Edição nº 658

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 03 de junho de 2016 a 12 de junho de 2016 – ANO 2016 – Nº 658

Cabral no presente


Que a poesia de João Cabral de Melo Neto tenha iniciado sua trajetória a partir de um diálogo com o Simbolismo em Pedra do sono, que A educação pela pedra seja “bem obscuro e gaguejante”, que em O cão sem plumas se leia a deglutição antropofágica do cygne de Mallarmé pelo signo “cão” de Pernambuco, que o branco, a pureza, o açúcar e o livro sobre o açúcar de Gilberto Freyre, primo distante do poeta, sirvam de fundo à interpretação de um poema como “Psicanálise do açúcar” – esses gestos de leitura, surpreendentes para um leitor acostumado ao Cabral geômetra, luminoso, formalista, matinal, concreto, serialista, vêm ao encontro daqueles que não abrem mão e não fecham os olhos para ler, atentos, um Cabral que, poeta, é poeta da subjetividade.

Como, em alguma medida, os poemas de João Cabral leram sua leitora? Como imaginar a imaginação de João Cabral? Daí que o título do livro de Cristina Henrique da Costa, Imaginando João Cabral imaginando, exponha menos a subjetividade de quem o lê, e mais um Cabral que pouco se deixou ler enquanto produzia sua obra. O poeta, por exemplo, ao grafar, em título de estreia, a Pedra do sono, ecoasse talvez o que repetia em entrevistas acerca da poesia, que lhe provocava a “perda do sono”. Que a pedra fosse uma objetivação, em trocadilho, da perda, e que ambas fossem um acordar do “sono de pedra”, isso testemunha o emaranhado “complexo de ver” que configura a obra cabralina não como um desejo de ver claro, mas, antes, um desejo secreto de ser punido pelos olhos.

Além da leitura nova que faz de Pedra do sono, a leitura que Cristina Henrique da Costa desenvolve de O cão sem plumas é forte. Primeiro texto do poeta em que aparece a palavra “real”, é também o primeiro poema da obra de Cabral no qual o sujeito poético deixa de ser pensado como origem – mesmo que secreta – da palavra, e passa a se constituir na “convivência metafórica” com a linguagem. Diferença figurada entre sujeito e linguagem, o poema é produto de imaginação. Sem as plumas do cisne que se imagina à revelia do lago, no poema de Mallarmé, o cão, no poema de Cabral, atravessa o poema – e a linguagem poética – em sua crueza monossilábica e metafórica, “como vivo, como ‘dentro’ (da sala, do bolso), como vivo e debaixo (dos lençóis, da camisa e da pele)”. Desmistificar os signos, destronar o cisne, o símbolo, para, em nome do animal, atravessar o poema como o rio, o Capibaribe, um rio real, atravessa a cidade. “Por isso, dizer: é urgente acrescentar ao rol dos feitos antropofágicos da nossa cultura, ao lado do bispo Sardinha, a data de 1949, ano da morte definitiva do cisne e da deglutição de Mallarmé”.

Outro exemplo, que também destaca Cristina Henrique da Costa, está na relação poética com a psicanálise. O “Pernambuco que nenhum Pernambucano reconhece” de Cabral (“The return of the native”) é irrecuperável, e procurar recuperá-lo (trazer de volta ou restaurá-lo) está fora de questão. Mortos – Pernambuco, seus cemitérios, sua paisagem humana – revelam que “a questão da herança dos valores na poesia cabralina passa pelo processo paradoxal, como muitos outros, de uma identificação subjetiva radical que é ao mesmo tempo a recusa da objetivação da identificação”. Assim é que, em “Psicanálise do açúcar”, o açúcar de usina, industrializado, “mostra a mais instável das brancuras”, apenas entrevista pela gente do Recife. Pois mesmo o açúcar branco, de usina, impõe “mínima censura” sobre “o tal fundo mascavo [que] logo aflora”. Seja de usina, por “gente indústria”, ou de banguê, por “gente agricultura”, o risco está posto. No caso último, não há jeito: “o barrento da pré-infância logo aflora”.

Aporética, a psicanálise cabralina revela “uma coincidência paradoxal entre o real e o negativo”, de modo que o seu olhar para a modernidade, no que ela tem de transformação técnica do trabalho e da vida, é de “decepção”. Para Cristina Henrique da Costa, na poesia de Cabral, a modernidade projeta um movimento retornante ao arcaico, conferindo à história movimento cíclico inútil, afinal “o passado é sem futuro real, e o futuro é sem passado dizível”. No presente, esta poesia. Fazendo jus ao poeta subjetivo, na contramão da tradição crítica que leu a poesia de João Cabral como depuração da modernidade, Imaginando João Cabral imaginando lega uma consistente interpretação do poeta que segue fazendo do português uma língua mais difícil de dizer, que, por isso, pede uma leitura, como a de Cristina Henrique da Costa, a contrapelo da história.

Luiz Guilherme Barbosa é escritor, professor do Colégio Pedro II e doutorando em Teoria Literária pela UFRJ.

Serviço

Título: Imaginando João Cabral imaginando
Autora: Cristina Henrique da Costa
Editora da Unicamp
Páginas: 456
Área de interesse: Teoria literária
Preço: R$ 60,00

 

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