Foto: Antoninho Perri

Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).

Ao passar por um acesso ao campus

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Ilustração: Luppa SilvaEste espaço aqui é para começar a falar de ciência considerando as múltiplas dimensões dessa atividade humana, muito além do que tantos consideram seus produtos principais e finais (os artigos científicos) e os indicadores relacionados. Entre essas várias dimensões, temos que olhar com carinho para os lugares onde a ciência acontece, entre os quais se destaca a universidade pública. E esse lugar hoje merece atenção especial.

Há poucos dias morreu um dos seus importantes articuladores, Antonio Candido, de particular relevância para a Unicamp. Lembrando-me dele, outros nomes passaram a orbitar na memória, compondo o instigante panorama do pensamento expressado em língua portuguesa sobre as questões universitárias. A partir da contemporaneidade de Boaventura de Souza Santos, podemos voltar ao precursor Anísio Teixeira, passar por Darcy Ribeiro e lembrar também o praticamente esquecido inventário de Roque Spencer Maciel de Barros sobre o intenso debate brasileiro acerca da ideia de universidade no século XIX.

Foto: Antoninho Perri
As letras esmaecidas no memorial situado em uma das entradas da Unicamp: alerta simbólico

Pensando em educação, universidade e ciência no Brasil, o passeio pela memória enrosca-se em outro nome: Florestan Fernandes. E voltamos de maneira contundente aos momentos de agora com os discursos questionando a universidade pública, nos quais sobressaem as bandeiras de seu financiamento e sua eficiência. Os acessos (de carros) ao campus principal da Unicamp são, nesse contexto, sem dúvida, uma preocupação pertinente, afinal circulam ali diariamente dezenas de milhares de pessoas. Um desses acessos abriga um memorial a Florestan Fernandes, que em forma de livro aberto (esteticamente questionável) ostenta uma frase deste sociólogo: “o objetivo da educação é inventar e reinventar a civilização sem barbárie”. Recentemente, durante um domingo chuvoso, passei por ele novamente depois de muito tempo, pensando na época em que lia a frase todo dia ao chegar à universidade. Hoje temos outra entrada próxima, mais eficiente, carinhosamente apelidada de “tapetinho”, que de longe passou a ser mais movimentada. Assim, o memorial a Florestan Fernandes foi relegado ao esquecimento: inaugurado em 1995, logo após a morte do homenageado, a frase sobre a educação está praticamente apagada, várias palavras apenas se insinuam vagamente. O campus se modifica e cresce como tradução material da reação da universidade às crescentes demandas sociais com as quais precisa se compromissar. Mas o esmaecimento da frase sobre a educação é um alerta simbólico sobre como respondemos a esses compromissos. A invenção e reinvenção da civilização sem barbárie exigem invenções e reinvenções também da universidade, que podem pensar tanto no trânsito do que já existe, quanto na circulação de novas ideias.  Parece-me que o alerta vale igualmente colocando ciência no lugar de educação.

Nesses vinte anos, enquanto desaparecia lentamente o registro do aforismo de Florestan Fernandes no acesso à universidade, crescia o capital simbólico de compilação de outra natureza: os indicadores de produção científica internacionalmente indexada (e mais tarde de seu impacto entre pares), que na sequência passaram a ser os fiadores dos ranqueamentos de universidades. Nada contra, pois são (ranqueamentos e indicadores) meu ganha-pão de pesquisa, mas tem lá seus problemas. Galgar posicionamentos nessas tabelas leva a que nos limitemos ao que Ismael Ráfols[1] chama de “espaço de pesquisa bem iluminado pelos indicadores”, que é menor do que o “espaço de pesquisa”, que, por sua vez, é menor do que o “espaço de problemas”. E o que nos aguarda nesse vasto território? Segue um singelo exemplo.

Recentemente aconteceu o Colóquio Nacional Interdisciplinaridade nas Ciências Humanas e Sociais Aplicadas na Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp em Limeira. Um dos trabalhos apresentados chamava-se “O sadismo e sua multiplicidade: literatura, filosofia e psicanálise”. Durante uma carona para a rodoviária, o autor revelou-se grato aos organizadores do evento por terem aceitado o trabalho, que até então havia sido sistematicamente recusado em outros saraus científicos com a justificativa de que a temática e a linguagem usada não serem apropriados ao ambiente acadêmico (?). Parece que esse mínimo de ousadia pode desvelar parte de um imenso território.

 


[1] http://www.sibi.usp.br/noticias/ismael-rafols-avaliacao-pesquisa-inclusiva/

 

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