Edição nº 592

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 31 de março de 2014 a 06 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 592

A vocação para a amnésia


O Brasil vive uma “cultura de amnésia” em relação aos crimes da ditadura civil-militar que governou o país de 1964 a 1985, o que põe os brasileiros numa situação excepcional em relação aos demais países da América Latina que passaram por regimes autoritários no mesmo período, disse ao Jornal da Unicamp o pesquisador Márcio Seligmann-Silva, docente do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade. “O Brasil, na paisagem da memória pós-ditadura na América Latina, é um país sui-generis”. 

“Se você entra em qualquer país do Cone Sul, mesmo no Peru, até em países da América Central que tiveram ditadura, vê-se uma preocupação social muito grande com esse período. Existe uma grande literatura de cunho ficcional, de cunho testemunhal, e há também muitos trabalhos de sociologia, reflexões filosóficas, ensaísticas. Qualquer livraria de Buenos Aires tem uma seção grande sobre ditadura, por exemplo. Uma coisa impensável aqui no Brasil”, declarou Seligmann, cuja pesquisa lida com a questão da memória social de períodos políticos marcados por falta de liberdade e violência, explorando a literatura de cunho testemunhal, a produção artística e a construção de memoriais voltados para essas épocas.

No Brasil existe uma produção significativa de testemunhos, romances e filmes sobre o período ditatorial, explicou o pesquisador, mas esses trabalhos não ganham repercussão na sociedade. “Os filmes são feitos, os romances e testemunhos são publicados, normalmente por pequenas editoras, e não emplacam, porque o que predomina na mídia é esse discurso de vamos virar a página”, disse ele. “Mas é uma página que nem foi escrita, na verdade. Uma página, basicamente, em branco”.

Essa excepcionalidade brasileira, acredita Seligmann, explica-se, em parte, pela forma como foi feita a transição para democracia no país. “A gente sabe que aconteceu uma transição que foi controlada pelos militares e pelos políticos ligados à ditadura”, disse ele. “Tanto que o nosso primeiro presidente civil era o [atual senador José] Sarney, que havia sido presidente do partido que dava sustentação à ditadura, o Sarney que até hoje tem uma importância fundamental no nosso jogo político, com o apoio do PT. E o [atual deputado federal Paulo] Maluf também, é figura intocável: houve até aquela cena do Lula indo pedir a bênção dele para a candidatura do [atual prefeito de São Paulo Fernando] Haddad, uma coisa que correu mundo”. 

Violência social
Além da particularidade histórica da transição e da conveniência política do momento atual – “nem mesmo com a Dilma, que foi vítima, torturada, presa, o governo enfrenta essa questão de direitos humanos, porque depende desses políticos” – Seligmann aponta uma tendência da sociedade brasileira de ignorar a violência em sua história.

“A gente não tem, na sociedade, uma vontade de elaborar esse passado”, aponta ele. “A sociedade não está nem aí. Como não está nem aí com o que aconteceu com os escravos durante os séculos de governo colonial e no Império, não quer saber o que aconteceu com os nossos operários, com os nossos imigrantes nordestinos. A gente tem uma tradição de não elaborar a violência social em nosso país”.

 Seligmann lembra, ainda, que “a tortura ainda é uma coisa que se repete no Brasil todos os dias”. “Porque existe uma impunidade, respaldada pelos nossos políticos e pela nossa sociedade de um modo geral. E essa cultura, agora, do linchamento”, lembra. O pesquisador aponta que existe uma violência social muito grande no Brasil, que também é cultural e simbólica. “Ela se reproduz nos nossos jornais, tanto em papel quanto na televisão, onde não existe um espaço realmente para se recordar a nossa história de violência”.

Ele diz que uma das consequências dessa opção pelo esquecimento é a “privatização da luta pela justiça, pela memória e pela verdade no Brasil”. De acordo com Seligmann, a luta é privatizada porque, em vez de se constituir numa política de Estado, fica a cargo dos parentes das vítimas.

“São os familiares que conseguiram pôr nome nas ruas, são os familiares que conseguiram aprovar algumas leis que têm a ver com essa questão da memória”, explica ele. Trata-se, ainda, de uma luta que desperta reações negativas: “Quando esses parentes começam a falar muito, começam a aparecer, vem o discurso: ‘Você é ressentido, você está preso ao passado...’ Não se dá o passo de se incorporar essa luta como parte do movimento de direitos humanos, que deveria fazer parte de nossa sociedade como um todo. Isso fica relegado aos sobreviventes e familiares”.

“O capítulo da ditadura civil-militar é mais um capítulo de uma história de violência que não é recordada”, disse ele. “A Comissão da Verdade que foi criada agora, e que está fazendo um trabalho muito importante, surgiu por conta de uma pressão internacional. O Brasil quer fazer parte do Conselho de Segurança da ONU, quer ter uma voz política internacional. Então não pode ser o único país que teve uma ditadura terrível e não criou uma Comissão da Verdade, que não levou a cabo julgamentos, o que realmente não está sendo feito e não sei se algum dia será feito. Existe na verdade uma tendência ao esquecimento.” 

Literatura
Seligmann lembra que existiram, ainda durante a ditadura, escritores e artistas que faziam uma arte “extremamente engajada”.

 “O Antonio Callado, grande jornalista e grande romancista, mantém em seus últimos romances um diálogo com a ditadura, e são também uma denúncia do que estava acontecendo. Paulo Francis, jornalista e escritor, também escreveu, nos anos 70, nessa linha de romance que é testemunho e denúncia. E tem livros mais sofisticados, como o do Renato Tapajós, cineasta que escreveu um livro publicado em 1977 que se chama Em Câmera Lenta, um dos romances mais interessantes sobre a ditadura escritos durante a ditadura. Ele escreveu na prisão”.

“Agora, é um romance não tem repercussão nenhuma, só especialista o conhece”, aponta o pesquisador. “É um excelente romance. Conta essa história dos guerrilheiros encurralados na cidade que não podiam mais sair de casa porque seriam assassinados, depois da ação de raptar o embaixador americano”.

Da produção mais recente, ele destaca Soledad no Recife, lançado em 2009, de Uraniano Mota, jornalista.

“É interessante que temos muitos jornalistas que vão escrever romances, há  essa necessidade de passar do registro do jornalismo para o registro do romance, na tentativa de simbolizar esse passado”, pondera Seligmann. “É um romance que conta a história de Soledad Barrett, que foi uma guerrilheira paraguaia que acabou se exilando no Brasil, atuou na luta contra a ditadura e acabou presa e assassinada. E ele conta essa história a partir do romance”.

O pesquisador nota que o livro de Mota “é um romance que se desmonta como romance”. “No meio, ele se transforma numa espécie de relato jornalístico. Começa a citar notícias da época, citar documentos oficiais para comprovar esse fato bárbaro que foi o massacre que aconteceu em Recife em 1973, quando Soledad foi assassinada. O romance vira realmente reportagem. E eu acho que esse sucumbir do gênero romance mostra a incapacidade da nossa sociedade, é algo simbólico, alegórico da nossa incapacidade de elaborar, também pelos romances, pela literatura, esse passado. A gente acaba tendo que se apegar ao documento. Tem que provar, como se tivesse que comprovar mais uma vez. Parece que a nossa sociedade não está convencida de que aquilo tudo aconteceu”.

“Essa é uma característica da literatura que tenta elaborar questões muito violentas”, afirma ele. “Quando há quase um tabu dessa memória, como no Brasil, é como se o autor se visse solicitado todo o tempo a provar que é verdade. E o discurso da verdade, a chave da verdade, na nossa sociedade ainda passa mais pelo jornalismo que pela literatura. A gente tende a acreditar mais no jornal do que no romance”.

O pesquisador também elogia o romance “K”, do também jornalista Bernardo Kucinski, que perdeu uma irmã, Ana, durante a repressão. “O livro ‘K’ também é muito interessante, do ponto de vista da elaboração do passado da ditadura brasileira. Talvez seja um dos livros mais sofisticados que a gente tem. Ele se coloca no lugar do pai, em busca da filha desaparecida. O pai era um professor de iídiche, um poeta, imigrante judeu da Polônia, que nem sabia que a filha dele estava envolvida politicamente”. A obra também trata da memória do pai, que havia lutado contra uma ditadura na Polônia, na década de 30. “Talvez seja um livro sofisticado demais, também, para o público brasileiro”. 

Cinema e memoriais
No Brasil, diz o pesquisador, já foram realizados cerca de 30 filmes sobre a ditadura. “Mas, novamente: são filmes que são vistos por poucos, não são filmes que se transformam em filmes importantes nacionalmente. O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, do Cao Hamburguer, por exemplo, é um filme muito bonito, muito bem feito, mas que não entra no caldo de cultura da memória que falta ainda ser criado no Brasil”.

Seilgmann cita ainda a questão dos nomes de ruas e os monumentos erigidos em memória dos anos da ditadura. “Temos pouquíssimos memoriais. É interessante que os memoriais no Brasil, voltados para as classes subalternas, estão esquecidos, depredados ou em periferias de pouca visibilidade. Bernardo Kucinski até faz uma ironia quanto a isso, já que a irmã dele tem uma rua que a homenageia, mas é num fim do mundo, ninguém vai lá”.

“O maior monumento que há no Brasil em homenagem a algum personagem do período da ditadura é ao Castelo Branco, lá em Fortaleza, um monumento enorme, de uma quadra”, diz o pesquisador. “Então, os estrangeiros vêm ao Brasil e se espantam: ‘Nossa, vocês homenageiam seus ditadores. Que coisa mais doida!’ ”

Comentários

Comentário: 

“Então, os estrangeiros vêm ao Brasil e se espantam: ‘Nossa, vocês homenageiam seus ditadores. Que coisa mais doida!’ ”
oras, até parece que em nenhum lugar do mundo onde há, ou houve, uma ditadura não existem monumentos aos ditadores! existem em todos lugares, e essa é a prova do poder ditatorial, coercivo. o que os estrangeiros vão pensar??? menos provincianismo, por favor, mesmo porque muito da nossa ditadura foi engendrada por estrangeiros.

haro179@gmail.com

Comentário: 

Interessantes as declarações e a análise do palestrante, sobre a "cultura da amnésia" disseminada no País. No sentido inverso, a Ordem dos Advogados do Brasil, Secção do Amazonas, criou sua Comissão Especial da Memória Histórica. De agosto a dezembro deste ano, a CEMH/OAB-AM rememorará o golpe militar de 1 de abril de 1964. Seminários, lançamento de livros, projeção de filmes/documentários e sessões de depoimento serão realizados. A Comissão está aberta a sugestões e à colaboração de quantos desejarem participar. Em 2015, a Comissão pretende realizar trabalho sobre os vínculos da OAB-AM, ao longo de sua existência, com os movimentos sociais e a política do Estado.

jserafico@uol.com.br