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Campinas,
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Sinais de um crime anunciado

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Pesquisa premiada identifica caminhos para a prevenção de casos de feminicídio

Passeata contra a violência e o feminicídio, realizada na região central do Rio, no Dia Internacional da Mulher deste ano
Passeata contra a violência e o feminicídio, realizada na região central do Rio, no Dia Internacional da Mulher deste ano (Foto: Fernando Frazão /Agência Brasil) 

##Formas de violência extrema contra a mulher, individual ou coletiva, são preveníveis e intoleráveis, afirma a pesquisadora Monica Caicedo-Roa, nas considerações finais de sua tese de doutorado, desenvolvida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. Ela dedicou quase cinco anos de sua vida ao estudo profundo de casos de feminicídio com o objetivo de identificar caminhos para a erradicação e prevenção de crimes contra a mulher cujos índices são crescentes e alarmantes no Brasil.

A autora da tese tem a convicção de que sua investigação, intitulada “Fatores de risco para feminicídios na cidade de Campinas: revisão de literatura, estudo caso-controle espacial e análise qualitativa”, amplia a compreensão sobre os casos de feminicídio que acontecem no contexto brasileiro graças à abordagem qualitativa e quantitativa.

Na pesquisa, foram analisados 24 casos de crimes contra a mulher, ocorridos no período de 2018 a 2019 na cidade de Campinas (SP), pelo ponto de vista da epidemiologia e pela perspectiva interdisciplinar. A partir do levantamento de casos de feminicídio publicados na mídia, Caicedo-Roa juntou os dados das autópsias clínicas (obtidas no Instituto Médico Legal-IML) às informações das autópsias verbais, método que consiste na realização de entrevistas com parentes, amigos e conhecidos das mulheres assassinadas.

“É como dar voz às vítimas”, afirma a pesquisadora, que escreveu uma narrativa para cada uma delas, duas das quais eram transgênero (casos de transfeminicídio: feminicídio de mulheres transgênero). As entrevistas realizadas por meio da metodologia de autópsias verbais humanizaram as mulheres e revelaram o caráter pessoal e social das mortes, além de buscar entender como se articulam, nessas relações, as desigualdades de poder das mulheres na sociedade. “Os textos contam a história de vida e morte de cada vítima”, diz Caicedo-Roa.

Estrutural

“Os feminicídios perpassam todas as camadas sociais. Acontecem nos diversos estratos sociais e de diferentes maneiras. É uma coisa arraigada na cultura misógina, machista e patriarcal que temos neste país”, afirma o professor da FCM Ricardo Carlos Cordeiro, orientador da tese. “O trabalho da Monica [Caicedo-Roa] traz elementos para o fortalecimento de políticas públicas de proteção e de salvaguarda da mulher, de que os atores politicamente organizados podem fazer uso. A ciência não resolve por si os problemas da sociedade. Ela traz a informação, mas não é o único agente transformador”, avalia o professor.

Cordeiro criou, em 2007, o grupo de estudos sobre a violência do ponto de vista da epidemiologia, no Departamento de Saúde Coletiva da FCM. Caicedo-Roa conheceu o grupo em 2017 e, no ano seguinte, começou o doutorado na Unicamp.

De forma geral, analisa a pesquisadora em sua tese, os feminicidas são homens, com ocupações variadas, sem evidência de transtornos mentais e com acesso facilitado a armas de fogo. Observou-se também que a morte em ambientes domésticos foi mais frequente e que o uso de álcool e outras drogas no momento do crime e a fuga depois dos assassinatos foram condutas recorrentes.

Engajamento

Em sua pesquisa, ela evidenciou duas variáveis importantes que explicam a maior probabilidade de ocorrer um feminicídio: mulheres que, nos 30 dias anteriores ao crime, sofreram algum tipo de agressão física; e mulheres que vêm de outros Estados do país, devido à distância da estrutura de apoio (familiares e amigos). “É interessante pensar no componente social desse fenômeno. As mulheres que têm uma estrutura de relações mais fortalecida sofrem menor risco de serem vítimas de feminicídio. É importante que nós, como sociedade, protejamos as mulheres e que, como mulheres, desenvolvamos maiores redes de apoio e empoderamento”, diz a pesquisadora.

“Há muito trabalho a ser feito com os agressores, não somente com as vítimas. Se não houver um trabalho com as duas partes, não tem como sairmos desse ciclo violento. Você pode empoderar a mulher, dar alternativas de trabalho, tirá-la da situação, mas, se você não trabalhar com os homens, o agressor vai procurar outra mulher e vai praticar violência contra ela, porque eles já cresceram numa cultura que ensinou esses padrões de comportamento”, diz a pesquisadora.

O professor Ricardo Carlos Cordeiro, orientador da tese: “O trabalho traz elementos para o fortalecimento de políticas públicas de proteção e de salvaguarda da mulher”
O professor Ricardo Carlos Cordeiro, orientador da tese: “O trabalho traz elementos para o fortalecimento de políticas públicas de proteção e de salvaguarda da mulher” (Foto: Antoninho Perri)

Separação

Entre os 24 casos estudados, 25% (seis) ocorreram porque a mulher queria terminar um relacionamento violento. “A separação é um fator de risco. Há uma maior probabilidade de feminicídio nos três meses após a separação, mas isso pode se estender a um ano.” O consumo de substâncias psicotrópicas, principalmente cocaína, e o pertencimento a organizações envolvidas em algum tipo de atividade ilícita também são fatores que deixam a mulher mais vulnerável.

“Tivemos a oportunidade de corroborar, com nossos dados, o quão importante é a mulher vítima de violência física fazer a denúncia. É preciso que essa denúncia seja levada a sério, com suporte institucional e planejamento de rota de escape, para que ferramentas legais, como a medida protetiva, sejam ativadas”, alerta.

Na tese, a pesquisadora integrou aspectos da saúde coletiva, da epidemiologia, das ciências sociais, da psicologia e da criminologia para o estudo dos casos. Teve como coorientadora a professora especializada em estudos de gênero Lourdes Bandeira, da Universidade de Brasília (UnB), que faleceu no decorrer da pesquisa.

TODAS EM RISCO

Graduada em Enfermagem, Caicedo-Roa ressalta a relevância do tema para a sociedade e para as mulheres, assim como para o campo da saúde coletiva e da epidemiologia. “No geral, temos a falsa percepção de que o risco não está perto. As mulheres, no conjunto, estamos perpassadas por violências que são tão incorporadas na cotidianidade que parecem normais.”

Inovadora no formato do texto, ela finaliza sua tese com um anexo em que escreve na pessoa de um narrador do gênero masculino, com o título Malditas mulheres!. “Eu quis contestar esse homem macho. Mostrar a violência, a agressividade. O que a gente quer é que a nossa pesquisa tenha impacto, que os políticos tenham mais sensibilidade em relação aos feminicídios e que haja mais engajamento de homens e mulheres, para evitar que esses casos aconteçam. As mulheres não têm que sofrer essa violência”, afirma.

“Toda vez que nos deparamos com um fenômeno que afeta a saúde das pessoas ocorrendo com frequência, como é o caso dos feminicídios, estamos frente a um evento epidêmico”, afirma Cordeiro. De acordo com Caicedo-Roa, existe uma subnotificação de casos. Para ela, além de estudar os crimes, uma das contribuições da pesquisa foi fazer um desenho metodológico a partir do estudo de casos e controles. Na comparação geográfica, a pesquisadora identificou que a região Sudoeste de Campinas concentrou a maior parte dos feminicídios, o que é um indicativo importante na formulação de políticas públicas.

O trabalho de Caicedo-Roa – que, hoje, faz o seu pós-doutorado no Canadá – conquistou dois prêmios: o lugar no Prêmio Tese Destaque da Unicamp 2022, na área de Ciências Biológicas e da Saúde, e o Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Vladimir Herzog/Unicamp 2023, que está em sua terceira edição. As pesquisas contempladas neste último, a começar pela desenvolvida por Caicedo-Roa, serão publicadas no Jornal da Unicamp.

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