Edição nº 671

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de outubro de 2016 a 16 de outubro de 2016 – ANO 2016 – Nº 671

Ciência com fronteiras

Pesquisadora analisa sentidos do discurso oficial
sobre programa de internacionalização do governo federal

“Ciência sem Fronteiras é um programa que busca promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional”. A descrição está na página oficial do programa, uma iniciativa dos Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e do Ministério da Educação (MEC). Mas quando fala em ciência, a que exatamente o texto se refere? E, principalmente, quando se observam as áreas contempladas, o que não está sendo dito? Ou, para quem trabalha na área da linguística, quais os sentidos que são produzidos por esta ausência, sobretudo com relação às artes e às ciências humanas?

Essas questões mobilizaram a pesquisadora Tainá Cristina Costa Lopes, que defendeu mestrado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), com orientação da docente Monica Zoppi, sobre os sentidos de ciência na política do Ciências sem Fronteiras. Tainá analisou textos diversos do site oficial do programa, assim como o seu projeto de lançamento, e ao final concluiu que o que se pretende com o programa - e está bastante claro - é o desenvolvimento econômico do país a partir da valorização de certas áreas do conhecimento.

Tainá usou a proposta de análise defendida pelo professor Eduardo Guimarães, do IEL, que é a Semântica do Acontecimento. Filiada à Análise do Discurso, a metodologia leva em consideração a enunciação como um acontecimento, e o sentido de uma palavra como algo que se constrói a partir da sua história de enunciações, no texto em que aparece e em relação a outras palavras ali presentes.

O trabalho é uma espécie de mapeamento das palavras, que leva em conta dois procedimentos: a reescrita da palavra, ou como ela aparece de outra forma no texto, agregando novos sentidos; e o domínio semântico de determinação, ou seja, que palavras são usadas para determinar a palavra ciência e, assim, construir o seu sentido.

Segundo a autora, “a palavra ciência aparece nos textos analisados como: áreas tecnológicas, inovação, áreas de vanguarda científico-tecnológicas, áreas que vão trazer o desenvolvimento para o Brasil”. As palavras que estão determinando ciência, seriam: tecnologia, inovação e vanguarda, por exemplo.

A primeira e preocupante descoberta da pesquisa foi a de que, ao excluir as humanidades das áreas elegíveis, o Ciência sem Fronteiras delimita o que é ciência e o que não é. “Se o programa chama Ciência sem Fronteiras, e é voltado para a ciência, só é ciência na concepção do programa, o que ele definiu como elegível, o que ficou de fora não é considerado ciência nesse contexto”, aponta Tainá. Ou seja, humanas e artes não são consideradas ciências.

Se assim for, o que o programa considera ciência afinal? “Fui percebendo que a palavra vinha sempre predicada por um sentido de tecnologia e inovação. Mesmo nas áreas elegíveis, pouquíssimas vezes aparecia a palavra ciência. Em seu lugar muitas vezes foram usados termos como ‘o novo em produção de conhecimento’, ‘conhecimento tecnológico’, etc”.

Sem contar que as áreas contempladas são tratadas com “áreas de vanguarda”. Tainá questionou.  “O que é a vanguarda? Algo que está à frente. Portanto, se as áreas escolhidas são ciência na concepção do programa, e vêm predicadas por esse sentido de inovação, de algo que está à frente e, por isso, podem trazer o novo e, assim, o desenvolvimento para o país, o que acontece, então, com as áreas que estão excluídas? O que é relegado para as ciências humanas e artes? A elas é relegado o passado, um efeito de sentido de que elas se ocupam do que é velho, obsoleto, e, por isso, não vão trazer o desenvolvimento para o país”.

Tainá ressalta que nada disso está no texto claramente. “São sentidos que se produzem nesta relação da palavra ciência com as outras”, e mesmo a exclusão das humanidades não se dá explicitamente a todo momento. A pesquisadora recorda o caso de uma das áreas elegíveis que é a “indústria criativa”. “Quando foram concedidas as primeiras bolsas, não havia uma definição muito clara do que se tratava essa área. Alguns alunos de artes, arquitetura e marketing se utilizaram dessa brecha e conseguiram algumas bolsas”. No entanto, complementa, a partir de 2013 a área passa por um refinamento e foi modificada para “indústria criativa voltada para a produção de produtos tecnológicos e inovadores”, para que as áreas excluídas – como as artes, por exemplo – não pudessem realmente participar do programa.

Sem fronteiras
Primeiramente, a pesquisadora analisou como a palavra ciência estava colocada de diversas formas. Considerando que a primeira ocorrência da palavra se dá no próprio nome do programa, inicialmente a busca foi pelos sentidos para as fronteiras, no nome do programa. “Num primeiro momento o que me ocorreu é que o ‘sem fronteiras’ estava funcionando como um elemento polissêmico, de vários sentidos. O que era o ‘sem fronteiras’ ali dentro? ”.

“Como se trata de um programa de intercâmbio, o sentido que se coloca em evidência, o inquestionável, é o geográfico, estabelecendo um cá, que é o Brasil, e um lá, que é o exterior”, ressalta. Em outro momento, os textos mencionam que o intercâmbio é para que o aluno mantenha contato com sistemas educacionais e centros de pesquisa que são referência mundial. “Que tipo de fronteira está sendo colocando aqui? É uma fronteira da produção de conhecimento. O ‘cá’, o Brasil, não é tido como um lado da fronteira que produz conhecimento, por isso o aluno precisa atravessar essa fronteira, para adquirir o conhecimento do lado de lá, ou seja, nos países de destino do programa”.

As fronteiras, aparentemente geográficas, se mostram geopolíticas, relata Tainá. Ela estudou um mapa do bolsista do Ciência sem Fronteiras no mundo, que mostra para onde são mandados os alunos do programa. Isso diz muita coisa. “Noventa e oito por cento dos países estão no Hemisfério Norte, América do Norte e Europa, pouquíssimos no Hemisfério Sul, entre eles Chile e África do Sul”.

A maioria dos países fala inglês e tem a economia bastante desenvolvida. “Comparei o mapa com a tabela das maiores economias mundiais. Você vê que existe uma correlação entre poder econômico e a produção de conhecimento científico. E, assim, também com o conceito de ciência veiculado pelo programa”.

A página do programa na web informa que o objetivo do Ciência sem Fronteiras é internacionalizar a ciência brasileira para colocar o Brasil “em condições de competir internacionalmente”. A pesquisadora começou a pensar no tipo de desenvolvimento do país que se pretende. “Que desenvolvimento é esse senão o econômico?

A ausência de países da América do Sul, sendo o Brasil um país da América do Sul, “produz um sentido” que o subcontinente não só não produz ciência em nível internacional como precisa importá-la de outros países. “Seus estudantes são enviados para centros que são referência com o objetivo de desenvolver a ciência nacional. O desenvolvimento que essa ciência irá trazer dará condições ao país de competir com as maiores economias do mundo, ou seja, o desenvolvimento que o programa pleiteia é o desenvolvimento econômico”.

Se somente a ciência, ou seja, “as áreas tecnológicas e inovadoras” proporcionam ao país chegar a esse nível de competir com as maiores economias, o que fariam as outras ciências? Não se considera nesse contexto que as áreas de humanas, artes e ciências sociais contribuiriam para o desenvolvimento do país porque elas não tratam do desenvolvimento que se busca.

No fundo o que perpassa essas discussões é a questão da utilidade. “É considerado conhecimento útil o que produz algo vendável. Não abrange o desenvolvimento humano, o cultural, necessários para uma participação ativa na sociedade”. Nesse caso o olhar da pesquisadora para o Ciência sem Fronteiras é de enxergá-lo como uma lente de aumento para o acontece no país em termos da valorização de áreas de conhecimento e pesquisas.

“Existe no Brasil um perfil do que é ser cientista, porque se está definido o que é a ciência também se determina o profissional a ser valorizado, qual área terá financiamento, marginalizando várias áreas de estudo, vários profissionais”. Tainá também é professora de Língua Portuguesa. “Me pergunto qual é o lugar do professor, que tem seu papel na formação do aluno e ao mesmo tempo não vai ser valorizado num programa de fomento como o Ciência sem Fronteiras”.

Não incentivar a formação do professor é não trabalhar na formação do aluno, do cidadão e também não formar o cientista. “O programa não dialoga com as demandas da sociedade. Ele dialoga com as demandas do mercado, da economia, porque, se fosse um diálogo com as demandas sociais, haveria outras questões a serem postas”.

Por fim Tainá reitera que, com a pesquisa, tentou chamar a atenção para o significado de existir uma iniciativa governamental que produz essa fissura nos campos de conhecimento, e como a exclusão de certas áreas, que são desvalorizadas, é institucionalizada. “Trata-se da legitimação do discurso que exclui certos campos do saber em detrimento de outros, como se eles não fossem importantes para o desenvolvimento humano. Como se fosse importante, apenas, formar mão de obra qualificada”.

Publicação

Dissertação: “Ciência sem Fronteiras: os sentidos de ciência em uma política do Estado brasileiro”
Autora: Tainá Cristina Costa Lopes
Orientadora: Monica Graciela Zoppi Fontana
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)