audiodescrição: imagem colorida, de perfil, Alexandre veste camiseta cinza, usa óculos

"Em poucos traços" é uma coluna assinada por Alexandre Soares Carneiro, professor assistente doutor do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).

alex@unicamp.br

A prosa e o exercício da conversação.

Edição de imagem

Em uma famosa cena de O Burguês Fidalgo (1670), de Molière, Monsieur Jourdain se surpreende ao descobrir que há décadas vinha fazendo prosa sem o saber. “Então quando eu digo: Nicoleta, traga-me as chinelas!... é prosa?”, pergunta a seu professor. O jogo humorístico com a banalidade associada à linguagem oral revela, paradoxalmente, um pouco do seu potencial expressivo, seja no diálogo cômico ou na conversação; a qual, na tradição francesa, deve ser elevada, mas também enjoueé (festiva, animada, divertida).

As argúcias da conversação infiltram-se nas produções literárias e definem aspectos importantes do classicismo francês. As Máximas (1665) do Duque de La Rochefoucauld, uma das principais obras do período, são gestadas no salão da Marquesa de Sablé. Algumas peças de Molière recuperam o espírito vivaz desse tipo de reunião, em que letrados e aristocratas, sob a égide de uma grande senhora, examinam com liberdade os grandes tópicos do momento. Esse ambiente é representado de forma direta na Crítica da Escola das Mulheres, de 1662, diálogo meta-teatral por meio do qual o autor intervém na querela desencadeada por sua primeira grande comédia. Sua resposta aos detratores é satírica, mas elaborada segundo uma aguda reflexão sobre o cômico.

As preciosas ridículas (1659), seu primeiro sucesso nos palcos, já explorava a conversação mundana a partir da inadequação das personagens ao mundo elegante. Suas metáforas extravagantes, sua credulidade diante dos absurdos proferidos pelo falso Marquês que as engana garantem os momentos mais divertidos dessa breve farsa. O esprit que falta a essas jovens provincianas é encarnado, em contrapartida, pela protagonista feminina de O Misantropo (1666). Anfitriã sedutora, dominando a conversação com observações sagazes, Célimène se mostra uma grande satirista, seja na “cena dos retratos” (ato II, cena 4) ou nas cartas reveladas no ato final (V, 4); e sabemos o quanto os retratos e a epistolografia se beneficiam das práticas conversacionais do lazer aristocrático.

Recordei essas leituras ao encontrar, em obras modernas sobre a escrita, o elogio de um estilo conversacional. Os autores de Clear and Simple as the Truth (1994), por exemplo, nisso se baseiam para  formular uma defesa contemporânea da prosa clássica, invocando mestres como Descartes, La Rochefoucauld, Madame de Lafayette e Madame de Sévigné. Mais recentemente, Steven Pinker retomou a ideia em The Sense of Style (2014), guia de redação fundamentado no estudo científico da linguagem. Esse tipo de produção talvez pudesse ter um papel formativo em nossas escolas e universidades, considerando nossa carência nesse campo. E é sempre um prazer quando um clássico volta a nos falar por seu aspecto mais sugestivo e (por que não?) modelar.

Por outro lado, faz bem pensar que Molière, tendo aplicado seus talentos de artista para examinar a conduta humana e promover o riso no palco, soube recorrer àquela prosa afiada pelo exercício da conversação para desacreditar os ataques do chamado partido devoto. É o que vemos no prefácio do Tartufo (1669), elaborado durante o período em que tentava reverter a proibição da peça. Segundo o autor, seus inimigos, imitando o infame personagem, “cobriram seus interesses com a causa de Deus” para acusar a obra de impiedade. De uma ponta à outra, nada haveria nela que não a fizesse merecer a fogueira. “Todas suas sílabas são ímpias, os próprios gestos ali são criminosos; e o menor olhar, o menor movimento de cabeça (...) esconde mistérios que eles tentam interpretar contra mim”. E, assim, “fazem bradar em público zelosos indiscretos, que me injuriam piedosamente e me condenam ao inferno por caridade”.

Novos dogmas geram novos oportunistas, e só podemos imaginar os recursos que Molière precisaria hoje empregar na defesa de sua penúltima grande criação, As Eruditas, de 1672. Longe de ser uma diatribe contra o acesso das mulheres ao saber, Les femmes savantes é uma comédia filosófica sobre o conhecimento, tangenciando temas da doutrina cartesiana (como o bom senso e as certezas), então em voga nos salões. E, nessa peça, a impostura religiosa do Tartufo encontra seu exato equivalente na pedanteria literária de Trissotin: os falsos devotos se intrometem entre os crentes e Deus da mesma forma que eruditos de pacotilha controlam as discussões intelectuais para manipular seguidores. Já suas vítimas, ridículas em sua obsessão cultural, apenas repetem os tiranos familiares de outras comédias do autor – assim Philaminte, esposa “anti-burguesa”, impõe um regime opressivo dentro de casa e ainda planeja uma Academia feminina concebida como um verdadeiro órgão de censura, vigiando beatificamente qualquer gracejo ofensivo na literatura e na conversação. Uma femme savante não é uma mulher instruída e de espírito, mas uma ativista desconstruída avant la lettre: uma fanática da sublimidade, cujo puritanismo crédulo legitima suas sombrias propensões despóticas.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.

twitter_icofacebook_ico