Edição nº 628

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 15 de junho de 2015 a 21 de junho de 2015 – ANO 2015 – Nº 628

Pioneirismo e Modernidade em Surdina


Da esq. para a dir., Chiquinho, Garoto e Fafá Lemos, formação original do Surdina: explorando o  potencial da música instrumental A Bossa Nova foi um movimento de ruptura na música popular brasileira. Mas a genialidade de João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes é também devedora de uma noção de modernidade que vinha se configurando anos antes. Um exemplo é a música do Trio Surdina, formado por famosos instrumentistas que atuavam na Rádio Nacional do Rio de Janeiro:  o violonista Aníbal Augusto Sardinha (Garoto), Romeu Seibel (Chiquinho do Acordeon) e o violinista Rafael Lemos Junior (Fafá Lemos). No início da década de 1950 suas versões de boleros, baiões e “sambas de fossa” já traziam uma sonoridade diferenciada, destacada na tese de doutorado de Rodrigo Aparecido Vicente, aluno do programa de pós-graduação em Música do Instituto de Artes (IA) da Unicamp.

O trio foi formado no programa Música em Surdina, que estreou em 1951, apresentado pelo radialista, cantor e compositor Paulo Tapajós. A proposta era completamente diversa dos habituais e estridentes programas de auditório da Rádio Nacional. Repertório intimista, suave, que tentava agradar ao público dos nightclubs da zona sul carioca, gente de classe média que buscava nessas pequenas boates a música da noite, feita, em boa parte, por artistas que migraram dos cassinos que haviam sido fechados em 1946. Embora fosse o mesmo repertório “popular” das canções do período, o trio soube explorar o potencial da música instrumental para criar e recriar inúmeras obras.

“É curioso porque eles tocavam de tudo. Desde boleros, baião, samba-canção, foxtrote e obras autorais, sobretudo, choro e samba. O repertório do trio é marcado por músicas muito conhecidas. Há gravações de Noel Rosa, Ary Barroso, artistas consagrados à época. A diferença será o modo como reinterpretam as canções. Eles aproveitam o potencial da música instrumental, não cantada, para constituir o estilo identificado com a música mais moderna”. Assim, de acordo com Rodrigo, o Trio Surdina concebe, de certa forma, outro tipo de música, cuja estética a Bossa Nova adotaria posteriormente.

Partitura a partitura, o pesquisador comparou gravações originais com outras versões e a interpretação do trio. “Percebe-se como eles modificam o original, lançando mão de recursos pouco explorados na música de ampla circulação e ainda assim sem descaracterizar a composição”. O samba-canção “Risque”, de Ary Barroso, por exemplo, é considerado de harmonia simples, baseada em apenas três notas (triádica). O trio reelabora a harmonia inserindo novos acordes e uma série de extensões, enriquecendo o acompanhamento da melodia. Mesmo a melodia é transformada. “Como é música instrumental, eles se sentem livres para interpretar a melodia, explorando o potencial crítico da linguagem da música instrumental no sentido de transformar, elaborar formas, padrões, procedimentos novos. Eles vão dar um passo além em relação à base que lhes serviu de referência. Isso no contexto da música de ampla circulação, no campo do entretenimento”. Outra característica fundamental do trio é a interação entre os músicos. Eram grandes instrumentistas e improvisadores que conseguiam aliar espontaneidade e organização, procedimentos da tradição da música popular e da música erudita, sinaliza Rodrigo.

As relações com a Bossa Nova se aprofundam, quando um paralelo é feito entre o choro “O relógio da vovó”, de 1953, e o clássico “Desafinado”, de Tom Jobim e Newton Mendonça, de 1958. Há intelectuais e músicos que veem na composição do trio a origem de “Desafinado”. “Coincidência ou não, a melodia inicial desse clássico da Bossa Nova possui praticamente a mesma relação intervalar do motivo presente na segunda parte de “O relógio da vovó”, ou seja, ambas incorporam a dissonância como elemento constituinte da música, apresentando-a não apenas como mero ‘desvio’ ou ‘recurso de tensão’”, explica o pesquisador. Não se trata de um caso de plágio, evidencia Rodrigo. “A semelhança entre as composições indica uma busca comum pela renovação dos modos e técnicas de compor no âmbito da música popular brasileira”, complementa.


DESPOJAMENTO

O pesquisador teve bastante dificuldade para encontrar os discos do trio. Decidiu limitar a tese à análise dos quatro primeiros LPs que pertencem à primeira formação, com Garoto, Chiquinho e Fafá Lemos. As faixas dos vinis foram disponibilizadas em um blogue de um pesquisador e também biógrafo do violonista Garoto, chamado Jorge Mello. Para ouvir o trio em uma execução ao vivo na Rádio Nacional, Rodrigo foi até o Museu da Imagem e Som do Rio de Janeiro. Encontrou uma gravação de “Noite de Estrelas”, programa de Paulo Gracindo, apresentado em 1952. “Eles tocam um baião que também foi gravado em disco, e o que eles tocam ao vivo é completamente diferente. Você nota que eles estavam improvisando em diversos aspectos, embora pareça uma performance previamente organizada e ensaiada”.

Quando o Trio Surdina surgiu, o rádio alcançava grande audiência. As cantoras Emilinha Borba, Marlene, Nora Ney e Elizete Cardoso despontavam como estrelas. Versões de música estrangeira tocavam sem parar. Ainda assim, afirma o pesquisador, a música da época ficou esquecida, talvez por puro preconceito, calcula Rodrigo. “Há diversos estudos sobre os programas de auditório, as radionovelas. Mas em relação à música propriamente dita há uma lacuna que agora começa a ser preenchida por pesquisas”. É que muitos intelectuais e artistas enxergariam apenas, na Bossa Nova, o início da modernidade na música brasileira, preterindo, ou mesmo desqualificando, boa parte da produção situada na passagem dos anos 1940 para 1950.   

Mas não, o trio não estava exatamente à frente de seu tempo. Apenas se insere em um contexto no qual os ventos da modernidade já começavam a soprar. A tese de doutorado também revela que não apenas a roupagem das músicas tinha essa levada mais moderna, como vários outros fatores estabelecem uma ponte com a geração seguinte. 

Discos de diferentes momentos do Trio Surdina: além da  sonoridade, design gráfico também era inovador

O trio lança seus LPs pela gravadora Musidisc, uma das primeiras na época a trabalhar exclusivamente com a recém-lançada e revolucionária tecnologia hi-fi, da qual faziam parte os discos de vinil. A formação se dá num programa que já buscava, de forma quase pioneira, um segmento do mercado, o da chamada “música de boate”, num momento em que começa a se desenvolver a sociedade de consumo. Nesse conjunto de mudanças, o design gráfico e as ilustrações das capas dos LPs também faziam toda diferença. Algumas capas de LPs do Trio Surdina lembram, de acordo com Rodrigo, capas do selo Elenco, que concentrou a maior parte da produção da Bossa Nova no início da década de 1960, e que privilegiavam uma concepção de modernidade alcançada via despojamento, ou seja, com poucas cores e traços econômicos.

“Nesse sentido, pode-se dizer que há um esforço, já nos anos 1950, de tentar compatibilizar os elementos visuais e textuais dos LPs com o conteúdo musical, explorando o novo formato de discos em todas as suas potencialidades. Dizendo de outro modo, o LP não era apenas um produto, mas também um objeto prenhe de sentidos, que trazia consigo um projeto estético-ideológico específico”, reflete.

Rodrigo lembra ainda que o Brasil vivia um “impulso modernizador”, com o desenvolvimento da indústria e da economia. A gravadora Sinter, subsidiária da norte-americana Capitol, comercializava discos de jazz, que começavam a chegar ao país e influenciavam a geração de músicos. Garoto, Chiquinho e Fafá Lemos faziam parte de um círculo de artistas que giravam em torno do maestro Radamés Gnattali, consagrado como um dos renovadores da linguagem orquestral da música popular brasileira. O violonista Garoto, principalmente, é uma referência para gerações de músicos, inclusive para Rodrigo, que é também violonista. 

O pesquisador ainda se lembra de quando ouviu falar, pela primeira vez, do Trio Surdina. Foi em uma aula do professor de piano, harmonia e história da MPB do curso de música da Unicamp, Hilton Jorge Valente, o Gogô. “Numa das aulas ele falou do primeiro LP do trio, em especial de uma canção do Garoto que se chama ‘Duas contas’. Essa composição concentra elementos e procedimentos que soavam muito modernos para os músicos da época, como a sua harmonia. Muitos ficavam tentando ‘tirar de ouvido’ suas progressões de acordes e, no caso de Gogô, reproduzi-la ao piano”. 

O músico Rodrigo Aparecido Vicente, autor da pesquisa: “A semelhança entre as composições indica uma  busca comum pela renovação dos modos e técnicas de compor”Anos depois, o estudo de Rodrigo atesta que, de fato, a tal modernidade já estava lá no início da década de 1950.  “O estudo dos fonogramas do Trio Surdina revelou que, nas condições materiais e sociais de produção existentes no Brasil dos anos 1950, certas obras foram capazes de concentrar um potencial lúdico e criativo, indicando a possibilidade de elaboração de novas experiências estéticas no interior da indústria fonográfica”. 

Para o autor da tese, as composições e reinterpretações do trio transcendem em muitos aspectos os limites preconizados pelos padrões e convenções de certos estilos. “Músicos como Garoto, Chiquinho do Acordeon e Fafá Lemos foram alguns dos protagonistas desse processo amplo de transformação das linguagens e estilos ocorrido na história da música popular brasileira”.

 

Publicação

Tese: “Música em surdina: sonoridade e escutas nos anos 1950”

Autor: Rodrigo Aparecido Vicente

Orientador: José Roberto Zan

Unidade: Instituto de Artes (IA)