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Tradução do texto filosófico - O ‘Projeto Hume’

Comunicação apresentada em 30/09/97 na XVII Semana do Tradutor,
realizada no IBILCE-UNESP, São José do Rio Preto, de 29/09 a 3/10/97
José Oscar de Almeida Marques
Departamento de Filosofia - IFCH/UNICAMP
 
RESUMO
Avalio brevemente nesta comunicação a problemática situação da tradução filosófica no Brasil e as dificuldades e oportunidades que se apresentam ao tradutor e ao pesquisador acadêmico em relação ao desafio de construir um acervo básico de traduções de alta qualidade de textos filosóficos em língua portuguesa. A discussão mais concreta dos problemas enfrentados pelo tradutor e as iniciativas que estão a seu alcance nessa tarefa é conduzida a partir de minha experiência pessoal com a preparação e publicação das traduções de três livros do filósofo britânico David Hume (1711-1776). Uma ilustrativa diversidade de perspectivas é alcançada pelo fato de que as três experiências são bem distintas entre si, envolvendo a interação com uma editora comercial, com uma editora universitária e com os novos meios de difusão eletrônica postos à disposição pela Internet.

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Ao tratar aqui da questão da tradução do texto filosófico no Brasil, faço-o na perspectiva do pesquisador universitário que seleciona os textos que irá traduzir e para o qual a tradução constitui trabalho de natureza propriamente acadêmica. Acredito porém que os tópicos aqui levantados serão de interesse também para o profissional de tradução que pretenda desenvolver seu trabalho em áreas mais afastadas do núcleo comercial central da atividade editorial.

O ideal do aprendizado de filosofia por meio da leitura de textos na língua original torna-se de execução cada vez mais difícil, pois são poucos os estudantes de graduação capazes de ler fluentemente alguma língua estrangeira. Se, por um lado, tal fato é de lamentar-se, deve-se notar que o uso de traduções é, na realidade, usual no ensino de filosofia (em nível de graduação) na Alemanha, França e países de língua inglesa e espanhola. Mas para que isso possa realizar-se satisfatoriamente, é necessária a existência de um acervo de traduções, o qual, nessas línguas, vem-se formando e aprimorando há gerações. Entre nós, no entanto, há ainda uma carência manifesta tanto na quantidade e variedade de títulos disponíveis como na própria qualidade dessas traduções.

Em minha perspectiva, considero principalmente a função desse acervo para o ensino de filosofia; mas é claro que ele é significativo igualmente para a difusão cultural geral e mesmo para a fixação da terminologia em diversas áreas de estudo associadas à filosofia. Parece-me importante, por isso, refletir sobre esse problema e tentar, ainda que de forma limitada, indicar as dificuldades e oportunidades que se apresentam em relação ao desafio de construir um acervo básico de traduções de alta qualidade de textos filosóficos em nossa língua.

De modo geral, o problema da tradução filosófica é parte do problema mais amplo da tradução no Brasil, mas tem associado a si algumas outras causas mais particulares, entre as quais se pode citar os parcos investimentos das editoras nessa área e o amadorismo ainda muito difundido no setor. Inegavelmente, porém, uma boa parte de responsabilidade cabe ao meio acadêmico, quer pela aceitação acomodada e não-crítica do material existente, quer pela evasão utópica do problema ao se insistir que só os originais merecem ser lidos, quer, por fim, pela omissão em contribuir para a melhoria desse acervo, por meio do próprio trabalho de tradução ou de revisão.

O papel do acadêmico e pesquisador é, mesmo, indispensável nessa tarefa, pois não se pode esperar que o mercado, sozinho, venha a prover as soluções esperadas. De fato a demanda do mercado é curiosamente inelástica em relação à qualidade da tradução, e as editoras podem seguramente contar com a mesma vendagem de um título quer tenham investido muito ou pouco no preparo de sua tradução. São muito raros os casos em a qualidade de uma tradução ou no renome de um tradutor são explorados como fatores promocionais de algum empreendimento editorial.

Cabe aqui uma menção especial à série "Os Pensadores", da Editora Abril, uma iniciativa de extraordinária importância e repercussão à época de seu lançamento nos anos 70, mas que, ao perpetuar-se de maneira inerte, sem revisão e aprimoramento, passa a atuar como um verdadeiro impedimento à renovação no campo das traduções filosóficas no Brasil.

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Quais as iniciativas que estão ao alcance do tradutor universitário, qual a contribuição que pode dar e quais as dificuldades típicas que enfrenta nessa tarefa? Quero mostrar que, além da tarefa óbvia de fazer uma excelente tradução, há outros cuidados que assumem importância crucial para a boa qualidade do produto acabado, tais como a preparação editorial, e o próprio acompanhamento do processo técnico de produção do livro. Vou conduzir a discussão de forma mais concreta a partir de minha experiência pessoal com a preparação e publicação de traduções de um autor de meu interesse: o filósofo britânico David Hume (1711-1776).

1) Diálogos sobre a religião natural. São Paulo: Martins Fontes, 1992 (Coleção Clássicos). XXVI + 187 p. ISBN 85-336-0128-X

No trabalho com uma editora comercial as exigências de mercado são dominantes, e tem-se de buscar e aproveitar as oportunidades para inserir o autor e obras de nosso interesse nos projetos editoriais em andamento. No início dos anos 90, o fato de que alguns filósofos franceses então em voga se referiram em termos aprovativos a esta obra de Hume criou uma suposição de demanda para ela. Essa suposição (correta ou incorreta) tornou viável a proposta de tradução desse livro de Hume em uma das coleções (Coleção Clássicos) da Editora Martins Fontes.

As condições favoráveis oferecidas pela editora neste caso possibilitaram uma bem-cuidada produção editorial, com a inclusão de um Prefácio e Bibliografia que foram neste caso preparados pelo Prof. Michael Wrigley do Departamento de Filosofia da UNICAMP. Houve também uma abertura para propostas inovadoras no tratamento editorial do texto, como a que adotei ao prefixar os nomes dos três interlocutores a suas falas, à maneira de um texto teatral, permitindo ao leitor seguir com mais facilidade o desenrolar do diálogo. Para maior clareza e consistência na apresentação dos diferentes planos temporais presentes no texto, distingui tipograficamente, ainda, as intervenções do narrador, que não toma parte na discussão.

2) Uma investigação sobre os princípios da moral. Campinas: Edunicamp, 1995 (Coleção Repertórios). 226 p. ISBN 85-268-0337-9

O trabalho com uma editora universitária está, em princípio, mais isento das exigências de mercado, e mais aberto para o recebimento de propostas editoriais baseadas simplesmente no mérito da obra, como foi o caso deste texto que o próprio Hume considerava sua obra prima e que até agora não existia em tradução para o português. Também neste caso abriu-se a oportunidade para uma produção editorial mais completa, com inclusão de notas e de um Prefácio, que, desta vez, eu mesmo redigi.

Embora também aqui o resultado final tenha sido uma edição de excelente qualidade, note-se que esse resultado só foi alcançado com um esforço de minha parte (do tradutor) para contornar dificuldades de natureza técnica e mesmo burocrática às quais uma editora universitária, pela sua própria distância do mercado, está mais sujeita (falo aqui particularmente da Edunicamp - entendo que a Edunesp está melhor posicionada nesse aspecto). Por exemplo, a empresa gráfica vencedora da licitação não estava preparada para realizar adequadamente a composição das várias passagens em grego existentes no original, o que só pôde ser feito quando assumi diretamente a supervisão dessa tarefa. E também a revisão técnica introduziu várias modificações em meu original que só foram desfeitas após muita insistência de minha parte, para que, por exemplo, não se tentasse aplicar normas de citação da ABNT a um texto filosófico clássico escrito há duzentos anos.

O que revela que o tradutor consciente, se quiser garantir a excelência do resultado final, não pode considerar que seu trabalho terminou quando o manuscrito foi entregue à editora, mas tem de acompanhar de perto os trabalhos técnicos de revisão e composição do texto final. Em especial, ele não pode permitir que o texto seja alterado sem sua concordância. Sob esse aspecto, as modernas facilidades proporcionadas pelo uso do computador tornam-se de valor inestimável, pois o tradutor pode assumir efetivamente o controle completo da produção de seu texto, eliminando a etapa de redigitação que é um momento crítico no qual todos os tipos de erros podem intrometer-se no trabalho.

Infelizmente o projeto e desenho da capa não me foram previamente apresentados, com o resultado de que esta ótima edição da Investigação sobre os princípios da moral terminou por receber um invólucro medíocre de gosto muito duvidoso, o que - em uma época em que a apresentação gráfica e visual constitui um aspecto essencial de qualquer projeto editorial - prejudicou em muito suas oportunidades de divulgação e reconhecimento.

3) Uma investigação sobre os princípios do entendimento humano; em preparação e disponível parcialmente em http://www.unicamp.br/~jmarques/trad/inveh.htm

Trato por fim do caso de um texto filosófico de Hume que tem importância fundamental e cuja tradução se apresenta como indispensável; mas que enfrenta sérias dificuldades para se realizar, dada a existência de uma tradução que satura o mercado. Refiro-me, é claro, à tradução que faz presentemente parte da coleção "Os Pensadores", que não reúne condições necessárias para ser utilizada como texto-base nas disciplinas filosóficas ministradas em cursos universitários de graduação.

Nessas circunstâncias, uma editora comercial terá compreensivelmente dúvidas quanto à viabilidade de recuperar os custos envolvidos no lançamento de uma nova tradução. E minha experiência mostrou que mesmo no interior da academia o simples argumento de que se necessita urgentemente de uma boa tradução não chega a ser suficiente - algum outro diferencial parece ser exigido, como por exemplo o lançamento de uma tradução baseada numa nova edição crítica.

Até que a nova edição crítica da Investigação sobre o entendimento humano esteja realmente disponível e atue como justificativa acadêmica para o lançamento de uma nova tradução brasileira, minha opção foi preparar essa tradução mesmo sem nenhuma perspectiva imediata e concreta de publicação. Até pouco tempo atrás, tal decisão soaria quixotesca e limitada no máximo à mera distribuição de umas poucas apostilas entre os estudantes de meus cursos, mas, mais uma vez, o desenvolvimento da informática associado às tecnologias de comunicação coloca nas mãos do tradutor um instrumento de alcance impensável poucos anos atrás.

A existência da Internet apenas começa a produzir seus efeitos na área de produção e difusão de textos acadêmicos, entre os quais se incluem as traduções. Esses efeitos tendem a se expandir enormemente a curto prazo, e parece-me que este é o momento de começar a explorar mais a fundo as oportunidades abertas por esse extraordinário meio de difusão da produção escrita, capaz de libertar efetivamente docentes e estudantes das limitações impostas pela distribuição convencional de material impresso. Minha tradução parcial do livro de Hume encontra-se disponível sob forma de hiper-texto no endereço http://www.unicamp.br/~jmarques/trad/inveh.htm. Embora minha intenção continue sendo a de conseguir uma publicação convencional em formato de livro, é reconfortante saber que o trabalho até agora realizado pode ser desde já de utilidade para todos os que dele sentirem a necessidade em suas atividades acadêmicas.

[NOTA de mai/2000: A publicação em 1999 pela Oxford University Press da edição crítica  preparada por Tom L. Beauchamp abriu finalmente a oportunidade editorial para uma nova tradução brasileira desta obra de Hume. A tradução que eu havia completado em 1997 foi revista para corresponder à nova edição crítica e sua publicação foi assumida com pioneirismo pela Editora da UNESP, com os padrões de qualidade que a colocam na liderança entre as editoras universitárias brasileiras. (HUME, D. Uma investigação sobre o entendimento humano. São Paulo: Editora UNESP, 1999 (Biblioteca Clássica). 212 p. ISBN 85-7139-236-6). Como os direitos autorais da tradução pertencem agora à Edunesp, ela não mais está disponível em minha página.]

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Minhas considerações finais resumem-se na recomendação de que o tradutor de textos filosóficos que se preocupa com a qualidade do resultado final de seu trabalho deve envolver-se com os aspectos editoriais e técnicos do projeto, deve ser o responsável último pela composição de seu texto, e, agora, com os novos instrumentos disponibilizados pela informática, tem a chance de assumir o controle do processo completo (produção e distribuição). Os exemplos do "Projeto Gutenberg" e do "Projeto Perseus" – que são iniciativas internacionais ambiciosas para tornar acessíveis pela Internet textos clássicos da literatura e da filosofia cujos direitos autorais já expiraram – apontam uma possível solução para a tão necessária constituição de um acervo de traduções de qualidade de obras filosóficas em português a que me referi no início. Evidentemente tudo isto abre um vasto campo de discussões sobre a natureza e o futuro da atividade editorial na era da Internet, e todas as complexas questões associadas, por exemplo, à proteção dos direitos autorais dos tradutores. Mas as possibilidades que se antevêem são ao mesmo tempo fascinantes e ilimitadas.


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