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A dignidade humana para além da renda

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Pesquisa internacional iniciada em 2018 investiga as diversas dimensões da pobreza 

Morador de rua no centro de São Paulo: pesquisadores buscam identificar as privações vivenciadas por famílias a partir das suas percepções individuais
Pessoa em situação de rua no centro de São Paulo: pesquisadores buscam identificar as privações vivenciadas por famílias a partir das suas percepções individuais

As múltiplas dimensões da pobreza são o foco de análise de pesquisadores da Unicamp, da Universidade de Cardiff e da Universidade Federal Fluminense (UFF). A liderança global do projeto é do professor Shailen Nandy, da Universidade de Cardiff, e abrange pesquisas nas Américas, na África, na Europa e na Ásia, refletidas no dossiê.

Envolvidos nessa parceria desde 2018, os pesquisadores buscam identificar as privações vivenciadas por famílias a partir das percepções delas mesmas. As investigações, que incluem a compreensão sobre o que a população define como dignidade humana, apontam também para um consenso sobre quais são as necessidades básicas percebidas socialmente.

Professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) e do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) da Unicamp, Luis Renato Vedovato é um dos responsáveis pelas pesquisas e editor do Dossiê Temático "Dignidade Humana, Pobreza Multidimensional e Justiça Social", publicado recentemente na Revista Direito Público. Ele explica que pensar a multidimensionalidade da pobreza é percebê-la para além da quantidade de recursos que as pessoas ganham por um período de tempo. “O foco é na privação, identificando-a”, diz. 

O trabalho desenvolvido pelo grupo traz uma nova dimensão para alguns conceitos, entre os quais o de dignidade. “São conceitos abertos, que estão na Constituição. Conseguimos preenchê-los pensando na pobreza multidimensional pela abordagem consensual. É extremamente relevante no Direito para pensar decisões judiciais”, afirma Vedovato. 

Na investigação conduzida em São Paulo, os pesquisadores identificaram que nove em cada dez participantes concordam que todas as pessoas devem ter garantidas necessidades básicas de comida, higiene, saúde, vestimenta, moradia, transporte público e renda. “Quando há um dado como esse, o consenso entre os vários grupos sociais, fica mais fácil discutir quais seriam, por exemplo, as prioridades de secretarias municipais, estaduais e nacionais, justamente porque estamos convergindo sobre o que seja um padrão de vida digno para essas pessoas”, observa Ana Elisa Assis, professora da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp.

A docente ressalta que é necessário pensar políticas públicas na perspectiva intersetorial e numa compreensão multidisciplinar para a formulação de políticas transversais. "É preciso atuar em diversas frentes ao mesmo tempo. Assim, começamos a desmistificar algo muito comum, que é falar sobre ponderação de direitos, de um direito que vale mais que o outro.”

Consulta à população

A abordagem consensual, metodologia utilizada pelos pesquisadores, consiste em criar espaços para a efetiva participação da população na discussão sobre suas necessidades. “O que há de mais potente na abordagem consensual é a democratização e a participação social naquilo que diz respeito às garantias e direitos no nosso país”, indica a professora Flávia Uchôa de Oliveira, do Departamento de Administração de Niterói da Universidade Federal Fluminense. 

Por meio da pesquisa, é possível identificar tanto o que é necessário para um padrão de vida digno para a sociedade brasileira — o que inclui desde alimentação e lazer até outros direitos sociais —, como o fato de que as pessoas mais pobres e vulneráveis são privadas do básico. Na cidade de São Paulo, por exemplo, constatou-se que a população considera que comer ao menos três refeições ao dia e ter acesso a itens de higiene individual são necessários para um padrão de vida digno no Brasil.

Esses achados, para Uchôa, reforçam questões sociais bem conhecidas em um país de passado colonial. “Vemos, por exemplo, as hierarquias de raça e gênero entrelaçadas, com famílias comandadas por mulheres pretas, pardas, entre as mais pobres e vulneráveis das amostras estudadas”, aponta.

O professor Luis Renato Vedovato, um dos responsáveis pelas pesquisas privação, identificando-a”: “O foco é na privação, identificando-a”
O professor Luis Renato Vedovato, um dos responsáveis pelas pesquisas: “O foco é na privação, identificando-a”

Projeto em expansão

O estudo foi realizado na região Metropolitana de Campinas e na cidade de São Paulo, expandindo-se para a Bahia, no município de Botuporã, com o apoio da equipe de pesquisa de campo, coordenada por Uchôa e Ederson dos Santos, doutorando na Universidade de Salamanca. Segundo os pesquisadores, esse passo é importante, pois o município espelha uma realidade semelhante à de milhares de outras cidades espalhadas pelo país.

Além do desejo de ampliar a investigação para uma escala nacional, os pesquisadores ministram uma disciplina (Seminário de Direitos Humanos e Desenvolvimento), na qual discutem a pobreza multidimensional, no PPGE-Unicamp. Outro horizonte de pesquisa é o debate sobre transição energética e pobreza multidimensional, projeto em conjunto com o Centro Paulista de Estudos da Transição Energética (CPTEN), aprovado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). 

A parceria entre Cardiff e Unicamp também já deu origem ao livro “Migrações Internacionais e a pandemia de Covid-19”, com contribuição da professora Rosana Baeninger, do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (Nepo/Unicamp), e do Ministério Público do Trabalho, com o apoio de vários procuradores do Trabalho, dentre eles Gustavo Accioly. Para mais informações sobre a pesquisa, é possível entrar em contato pelo e-mail: poverty@unicamp.br.

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