Foto: ScarpaReginaldo Carmello Corrêa de Moraes é professor aposentado, colaborador na pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. É também coordenador de Difusão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-Ineu). Seus livros mais recentes são: “O Peso do Estado na Pátria do Mercado – Estados Unidos como país em desenvolvimento” (2014) e “Educação Superior nos Estados Unidos – História e Estrutura” (2015), ambos pela Editora da Unesp.

Os diferentes usos e significados da pesquisa na nossa universidade

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Ilustra: Luppa Silva Sim, nós sabemos e aclamamos - a Unicamp é uma “universidade de pesquisa”. A vocação para a pesquisa penetra sua forma de ensinar e sua forma de promover atividades de extensão. Mas... o que entendemos por pesquisa? Como e por que a fatiamos em aplicada e básica, alocando suas variedades em gavetas diferentes? Qual pesquisa se faz ou se deve fazer na universidade?

            Essas perguntas me incomodaram quando estava trabalhando em uma pesquisa do nosso Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (NCT-Ineu). Tinha como foco a política de educação superior, ciência e inovação nos Estados Unidos. E me vi diante da dificuldade enfrentada pelas tipologias em uso – ciência básica, aplicada, desenvolvimento, o que são e como se diferenciam? Procurei selecionar estudos que discutissem esse tipo de classificação, importante para definir as políticas públicas para o setor. E por isso olhei com mais atenção para um livrinho de Donald Stokes, publicado pela Editora da Unicamp em 2005 - O Quadrante de Pasteur – A ciência básica e a inovação tecnológica.

            A figura do quadrante, a que se refere o título, expõe uma tipologia ordenada a partir de duas perguntas: (1) a pesquisa de que falamos busca entender os fundamentos de um campo, construir teorias e modelos de amplo espectro?  (2) ela leva em conta o uso, é orientada por esse alvo? Stokes constrói o diagrama dos quatro tipos, cada um deles representado por um patrono ou personagem-ideal.

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            No diagrama de Stokes as diferentes formas de investigação científica são combinações dessas motivações e tendências. O “tipo ideal” da pesquisa sem motivação utilitária e com forte orientação teórica é personificado por Niels Bohr. A pesquisa aplicada, no outro extremo, é personificada por Thomas Edison e sua ‘fábrica de invenções’. O quadrante de Pasteur é aquele que mais intriga e inspira Stokes, combinando as duas motivações: revoluciona os fundamentos e tem visível apelo para o uso.

            Faz algum tempo comentei, em outro artigo, que a reflexão de Stokes tinha algo de estranho – um quadrante vazio. É o quadrante da pesquisa que responde não às duas perguntas: não é dirigida pela busca dos fundamentos, os modelos teóricos,  nem pela utilização, a aplicação. Ora, falta, no esquema de Stokes, alguma coisa? Adiantei então a hipótese de que em universidades como a nossa – em que o ensino pós-graduado ocupa metade ou mais dos recursos e estudantes - deveríamos pensar seriamente nesse quadrante.

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Da esq. para dir., Pasteur, Bohr e Edison | Imagens e Fotos: Reprodução | Google Images

            A comparação com outras atividades humanas me parece útil para avançar a reflexão. Agricultores e criadores produzem alimentos, é certo, mas produzem também sementes e matrizes. A Universidade produz cientistas, engenheiros, médicos... para a indústria, a agricultura, os bancos, os serviços públicos e privados. E quem produz os professores e pesquisadores para a universidade? Quem produz professores para a rede do ensino superior? Esta “coisa especial”, esta competência especifica e especial se produz... com pós-graduação e hábito de pesquisa, aquela que cultivamos na universidade... mesmo quando não gera modelos teóricos revolucionários nem inovações prontas para disseminação e uso.

            Desse modo, acredito, estava a encontrar um modo de preencher a célula vazia do diagrama de Stokes. Aliás, no diagrama o espaço está vazio, mas, aparentemente, não estava ausente no pensamento do autor, como indica uma passagem a seguir:

“Há casos em que o objetivo primordial da pesquisa é aumentar as habilidades dos pesquisadores....projetos de pesquisa nos quais os investigadores começam a trabalhar em uma nova área, não pelas descobertas que farão, mas para ganhar habilidade e experiência, que poderão mais tarde utilizar "quando surgirem problemas naquela área", ou quando grandes avanços obtidos por outros pesquisadores tornarem o campo importante.”

Foto: Reprodução          Com o risco de ser repetitivo, sublinho o que diz Stokes. Nesse quadrante, aparentemente vazio, podemos encaixar a pesquisa cujo objetivo central – aquilo que a motiva e compõe seus critérios de realização – não é produzir modelos novos para explicar fundamentos de determinado campo da realidade (natural ou social). Nem é produzir algum dispositivo ou processo que resolva determinado desafio prático. Ela busca, sobretudo, treinar pesquisadores e ampliar sua capacidade de ver e inovar.

          Grande parte da pesquisa que fazemos nas nossas universidades têm como resultado o aprimoramento de procedimentos e técnicas, a criação de ferramentas intelectuais decisivas para outras pesquisas – e é assim que produzimos bancos de dados, arquivos e coleções, registros de experimentos e observações, dicionários especializados. E é através desse gênero de pesquisa que formamos competências, produzimos coisas que não estão necessariamente no armário do laboratório nem nas teses e dissertações, mas na mente das pessoas.

            A chamada formação de capacidades de inovação já é um fator avaliado como decisivo no desenvolvimento dos países modernos – a produção de conhecimentos tácitos embutidos na habilidade de um torneiro, de um analista químico ou de um investigador científico, para citar alguns exemplos entre tantos possíveis. A produção de capacidades, de potenciais de inovação e invenção é que permite que, por exemplo, países retardatários na industrialização passassem da imitação à adaptação e desta à invenção e inovação.

            Ainda um aspecto deve ser sublinhado, para que a universidade abra seus horizontes. A pesquisa relevante, em qualquer país que pretenda ter futuro, precisa focalizar não apenas o conhecimento voltado para a modificação da “natureza inerte” (ou que consideramos como tal), mas, também, para a gestão de nossas próprias “naturezas”, do comportamento e das relações humanas. Um grande pioneiro das teorias do desenvolvimento sintetizou essa ideia num ensaio de 1954:

O desenvolvimento econômico depende tanto do conhecimento tecnológico sobre coisas e criaturas vivas quanto do conhecimento social sobre o homem e as suas relações com os seus semelhantes. A primeira forma de conhecimento é frequentemente acentuada, mas a segunda tem a mesma importância. O crescimento depende tanto de saber como administrar organizações em grande escala, ou de criar instituições que favoreçam o esforço para economizar, como de saber selecionar novos tipos de sementes, ou construir maiores represas. [William Arthur Lewis – A Teoria do Desenvolvimento Econômico]

 

 

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