Edição nº 553

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 11 de março de 2013 a 17 de março de 2013 – ANO 2013 – Nº 553

Quando as palavras viram remédio
para os pequenos pacientes do HC

Secretária do Departamento de Informática do hospital
sonha ser biblioterapeuta

Elaine guardou por um tempo a veste da Nani Encantadora, mas faz planos de usá-la daqui a dois anos, quando concluir o curso de filosofia na Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Enquanto o diploma não chega, Elaine Moraes fica com a imagem da personagem e seus pequenos espectadores da enfermaria de Pediatria do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, que, por muitas vezes, ajudaram a contar o final da história. A história de seis anos diante de semblantes transformados a cada palavra de um texto conduziu a secretária do Departamento de Informática do HC a uma nova forma de ajudar as pessoas: a biblioterapia. Agora, aquela Nani da ONG Griots, grupo com compromisso de levar leitura a pacientes do HC, debruça sobre as palavras de velhos conhecidos de seus repertórios, os filósofos, para transformar palavras em remédio.

Há indícios de que já no Antigo Egito, o Rei Rammsés mandou inscrever na fachada de sua biblioteca a frase: "Remédios para alma". De acordo com dados adquiridos nas inúmeras leituras de Elaine, o mesmo é encontrado na Idade Média. Na entrada da Biblioteca da Abadia de São Gall, por exemplo, estava escrito: "Tesouro dos remédios da alma". “Eles faziam assim na Antiguidade. Tentavam amenizar os problemas das pessoas com as palavras, enquanto os médicos tratavam as doenças.”

O aprofundamento em psicanálise dos contos de fadas também foi importante em sua decisão de se tornar uma biblioterapeuta, como os filósofos de outros tempos. “Os médicos cuidam do corpo e os filósofos, da alma.” Ela relata que antes da psiquiatria, a biblioterapia ficava a cargo desses pensadores, pois quando as pessoas tinham alguma doença os procuravam para se orientar sobre a melhor decisão. “E o que os filósofos receitavam? Palavras.”

E certa de que a leitura e também a filosofia podem servir de remédio para seu público, Elaine decidiu voltar à sala de aula, alguns anos depois de precisar abandonar o curso de informática por problema de saúde, para aprofundar conhecimentos que, na verdade, aprimora desde a adolescência. “Sempre gostei de estudar psicanálise e filosofia. Aliás, sempre li muito”, confessa a dona de um acervo de quase 500 livros. Muitos dos quais já levaram afago a adultos e crianças em sua jornada de narradora de histórias.

Elaine provou do próprio remédio quando se viu impossibilitada de exercer funções na área de informática, a qual havia escolhido desde que participou de uma seleção e formação oferecida a vários funcionários pela Unicamp, por meio de seu Centro de Computação. Por adquirir lesão por esforços repetitivos, Elaine se viu sem rumo. “Não podia fazer o que mais gostava. E o afastamento por três anos me fez recorrer à leitura. As palavras me fizeram reagir e entender o que estava acontecendo. Lia principalmente autores da Psicanálise”, revela. Ao ouvir um anúncio sobre contação de histórias, ela imediatamente se apaixonou pela ideia e decidiu que levando enredos às pessoas faria não somente o delas, mas o seu próprio remédio.

As mesmas respostas se revelaram nos encontros com as crianças. “Eu percebia a necessidade de algumas me interromperem para contar sua própria vida. Isso me mostrou que a história facilita os diálogos, porque a criança capta o que a mensagem tenta produzir nela em termos de cura. Cura, para mim, é quando a pessoa está encontrando um sentido. Nem sempre a doença é somente física”, opina. Mas tudo depende da maneira como se lê para si ou para os outros. O narrador tem papel fundamental na mudança que a leitura pode provocar no semblante ou na vida de um ouvinte, ainda que narrador e ouvinte/leitor sejam a mesma pessoa. Daí a importância da leitura orientada oferecida pela biblioterapia.

A secretária conta que ela mesma passou pela experiência de se emocionar com uma história depois de ouvi-la repetidamente, desde a infância. O enredo mostrou-se mais íntimo quando transmitido por uma contadora, num evento do qual participava. “Isso mostra que a narração faz sim a diferença”, acrescenta. Ela também argumenta que, muitas vezes, o leitor é resistente a situações parecidas com a sua, mas a emoção do contador pode desnudar este sentimento. “É naquela leitura que tem algo que você não está querendo encarar de frente.”

Mesmo afastada dos Griots, Elaine não rejeita convites. Espalha palavras em eventos em cidades de todos os Estados, vai do sudeste ao sul e volta para o norte e até para Praça do Coco, ponto bem conhecido do distrito de Barão Geraldo. Ela sim pode dizer que “não mede palavras”. Mas, alto lá: prefere aquelas que afagam a alma. “Estamos num mundo em que tudo é para já, para ontem. Então, as pessoas consomem o que está à frente. Aceita a informação que chega. E às vezes informação traz desconforto em vez de conforto. A pessoa tem de se dedicar a uma leitura aprazível.” Apesar de já distribuir suas pílulas para a alma nos eventos para os quais é chamada a contar histórias ou proferir palestras, Elaine quer estar habilitada para orientar sobre a melhor leitura de acordo com a necessidade das pessoas. Ao abrir as pílulas ofertadas por Elaine, o espectador é brindado com passagens de filósofos. “Devemos acentuar que o tratamento convencional é importante, mas a leitura pode servir de apoio. A pessoa tem a possibilidade de trocar o medicamento por um tratamento mais duradouro.” Mas enfatiza que não é somente para pessoa doente, mas para todas as pessoas.


Segredos

“A história é uma forma lúdica de passar mistérios. As histórias guardam os segredos da vida.” Elaine acrescenta que, por meio da leitura, é possível nomear o que é sensível para o inteligível. Em sua opinião, muitas vezes, a criança consegue nomear o que sente a partir da leitura, como aconteceu certa vez quando lia um conto de fadas para uma criança que chorava muito. Mais tarde, Elaine descobriu que a história tinha muito a ver com a vida da criança. “Eu sou lacaniana. Para ele, a inconsciência é estruturada como uma linguagem. Então a história tem a estrutura que possibilita esse contato”, argumenta.

Quanto mais atua, mais se convence da escolha. “É o encantamento do livro. Lindo, o poder de dar vida. Tirar a história do papel e dar vida para ela. Vejo nos olhos de quem está ouvindo que eles não estão me vendo, estão vendo outra coisa, personagem, imaginando. É o que o contador quer. Ser porta-voz desse diálogo. E o biblioterapeuta, além de fazer isso, irá comandar um diálogo em grupo. Vejo grande necessidade disso. Resgatar o prazer da leitura. E uma pessoa sozinha para isso é pouco. Se eu tiver boa formação, poderei multiplicar essas pessoas, para poder passar isso à frente.”


Inspiração

Elaine sempre apreciou uma boa leitura. Ao longo do tempo, construiu seu acervo. A vontade de escrever para os outros, porém, surgiu como uma necessidade. As vezes que a Nani não tinha a história apropriada para o formato ou o público de determinado evento, Elaine começava a criar e, quando se deu conta, Nani a havia inspirado a beber da fonte da escrita. Em 2012, depois de encontrar seu nome em segundo lugar na lista de aprovados do Vestibular da PUC, a secretária foi notificada de que a narração criada por ela faria parte do Caderno de Redações do Vestibular 2012 da PUC Campinas, lançado em dezembro do ano passado.

Como na época do vestibular ela escrevia histórias sobre o Natal para presentear seus pequenos ouvintes, imaginou a realidade de um menino e entrelaçou-a com a fantasia do presépio, da manjedoura e dos três Reis Magos. “Já escrevi histórias, mas não publiquei nada até hoje. A inserção do meu texto neste caderno, a crítica que ele obteve e a repercussão neste tempo de Natal estão sendo muito importantes para mim, pois sempre defendi que as histórias e os contos não podem perder a fantasia, devem ser ricos em metáforas e simbologias.”

A contadora, narradora, agente de leitura, palestrante, secretária e futura filósofa e biblioterapeuta é beneficiada pela curiosidade. A mesma que a levou a se dedicar a todo tipo de leitura na infância. Com tantas palavras a ler, e a dizer, aquela dor no braço, que se refletia para a alma, a qual tentava se encontrar, tornou-se um pingo no texto e deu lugar ao largo sorriso da Nani e aos olhos brilhantes de sua criadora. “É uma busca que não acaba. Assim como a filosofia.”

Comentários

Comentário: 

Parabéns Elaine, que alegria ver você se realizando no universo da leitura e das palavras. As dores e angustias daquela época de "não ser mais programadora de sistemas" foram o impulso para algo maior. Muitas vezes vi tristeza em seus olhos por causa do afastamento de suas funções...vi você assumindo, decidida a mudar de função por necessidade mas com certa tristeza, o meu antigo posto de trabalho como secretária do meu querido "NICH"...e hoje só te vejo sorrindo, feliz e realizada. Parabéns com verdadeira alegria e carinho.
Um grande abraço!

Comentário: 

Linda e emocionante matéria. Parabéns, Elaine! Você é um exemplo para todos nós. Um grande e fraterno abraço.

Comentário: 

Parabéns Elaine!
Que trajetória bonita!
Que esse benefício atinja a alma de todos que tiverem a sorte de encontrar você pelo caminho.
Felicidades e sucesso sempre.