quatro tiros. O delegado de polícia e o promotor de justiça que atuam no caso concluem que ela morreu por causa do mercado de drogas ilícitas, por causa do mata-mata que constitui esse mercado. Mata-mata é como hoje se designa o ritmo das mortes decorrentes do mercado de drogas em João Pessoa. Os acertos de conta, por exemplo.

A travesti teria morrido por causa de um acerto de contas. Mas o Movimento LGBT, por outro lado, diz não: “ela morreu porque era uma travesti”. O Movimento pergunta o que uma travesti de 17 anos fazia morando numa ocupação de sem-teto, se não devido ao que acontece via de regra com as travestis, que é ser expulsa ou sair de casa muito cedo, ainda adolescente. Como se compreende a morte dessa moça? Uma travesti, negra, habitante de ocupação de sem-teto, que morre em meio ao mata-mata. O investimento da tese é o de perceber como as relações sociais se fazem umas através das outras, ou seja, como uma travesti está ligada a um ser sem-teto, como esse ser sem-teto se relaciona com o processo de criminalização e, portanto, com o mercado de drogas, o que possibilita as mortes.”

João Pessoa é a segunda capital em que mais se mata e mais se morre. Temos a imagem de uma cidade pacata, tranquila, harmoniosa, mas é uma cidade em que se mata muito, só se mata menos que em Maceió. E esses sujeitos são alvos dessas mortes, que se relacionam tanto às violências mais “tradicionais”, como é o caso da violência contra os sem-terra, como as mais urbanas, que têm a ver com o mercado de drogas e com a criminalização.
 

Foto: Antonio Scarpinetti


JU – Você relatou dois casos concretos. No primeiro, a investigação seria: se você quer intimidar um grupo, visa às mulheres do grupo, sexualmente; e a outra é o que leva uma travesti, uma pessoa transexual, a estar imbricada no meio de uma situação de violência, o que a princípio nada tem a ver com a identidade dela, pois a travesti poderia estar em outro lugar, se as condições sociais fossem diferentes.

Roberto Efrem Filho – Este momento, você entendeu bem. E há um segundo momento, que é o modo como se gere essas mortes no Estado. A violência contra essa trabalhadora rural foi apagada dos processos judiciais. Nenhuma dessas violências cometidas contra a família dela, nessa noite em que sua casa foi invadida e ela foi violada sexualmente, nenhuma dessas violências foi de fato julgada, ninguém foi condenado por elas. Houve de início uma decisão judicial que pedia a prisão preventiva dos acusados, entre eles um policial civil que hoje está morto e era envolvido com o que seriam esses grupos de extermínio. O processo começa com a investigação sobre atentado violento ao pudor, mas termina com a denúncia de lesão corporal de natureza leve. O estupro desaparece completamente.

JU – É como se a violência fosse filtrada ao longo da burocracia.

Roberto Efrem Filho – O que significa que a pessoa é menos importante, pois se você pode filtrar a violência, diminui-la a esse ponto, é porque aquela vítima não é vítima o suficiente, ou não é legítima o suficiente enquanto vítima. Daí que parte da tese se dedica ao entendimento da disputa que há para as vítimas serem compreendidas como vítimas, para que elas sejam legíveis, compreensíveis, nestes processos de Estado.

JU – Li o trabalho em direitos humanos de uma pesquisadora americana (o nome me foge agora) em que ela dizia que toda sociedade tem a sua classe torturável: um grupo de pessoas que, não importa o que se faça com elas, a sociedade meio que não liga, acha que esse povo é assim mesmo e tal. Você acha que esses grupos marginalizados são os que acabam se encaixando nessa categoria?

Roberto Efrem Filho – São. Estamos falando de uma quantidade de pessoas que não é pequena, que não são minoria, e acho esta uma questão central: são facilmente deslocáveis para esse lugar do mais “morrível”, mais “matável”. O esforço da tese está em relacionar esses sujeitos, a travesti é um desses sujeitos, o sem-terra e também o boy que morre no mercado de drogas. São corpos disponíveis, facilmente elimináveis. E sendo mais elimináveis, na dinâmica do jogo das mortes, são corpos cuja tradução no campo jurídico, por exemplo, é muito difícil, porque o juiz não liga, é mais uma morte sendo ali julgada e administrada, é uma vida que vale muito pouco.
 

Foto: Antonio Scarpinetti


JU – E que caminhos, que tessituras você encontra nessa correlação entre a trabalhadora rural violentada sexualmente e a travesti assassinada em meio ao mata-mata?

Roberto Efrem Filho – Acho que temos o ganho de perceber como nós estamos todos próximos. Porque tanto nas organizações de esquerda como na academia de modo geral, existe uma forma de compartimentalizar esses sujeitos e de separá-los. É muito raro se deparar com uma tese que trate de travestis e dos sem-terra ao mesmo tempo, eu nunca vi. O ganho é demonstrar que, se eles são todos reciprocamente vitimáveis e violentáveis, se na feitura da política existe um contato entre esses sujeitos, significa que não podemos separar questões como mais ou menos importantes, ou como centrais ou específicas.

Temos aí um impasse teórico que é o de compreender, por exemplo, que não se trata de resolver questões econômicas antes e resolver questões de sexualidade e de gênero depois – você só consegue resolver uma questão se resolver as outras. Mesmo no conflito agrário, tem sexualidade (não à toa, a violência é sexual); na morte da travesti, há relações de classe. Achamos que resolvendo a questão da desigualdade social e de classe, damos conta de minimizar os efeitos sobre todas as pessoas, igualmente, ao mesmo tempo. Não damos conta. Se não consideramos, por exemplo, a racialização como um fator, o gênero como um fator, a sexualidade como um fator, não damos conta da participação ou do aumento dessa participação democrática.

JU – Mas isso não gera a percepção de um problema que é grande demais para ser administrado? Se você não tem um fio por onde puxar, se todos os fios são principais, como se resolve isso?

Roberto Efrem Filho – Não sei, não, como se resolve isso (risos). Mas acho que o caminho é ir atrás do urdir desses fios todos, porque eles estão amarrados, nas experiências das pessoas, eles estão amarrados. Por exemplo, o que você é? Você é antes uma pessoa branca, antes um trabalhador da Unicamp ou antes o filho da sua mãe? Você é tudo isso ao mesmo tempo, agora, não espera ser uma coisa para depois ser outra.

JU – Você não põe um entre parênteses para fazer outra coisa.

Roberto Efrem Filho – Não, não tem como. O que torna você mais ou menos vitimável? As relações mais violentas têm a ver com esse sujeito que você é. Por exemplo, eu sou gay, sou classificável aí, mas não na mesma condição de vulnerabilidade como a daquela travesti. Porque as relações de classe que ela perfaz são outras, as relações de racilização que ela atravessa são outras, são diferentes das minhas. Isso a gente tem que perceber. Se a gente não percebe o que causa as mortes, como as relações estão provocando as mortes, a gente não está entendendo nada do que é a vida. Compreender a morte é fundamental. E, no fim, o que as mortes nos estão dizendo é isso: temos que valorizar e prantear essas mortes, para dar sentido às vidas, para que aquilo que acontece e que produz as mortes não mais aconteça, para que isso não se repita.

Imagem de capa JU-online
O que há por trás do ‘mata-mata’ na Paraíba

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