Edição nº 586

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de dezembro de 2013 a 15 de dezembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 586

Em favor dos múltiplos usos da água

Estudo propõe modelo para garantir que Furnas mantenha nível adequado à geração de energia e exploração do turismo

Caso as projeções traçadas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) para os próximos 100 anos se confirmem e os níveis de produção de energia da Usina Hidrelétrica de Furnas, em Minas Gerais, não sofram alterações, o reservatório da unidade poderá sofrer um intenso esvaziamento, principalmente no período entre 2041 e 2070. O alerta consta da tese de doutorado do engenheiro hídrico Leopoldo Uberto Ribeiro Júnior, defendida recentemente na Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp. No trabalho, orientado pelo professor Antonio Carlos Zuffo, o pesquisador propõe um instrumento de gestão para mitigar os possíveis efeitos das mudanças climáticas sobre o reservatório, garantindo desse modo os múltiplos usos da água, com destaque para a geração de energia e a exploração do turismo.

Embora o estudo tenha sido baseado nas condições da Hidrelétrica de Furnas, afirma o autor da tese, o modelo de gestão proposto por ele pode ser adaptado a outros reservatórios do gênero. “O fundamental é conhecer os problemas e as características de cada empreendimento, para poder propor uma gestão específica à realidade de cada um”, pontua Ribeiro Júnior. Antes de entrar nos detalhes da pesquisa, o engenheiro hídrico conta que seu interesse pelo tema surgiu ainda no mestrado. “Por causa da minha formação, sempre tive atento à questão dos múltiplos usos da água. Essa preocupação aumentou com as projeções feitas pelo IPCC. Assim, resolvi investigar como as mudanças climáticas poderiam interferir nesse aspecto, elegendo Furnas como meu estudo de caso”, explica.

A hidrelétrica, conforme Ribeiro Júnior, começou a ser construída em 1958, época em que as autoridades e a sociedade em geral ainda não tinham preocupação com a preservação do ambiente. Assim, quando o lago foi formado, terras agriculturáveis foram inundadas, sem que tivesse sido feito um estudo prévio de impacto ambiental mais aprofundado. Isso também causou um impacto social significativo, pois as pessoas que viviam direta e indiretamente da agricultura tiveram que buscar uma atividade econômica alternativa. “A opção que se mostrou mais viável foi o turismo, que segue tendo grande importância para os municípios localizados no entorno do lago. Ou seja, na hipótese de ocorrer um esvaziamento do reservatório, tanto a geração de eletricidade quanto a exploração do turismo seriam drasticamente afetadas”, adverte o pesquisador.

Uma pequena mostra do que pode vir a ocorrer com o lago de Furnas por causa das mudanças climáticas, segundo Ribeiro Júnior, foi dada por ocasião do período do apagão, entre 1998 e 2000, quando os níveis do reservatório ficaram muito baixos por causa da estiagem prolongada. “Naquela ocasião, além da geração de energia ter sido prejudicada, os turistas também passaram a procurar outros locais para o seu lazer, visto que o acesso ao lago ficou prejudicado”. Para tentar evitar que esse problema volte a ocorrer, o engenheiro hídrico estabeleceu uma regra de operação para assegurar que as águas sejam mantidas em níveis que possibilitem os seus múltiplos usos.

Para chegar a essa proposta, o autor da tese baseou-se inicialmente nos prognósticos do IPCC, que estabeleceu diferentes cenários para o clima até o ano de 2100. Os dados foram posteriormente transformados em modelo hidrológico, que por sua vez converte chuva em vazão. A conversão foi feita por uma ferramenta matemática desenvolvida pelo Instituto de Pesquisas Hidrológicas (IPH) do Rio Grande do Sul, batizado de MGB – Modelo de Grandes Bacias. “Ao cruzar esses dados, foi possível obter a vazão do reservatório de Furnas até 2100. A partir dessas informações, eu simulei vários cenários de operação da usina, para verificar como o reservatório poderia se comportar. O que pude concluir é que se a tendência projetada pelo IPCC for mantida e os níveis de produção de energia não forem alterados, o lago poderá sofrer um esvaziamento intenso – em torno de 20% abaixo da cota de 762 m –, principalmente no período entre 2041 e 2070”, revela.

Diante dessa perspectiva, Ribeiro Júnior promoveu uma adaptação da ferramenta matemática e realizou novas simulações, desta vez para chegar a uma alternativa de operação que pudesse evitar a concretização de tal predição. “Cheguei a um modelo que estipula que o reservatório, que tem 768 metros de nível máximo de armazenamento, não pode baixar, no período de cinco anos, da cota de 762 metros, durante 15 oportunidades, divididas em dois ciclos. Ou seja, nesses cinco anos, ele pode atingir, por hipótese, 762 metros ao longo de sete meses e depois por mais oito meses. Com isso, tanto a geração de energia quanto a exploração do turismo não seriam prejudicadas”, defende.

Mas, como fazer para garantir que esses patamares indicados pelo modelo matemático sejam respeitados? De acordo com o pesquisador, a meta pode ser alcançada por meio do armazenamento de um percentual da vazão para ser usado no mês subsequente, sempre que as condições de frequência e duração não forem atingidas. “Isso fará com que o uso integrado da água seja mais eficiente”, diz. Uma condição para que essa regra de operação seja implantada, pontua Ribeiro Júnior, é a de conferir melhor estrutura aos comitês de bacias hidrográficas e incrementar a qualificação dos técnicos que trabalham na área.

São procedimentos, de acordo com ele, indispensáveis para que sejam criadas condições para se lidar adequadamente com a possível ampliação dos conflitos pelo uso da água. “Esse problema já ocorre, em alguma medida, na Bacia do Piracicaba. Precisamos de recursos humanos capacitados que possam ajudar a decidir sobre a melhor forma de utilização desse recurso natural, que está se tornando cada vez mais escasso”, entende. Outra ação fundamental, acrescenta o autor da tese, é aperfeiçoar a infraestrutura de dados de monitoramento da água. O engenheiro hídrico observa que quando há a afirmação de que está chovendo mais ou menos num determinado período, é preciso relacionar esse dado com algum parâmetro do passado. 

Infelizmente, diz ele, o histórico brasileiro é pobre nesse sentido. A série de dados é pequena. “Além disso, nossa rede hidrométrica apresenta muitas falhas, o que torna alguns dados inconsistentes. Qualquer estudo que envolva planejamento e gestão necessita de informações efetivas. No Brasil, temos dados somente a partir de 1930. Os mais confiáveis datam de 1950 para cá. Ou seja, temos apenas 50 anos de informações para nos basearmos. No caso dos Estados Unidos e da China, por exemplo, existem séries com mais de 200 anos. Em outras palavras, fica difícil dizer com absoluta segurança que está chovendo mais agora, se não sabemos como era o comportamento da chuva, por exemplo, no final do século 19”, pondera.

Ademais, complementa Ribeiro Júnior, outra medida importante para assegurar a manutenção do nível adequado do lago de Furnas é projetar o uso de fontes alternativas de energia elétrica, como a eólica e a solar, para complementar a hidráulica. “Essas duas opções oferecem excelente complementariedade, pois as condições de sol e vento são mais favoráveis justamente no período de estiagem. Ou seja, elas apresentam melhor desempenho quando a disponibilidade da água é menor. Sem contar que ambas igualmente são renováveis”, analisa.

 

A usina

A Hidrelétrica de Furnas foi a primeira usina construída pela empresa de mesmo nome. Está vinculada ao Ministério de Minas e Energia, sendo administrada pela Eletrobras, que por sua vez é controlado pelo governo federal. A construção do empreendimento começou em julho de 1958. A primeira unidade entrou em operação em setembro de 1963 e a sexta, última prevista no projeto original, em julho de 1965. No início da década de 70, foi iniciada a ampliação para instalação da sétima e oitava unidades, totalizando 1.216 MW de capacidade, o que colocou a obra entre as maiores da América Latina.

O reservatório tem 1.440 km2 de área inundada, tamanho quatro vezes maior que o da Baía de Guanabara. Trata-se do maior lago artificial da América Latina, conhecido como o “Mar de Minas”. Possui perímetro de 3.500 km e banha 34 municípios, que somam uma população de aproximadamente 850.000 habitantes. O projeto de aproveitamento prevê uma variação de cota entre 768 m e 750 m (nível máximo e mínimo de operação). Dados relativos ao período de 1963 a 2011 apontam que o reservatório permaneceu 75% do tempo com uma cota igual ou superior a 762 m. Contudo, entre os anos de 1998 e 2000, época de maior crise do setor elétrico, esse nível foi mantido em apenas 30% do tempo, fato que acarretou diversos problemas para a operação do empreendimento.

 

 

Publicação

Tese: “Aprimoramento de um instrumento de gestão para operação de reservatórios hidrelétricos com usos múltiplos sob condições de mudanças climáticas: estudo de caso UHE de Furnas”
Autor: Leopoldo Uberto Ribeiro Júnior
Orientador: Antonio Carlos Zuffo
Unidade: Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC)