Volta

 

A querela entre Rousseau e Voltaire sobre o significado da civilização

 

 Renato Moscateli 

Universidade Estadual de Campinas

 

Colocar lado a lado as concepções de Rousseau e Voltaire sobre temas tais como a civilização e o progresso é dar continuidade à discussão que se iniciou quando, após ler o texto do Discurso sobre as origens e os fundamentos da desigualdade que lhe fora enviado por Rousseau, Voltaire respondeu-lhe por meio da célebre carta datada de 30 de agosto de 1755. Nessa carta, toda a ironia voltairiana volta-se contra a análise que o filósofo de Genebra fizera dos males advindos dos avanços da civilização, ou melhor dizendo, ela se incumbe da tarefa de ridicularizar a reflexão rousseauniana a partir de uma interpretação deliberadamente distorcida – uma verdadeira caricatura – que Voltaire fez do Segundo Discurso. De fato, ler essa carta é lidar com um documento bastante valioso, visto que ela fornece alguns indícios de suma importância para se compreender as especificidades do pensamento dos dois escritores, tanto por explicitar as idéias que Voltaire nutria a respeito da obra rousseauniana, quanto por sintetizar os princípios sobre os quais o próprio Voltaire julgava a civilização.

Reconhecendo o “espírito” empregado por Rousseau para desenvolver seus argumentos, Voltaire escreve-lhe que o Discurso constituía um esforço único em prol do “emburrecimento” humano: “dá vontade de andar de quatro quando se lê a sua obra. No entanto, como há mais de sessenta anos perdi este hábito, sinto-me, infelizmente, incapaz de retomá-lo, e deixo esta postura natural aos que são mais dignos dela do que o senhor e eu” (Voltaire, 1995, p. 55). Prosseguindo em sua crítica, Voltaire utiliza a comparação entre “selvagens” e “civilizados” – um recurso também usado por Rousseau – para relativizar as virtudes e os vícios de ambos:

 

Também não posso embarcar ao encontro dos selvagens do Canadá; em primeiro lugar, porque as doenças que me afligem me retêm junto do maior médico da Europa, e não encontraria os mesmos recursos entre os Missuris; em segundo lugar, porque a guerra foi levada para aqueles países, e os exemplos de nossas nações tornaram os selvagens quase tão maus quanto nós. Limito-me a ser um plácido selvagem na solidão que escolhi junto à sua pátria, onde o senhor deveria estar (Voltaire, 1995, p. 55-56).

 

Se por um lado a civilização proporciona ao homem expedientes que podem aliviar seus sofrimentos, por outro, seus males intrínsecos são capazes até mesmo de corromper aqueles que, em princípio, eram-lhes alheios. Independentemente de terem sido portadores de uma presumível bondade original, os “selvagens”, diz Voltaire, já não são tão diferentes dos europeus, embora na própria Europa seja possível viver como um “plácido selvagem”, condição que o autor atribui a si mesmo. Essa duplicidade de sentido conferido ao termo “selvagem” permite a Voltaire gracejar com a figura do homem natural descrita por Rousseau. O isolamento e a ausência de sentimentos belicosos são duas das características mais importantes que o Segundo Discurso aponta no homem em estado de natureza, justamente as características que Voltaire resgata ao falar de sua placidez e solidão em Les Délices, nas proximidades de Genebra. Enquanto os “selvagens” americanos faziam a guerra sob a má influência das nações civilizadas, contrariando aquela inclinação natural para a tranqüilidade das paixões que Rousseau lhes creditava, Voltaire apresenta-se como um “selvagem” europeu vivendo na calma de sua propriedade, condição que ele recomenda a Rousseau como a mais condizente com as convicções expostas no Discurso.

A crítica voltairiana continua para responder diretamente ao argumento de Rousseau de que o desenvolvimento das ciências e das artes teria sido prejudicial ao homem. Lê-se na carta:

 

Concordo com o senhor que as belas-letras e as ciências causaram às vezes muitos males. Os inimigos de Tasso transformaram sua vida numa teia de desgraças; os de Galileu fizeram-no gemer nas prisões, aos setenta anos, por ter descoberto o movimento da terra; e o mais vergonhoso é que o obrigaram a retratar-se. Assim que aqueles seus amigos iniciaram o Dicionário Enciclopédico, os que ousaram ser seus rivais trataram-nos de deístas, ateus, e até mesmo de jansenistas... (Voltaire, 1995, p. 56)

 

A concordância inicial com Rousseau logo se revela como mais uma ironia: aceitando a premissa inicial, em seguida Voltaire retira dela conclusões bem diferentes daquelas extraídas pelo filósofo genebrino. Não é o cultivo das artes e das ciências que contém o germe do mal, e sim a sua censura. É o arbítrio dos inimigos do livre pensamento que causa infortúnios aos seres humanos, especialmente aos indivíduos que buscam exercer suas faculdades em prol do esclarecimento geral. Assim, acredita Voltaire, não se deve impingir aos sábios e artistas, muitas vezes perseguidos injustamente pelos tiranos, uma culpa que eles não têm. “Reconheça”, escreve ele a Rousseau,

 

que Petrarca e Boccaccio não criaram os tumultos da Itália; reconheça que a brincadeira de Marot não provocou a noite de São Bartolomeu e que a tragédia do Cid não causou os tumultos da Fronda. Os grandes crimes não foram cometidos senão por famosos ignorantes. O que faz e sempre fará deste mundo um vale de lágrimas é a cupidez insaciável e o orgulho indomável dos homens, de Thamas Kouli-Kan, que não sabia ler, a um funcionário da alfândega que só sabe fazer contas. As letras nutrem a alma, retificam-na, consolam-na; elas o estão servindo, enquanto o senhor é como Aquiles, que se enfurece com a glória, e como o P. de Malebranche, cuja imaginação brilhante escrevia contra a imaginação (Voltaire, 1995, p. 56-57).

 

Ignorância e ambição: eis, na perspectiva voltairiana, as origens e os fundamentos dos sofrimentos terrenos. Contra estes dois grandes males, as letras – e por extensão os saberes estudados pelos filósofos do Iluminismo – são antes de tudo um remédio fundamental, ainda que muitas vezes seja apenas um paliativo, visto que sempre haverá obstáculos ao esclarecimento. Por tudo isto, Voltaire repreende Rousseau duplamente; em primeiro lugar, por não ter percebido que somente o aprimoramento do espírito humano por meio do cultivo das ciências e das artes pode suavizar a caminhada do homem por seu “vale de lágrimas”; e, em segundo lugar, pela contradição de estar se voltando contra aquilo que lhe fizera glória, maldizendo as letras por intermédio delas próprias.

Próximo da conclusão da carta, Voltaire contrapõe sua pessoa à de Rousseau, para desmerecer mais uma vez os argumentos deste. Nas primeiras páginas do Segundo Discurso, Rousseau afirma que essa obra é o resultado de “raciocínios hipotéticos e condicionais”, e não uma descrição calcada em fatos históricos. Ainda que isto não signifique que seu conteúdo possa ser considerado somente uma construção fictícia, no quadro da caricatura esboçada por Voltaire as palavras de Rousseau adquirem o ar de um discurso vazio porque desprovido de autoridade. Ora, ao longo de sua vida, Voltaire demonstrou em diversos momentos um grande desprezo pelos sistemas filosóficos construídos a partir de abstrações e explicações apriorísticas, e que subordinavam os fatos a hipóteses ao invés de proceder da observação do existente em direção à formulação de algumas idéias coerentes sobre o funcionamento das coisas (1). Deste modo, ele questiona sutilmente o direito de Rousseau de criticar as letras sem ter motivos concretos para tanto – isto é, usando somente “razões hipotéticas” –, especialmente considerando o fato de que Rousseau pessoalmente estava auferindo benefícios graças ao sucesso obtido no mundo das letras. Falando de si, Voltaire se apresenta como alguém que havia aprendido a conhecer o caráter dos homens, assim como os princípios de suas desventuras, não por intermédio de especulações e conjecturas, mas por meio da experiência. Seu direito a tecer críticas ou loas às letras ser-lhe-ia garantido por tudo o que ele sofreu em virtude delas. Assim, o autor escreve:

 

Se alguém pode se queixar das letras, sou eu, já que em todos os tempos e lugares elas serviram para me perseguir; mas é preciso amá-las apesar do abuso que delas se faz, como é preciso amar a sociedade da qual tantos homens maus corrompem as amenidades; como é preciso amar a pátria, por mais injustiças que nela se sofra; como é preciso amar e servir o Ser supremo, apesar das superstições e do fanatismo que tantas vezes desmerecem seu culto (Voltaire, 1995, p. 57).

 

Neste trecho da carta, como em outras passagens de seus textos, Voltaire demonstra que, em se tratando do ser humano, a perfeição é somente uma quimera. O paradoxo do mal, que perpassa sua obra, é exposto lado a lado com uma apaixonada defesa de alguns dos valores mais importantes que Voltaire ressalta na civilização: as letras, a sociedade, a pátria e o Ser supremo devem ser amados apesar de todos os dilemas que, de uma forma ou de outra, suas existências trazem ao homem. Sem eles, acredita o philosophe, o ser humano seria indubitavelmente inferior, visto que seus instintos primitivos não teriam freios capazes de detê-los para possibilitar o afloramento de qualidades mais refinadas. Em A História da filosofia, Will Durant escreve sobre isto: Voltaire crê que “o homem é, por natureza, um animal de rapina e que a sociedade civilizada significa um acorrentamento desse animal, uma mitigação de sua brutalidade, e a possibilidade do desenvolvimento, através da ordem social, do intelecto e de seus deleites” (1996, p. 240). O processo civilizador, como Norbert Elias (1990) esclareceria tempos depois, implica um crescente domínio das pulsões em direção ao autocontrole nas diferentes situações do cotidiano, desde o comportamento à mesa até as maneiras no interior da corte. Voltaire não somente percebeu essa faceta da civilização como depositou grande confiança nos benefícios advindos dessa função domesticadora.

Quanto a Rousseau, sua concepção a respeito do processo histórico de civilização do ser humano, se não é oposta à de Voltaire, pelo menos parte de pressupostos bem diferentes. Pela ótica rousseauniana, a constituição da civilização não é necessariamente positiva pelo fato de ter mitigado os instintos naturais. Afinal, o caráter original do homem, sendo desprovido de vícios, não necessitava de aprimoramentos. Como o autor escreveu no segundo prefácio de A Nova Heloísa, as belas almas são formadas pela própria natureza, e sua degradação advém fundamentalmente das instituições sociais. Nos espíritos dos homens vivendo no estado de natureza, portanto, os instintos não representavam tendências negativas que deviam ser sufocadas, para que algo de melhor pudesse aflorar; ao contrário, eles significavam disposições salutares dado que a medida de sua satisfação residia na opinião que cada indivíduo fazia de si, tendo como referência apenas sua própria pessoa. O mais importante dentre tais instintos, o amor-de-si, “um sentimento natural que leva todo animal a velar pela própria conservação”, é dotado por Rousseau de um status muito superior ao amor-próprio, “um sentimento relativo, fictício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si mesmo do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que mutuamente se causam” (Rousseau, 1973, p. 312-313). Devidamente guiado pela razão e pela consciência (“princípio inato de justiça e de virtude”, “instinto divino”, “voz celestial e imortal”), o amor-de-si pode gerar virtudes, enquanto que o amor-próprio, instigado pelos requintes da civilização, resulta sempre em paixões perniciosas; “domesticado”, o homem natural adquire, pois, os maus hábitos do cativeiro.

Pode a virtude ser mantida, mesmo no interior da vida civilizada? Quando Rousseau propôs a si mesmo esta questão, seu objetivo era tentar encontrar meios para impedir que a sociedade, ao menos em parte, destruísse aqueles dons naturais de que os indivíduos são dotados desde o nascimento, visto que na primeira infância os homens seriam como os selvagens ainda não corrompidos pelos costumes da coletividade. Para alcançar esse objetivo, lançou mão de um projeto pedagógico cuja diretriz principal era menos a de levar a criança a adquirir uma grande quantidade de conhecimentos, do que a de resguardá-la dos vícios sociais, fazendo com que fosse protegida até ter formado uma defesa moral e intelectual contra tais vícios. Embora a pedagogia rousseauniana fosse sistematizada somente no Emílio, em A Nova Heloísa já aparece seu esboço. Descrevendo a educação que dera a seus filhos, Júlia diz a Saint-Preux que evitara obrigá-los a aprender coisas que fossem desnecessárias ou incompreensíveis nos primeiros anos, preferindo antes estimular o espírito das crianças por meio de bons exemplos, ou seja, moldando seu caráter pela convivência em um ambiente harmonioso: o lar de Clarens, um contraponto à sociedade corrupta, é uma comunidade quase isolada do mundo, onde a natureza recebe espaço para se desenvolver. “É assim que”, afirma Júlia, “entregues à inclinação de seu coração, sem que nada a mascare nem a altere, nossos filhos não recebem uma forma exterior e artificial, mas conservam exatamente a de seu caráter original” (Rousseau, 1994, p. 504). Comparando-se essa perspectiva sobre a educação com aquela exposta por Voltaire em textos como o conto O Ingênuo, nota-se uma diferença essencial. Nesta obra, o protagonista aperfeiçoou seu espírito refreando seus impulsos naturais pela influência da alta cultura, pois, como Voltaire acreditava, as letras nutrem, retificam e consolam a alma humana. Para ele, a natureza humana deve ser refinada. Rousseau pensava justamente o inverso. É a educação que precisa ser alterada para se conformar à natureza. Enquanto para Voltaire o único meio de tornar a vida em sociedade aceitável é o desenvolvimento dos saberes eruditos e das artes, para Rousseau a própria civilização só é aceitável se for purificada pelos dons da natureza.

Ora, diante de tudo isto, a idéia de que Rousseau propõe um retorno à natureza deve ser avaliada com cuidado. Voltaire, em sua interpretação caricaturada do Segundo Discurso, sugere que o objetivo de Rousseau é infamar as letras e as ciências de modo a conduzir o gênero humano de volta ao estado bestial; por isto, na conclusão de sua carta ele sarcasticamente convida Rousseau para vir à Suíça restaurar sua saúde: “seria preciso vir restabelecê-la no clima natal, gozar a liberdade, beber comigo o leite de nossas vacas, e pastar nosso capim” (Voltaire, 1995, p. 57). Revertido à condição animalesca pela ironia voltairiana, só restaria a Rousseau agir de forma adequada a um completo selvagem. Entretanto, levando as reflexões rousseaunianas mais a sério do que a caricatura desenhada por Voltaire poderia permitir, é possível ver que as conseqüências de sua apologia à natureza nada têm a ver com um suposto retorno do homem civilizado à animalidade. Antecipando críticas à sua obra, como as que foram feitas por Voltaire, Rousseau inseriu elementos no Segundo Discurso que deveriam refutar previamente todas elas. Nela, ele mesmo pergunta: “Pois então será preciso destruir as sociedades, suprimir o teu e o meu, e voltar a viver nas florestas com os ursos? É essa uma conseqüência à moda de meus adversários, que prefiro antes prevenir do que possibilitar-lhes a vergonha de formulá-la” (ROUSSEAU, 1973, p. 301). A resposta não é dada prontamente, mas vem na forma de uma escolha crucial que é proposta a cada ser humano:

 

Oh! Vós, a quem a voz celeste não se fez ouvir e que não reconheceis para vossa espécie outro destino senão o de terminar em paz esta curta vida: para vós, que podeis deixar no meio das cidades vossas funestas aquisições, vossos espíritos inquietos, vossos corações corrompidos e vossos desejos desenfreados; retomai, posto que depende de vós, vossa antiga e primeira inocência, ide aos bosques esquecer o espetáculo e a memória dos crimes de vossos contemporâneos e não temais aviltar vossa espécie renunciando às suas luzes para renunciar a seus vícios (Rousseau, 1973, p. 301).

 

A primeira opção apresentada por Rousseau é justamente a que seus interlocutores mais ásperos – Voltaire entre eles – acreditam ser a única possível para aqueles que aceitassem os pressupostos do Discurso. Esse tipo de retorno à natureza significava o abandono da corrupção moral por meio de uma fuga em direção ao ambiente deserto das florestas, onde tudo aquilo que a civilização representava perderia o sentido. Se é nas cidades que os homens estão mais juntos e a sociedade torna-se mais complexa, escapar de seus limites poderia ser, então, um caminho rumo à regeneração? Os termos utilizados por Rousseau não descrevem essa hipótese com grande simpatia. Com efeito, para o filósofo somente aqueles que não deram ouvidos aos preceitos divinos aceitariam rejeitar a vida em sociedade. Para os que não perceberam a importância das verdades sobrenaturais reveladas ao homem por Deus, não há impedimentos para o regresso à animalidade, visto que eles não chegaram a atingir um estado mais elevado de espírito condizente com a própria humanidade. Nesse sentido, Rousseau não tem uma opinião diferente de Voltaire quando diz que abdicar das luzes do entendimento é um aviltamento da espécie antes de ser uma ação louvável.

Prosseguindo, Rousseau reforça seus argumentos para condenar esse retorno incondicional à natureza. Uma vez que o homem haja perdido a sua inocência natural e, em lugar dela, tenha adquirido um outro caráter graças à educação em meio aos costumes da vida em sociedade, com suas conveniências e restrições, não há mais volta, especialmente se a religião já lhe inspirou a esperança na redenção futura.

Quanto aos homens semelhantes a mim, cujas paixões destruíram para sempre a simplicidade original, que não podem mais alimentar-se de ervas e de bolotas, nem viver sem leis e sem chefes; aqueles que foram honrados, na pessoa de seu primeiro pai, por lições sobrenaturais; (...) em uma palavra, aqueles que estão convencidos de ter a voz divina chamado todo o gênero humano às luzes e à felicidade das inteligências celestes – todos esses, pelo exercício das virtudes que se obrigam a praticar ao aprender a conhecê-las, esforçar-se-ão por merecer o prêmio eterno que devem esperar (Rousseau, 1973, p. 301-302).

 

A questão religiosa demonstra ser de fundamental relevância nesse assunto. Rousseau não vê o ser humano apenas em seu aspecto físico, e considera que a ética proveniente da religião constitui imperativos aos quais ele deve obedecer para dar um sentido superior à sua vida. De acordo com Litholdo (1969), Rousseau teria subordinado o fim da animalidade primitiva no homem ao fato de este haver atingido o conhecimento moral, fato que significou também o surgimento da consciência da existência de um ser divino. Antes, o ser humano caminhava sobre a terra sem saber nada a respeito do bem e do mal, mas, à medida que seu entendimento das coisas foi crescendo, a moralidade de seus atos entrou em evidência, possibilitando que ele compreendesse que os planos da divindade incluíam o desenvolvimento espiritual do homem a fim de que ele compartilhasse da mesma bem-aventurança dos seres celestiais. Como pregar, portanto, o retorno à amoralidade do estado de natureza, se isto implicaria renegar a chance de se colocar ao lado das “inteligências celestes”? Rousseau jamais recomendaria seriamente tal opção.

O que é necessário fazer, então, para agir corretamente, considerando-se as implicações morais da civilização? Rousseau apresenta uma segunda opção de comportamento que está longe de ser um apelo ao fim da ordem social. Bem ao contrário, suas palavras chegam a ter um ar de conservadorismo, destoando da imagem de pensador revolucionário que às vezes se faz dele (ver Durant, 1996). De acordo com Rousseau, os indivíduos habituados à existência civilizada e dotados de consciência moral, entre os quais ele se inclui,

 

respeitarão os sagrados laços da sociedade de que são membros; amarão seus semelhantes e os servirão com todas as suas forças; obedecerão escrupulosamente às leis e aos homens que são seus autores e ministros; honrarão, sobretudo, os bons e os sábios príncipes que saberão prevenir, sanar ou paliar essa chusma de abusos e de males sempre prontos a oprimir-nos; animarão o zelo desses dignos chefes mostrando-lhes, sem temor e sem adulação, a grandeza de sua tarefa e a austeridade de seu dever, mas nem por isso desprezarão menos uma constituição que só pode manter-se com o auxílio de tantas pessoas respeitáveis, que mais freqüentemente se deseja ter do que de fato se obtém e da qual, malgrado todos os seus cuidados, nascem sempre mais calamidades do que vantagens aparentes (Rousseau, 1973, p. 302).

 

Toda essa reverência diante das instituições sociais e das autoridades estabelecidas não parece muito diferente da atitude de Voltaire para com elas: não escreveu ele que, apesar de tudo, é preciso amar a sociedade, a pátria e o Ser supremo? Sendo assim, Rousseau seria, no final das contas, mais um defensor do status quo, a despeito de todas as suas críticas à civilização? Ora, nem sempre as coisas são como parecem, e um olhar mais amplo sobre a obra rousseauniana pode auxiliar a compreender melhor as palavras acima. Tomando-se o Discurso sobre as ciências e as artes (publicado em 1750), há certas afirmações bastante interessantes cujo teor indica a capacidade de Rousseau para conferir às suas idéias um grau de elaboração que dificulta interpretações unívocas. Após haver discursado longamente sobre os males causados ao homem pelos avanços das ciências e das artes, Rousseau tempera a conclusão do texto com um elemento inesperado: perto do desfecho, a figura das academias aparece como uma possibilidade de combater os prejuízos que os saberes cultos geram: “do próprio seio das ciências e das artes, fontes de milhares de devassidões, esse grande monarca, cuja glória de época em época só se tornará brilhante, extraiu essas sociedades célebres, encarregadas tanto do perigoso depósito dos conhecimentos humanos quanto do depósito sagrado dos costumes, pela preocupação que têm de mantê-los, em si próprias, com toda a pureza, e de exigi-los dos membros que recebem” (Rousseau, 1973, p. 357). Criadas na França por Luís XIV, as academias reuniam intelectuais que, sob a tutela do Estado, eram responsáveis por dirigir a produção artística e científica no interior do reino. Na perspectiva rousseauniana, essas comunidades de sábios desempenhavam uma função importantíssima: controlando a geração e a difusão dos conhecimentos e das técnicas, elas poderiam impedir a sua má utilização, ao mesmo tempo em que garantiriam que a sociedade não seria privada de suas benesses. Como bem salientou Jean Starobinski, Rousseau apela para a imagem do remédio que é extraído do próprio veneno para caracterizar as academias, visto que elas seriam grupos seletos de indivíduos – “ilhotas de transparência” – dedicados ao cultivo das artes e das ciências, cuja integridade moral providenciaria um antídoto à corrupção social. Escreve o autor:

 

Tal como ele [Rousseau] os idealiza, os membros das academias possuem um saber autêntico e pleno, radicalmente diferente da “vã ciência” que denunciou, e que é praticada pelos “charlatães”: esta, ilusória e pretensiosa, não tem do saber mais do que a aparência, e propaga ao seu redor, como uma epidemia, a divisão entre o ser e o parecer. A verdadeira ciência dos acadêmicos repara, entre estes ao menos, a ruptura ontológica, supera a alienação e restaura a unidade da aparência externa e da realidade interna (Starobinski, 2001, p. 165).

 

Assim como no caso das academias, Rousseau por vezes busca saídas para os problemas da sociedade na depuração das próprias instituições existentes – a cura do mal por meio do próprio mal. Se ele prega a obediência às autoridades estabelecidas, como foi visto, são principalmente “os bons e os sábios príncipes que saberão prevenir, sanar ou paliar essa chusma de abusos e de males sempre prontos a oprimir-nos” que ele tem em mente. Os governantes esclarecidos e cônscios da importância de sua missão merecem a reverência de todos porque são os “terapeutas” habilitados a prescrever e aplicar os remédios necessários à sociedade, prevenindo, sanando e paliando suas enfermidades. Ao longo do Segundo Discurso, o philosophe lamentou a perda da liberdade natural e deplorou o surgimento da desigualdade que fez de uns servos e de outros senhores; entretanto, ele também considerou que as leis, não obstante os abusos que possam prescrever e as injustiças que não consigam evitar, são dignas de respeito, tanto mais se forem criadas e ministradas por “pessoas respeitáveis”. Quando as autoridades são como os sábios acadêmicos, o exercício de suas funções contribui para reverter ou refrear, ao menos em parte, a degradação da sociedade, ainda que seja mantendo uma ordem desigual e intrinsecamente injusta. O mal persiste, mas fornece as armas para combatê-lo.

Foi dito acima que as concepções de Voltaire e Rousseau sobre o processo histórico de civilização do ser humano não são exatamente opostas, ainda que partam de pressupostos bem diferentes. De fato, fazendo um balanço dos benefícios e dos prejuízos obtidos pela humanidade quando esta se civilizou, cada um dos autores tem uma opinião própria quanto ao resultado. Para Voltaire, o polimento do homem, o abrandamento de seus instintos naturais foi de suma importância, pois tornou o gênero humano capaz de viver em sociedade e de produzir os meios para tornar sua vida na terra mais e mais agradável, mesmo que esses meios também pudessem ser usados para causar problemas. Para Rousseau, por outro lado, a natureza humana degradou-se ao abandonar a simplicidade primordial, sendo corrompida pelo uso dos meios artificiais que a civilização interpôs à realização de suas necessidades, muito embora ele acreditasse que apenas o aprimoramento desses meios, sua purificação, pudesse redimir os males sociais. À sua maneira, ambos os philosophes enxergavam claramente que, desejável ou não, a civilização não é um estado de perfeição, e a idéia de progresso deve ser considerada com cautela. Contudo, se as mazelas que viam em sua própria época precisavam ser solucionadas, isto somente poderia ser feito por meio dos recursos que a civilização lhes entregou. Mas, se as diferenças entre o pensamento de Voltaire e Rousseau a esse respeito não eram tão radicais quanto pareciam, quais foram as razões que estimularam o desentendimento que os afastou cada vez mais ao longo do tempo? Por que Voltaire condenou Rousseau com tanta veemência, a ponto de a posteridade ter tornado célebre a querela entre os dois iluministas sobre o significado da civilização?

Em se tratando de disputas pela fama, nem sempre é necessário que dois escritores pensem diferente para se transformarem em adversários. Basta que um deles desafie, pelo simples fato de se tornar conhecido, o status já alcançado pelo outro para que as animosidades possam surgir. O Segundo Discurso não recebeu o prêmio da Academia de Dijon, porém encontrou, não somente entre os literatos, mas no grande público, um êxito imediato e triunfal. Nessa mesma época, Voltaire já era um escritor internacionalmente consagrado, tanto por seus textos literários quanto por suas obras históricas e filosóficas. No momento em que Rousseau emergiu no cenário intelectual francês, seu sucesso representava uma nova ameaça ao prestígio de Voltaire, uma ameaça que este precisava combater para não perder seu “capital simbólico” conquistado durante muitos anos de atividade. Muito embora Rousseau e Voltaire tenham atingido a celebridade por meio de gêneros de escrita diversos, é certo que ambos eram homens de letras e philosophes, e como tais suas figuras foram sendo gradativamente colocadas lado a lado por um público que nem sempre conferia grande peso às distinções decorrentes dos gêneros textuais praticados por eles. Mesmo que primeiramente Voltaire tenha sido um famoso dramaturgo, poeta e historiador, e Rousseau um célebre autor de discursos, de textos políticos e de um romance epistolar, os dois faziam parte de uma elite intelectual que se dirigia – a despeito dos diferentes recursos usados em busca do sucesso – a públicos cuja composição se entrelaçava de forma a transcender, em boa medida, as separações entre os apreciadores de um ou outro gênero em particular. Aquilo que eles escreviam e faziam era comentado muito além do círculo dos leitores de seus livros. Como Pierre Lepape (1995) salienta, os dois rivalizavam pela influência sobre uma opinião pública em expansão no século XVIII, e, nas palavras de René Pomeau (1957), Voltaire detestava Rousseau, entre outras coisas, porque ele “lhe fazia sombra”. Nesse sentido, as caricaturas que Voltaire criava a partir das idéias de seus adversários não eram o fruto de uma simples incompreensão dessas idéias. Elas eram parte de uma estratégia bem definida para defender sua posição na hierarquia do campo literário. Segundo Marcos Antônio Lopes, “Quando disposto, [Voltaire] expunha os mais diversos sistemas filosóficos com admirável clareza. Mas, quando tomado de indisposição, revelava-se um ‘entortador’ de idéias. Nesse sentido, parece que certos historiadores de Voltaire têm razão. Ele sabia das coisas, possuía uma grande capacidade de compreensão, mas não relutava em sacrificá-la quando o problema era fazer espírito” (2001, p. 122). Da mesma forma como Voltaire podia empenhar-se em discutir com grande perspicácia a filosofia empirista de John Locke e a física newtoniana, as quais admirava, era capaz de empregar igual empenho e argúcia no intuito de ridicularizar aqueles que considerava seus adversários intelectuais, como Leibniz e Rousseau, “fazendo espírito” às custas da desgraça alheia.

Seja como for, Rousseau e Voltaire, antagonistas não somente por suas idéias, mas também por seu desejo de fama, foram ambos grandes philosophes, tendo empreendido análises da civilização extremamente ricas em suas distintas abordagens. Estudando-as, conhecemos melhor o pensamento de ambos, e também podemos contemplar certas faces das imagens da História e da civilização construídas no século XVIII, imagens que talvez já tenham perdido algo de seus contornos, sem, contudo, ter desvanecido completamente.

 

 

Referências citadas

 

DURANT, Will. A história da filosofia. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1996.

 

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. v. I.

 

LEPAPE, Pierre. Voltaire: nascimento dos intelectuais no Século das Luzes. Trad. Mário Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

 

LITHOLDO, Augusto. A unidade do pensamento de J-J Rousseau na perspectiva de seu testemunho. Presidente Prudente: FFCL de Presidente Prudente, 1969.

 

LOPES, Marcos Antônio. Voltaire historiador. Campinas: Papirus, 2001.

 

POMEAU, René. Voltaire par lui-même. Paris: Éditions du Seuil, 1957.

 

ROUSSEAU, J.-J. Discurso sobre as origens e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: Rousseau. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 207-326.

 

________. Júlia ou A Nova Heloísa. Trad. Fulvia M. L. Moretto. São Paulo: Hucitec, Campinas: Editora da Unicamp, 1994.

 

STAROBINSKI, Jean. As máscaras da civilização. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

 

VOLTAIRE. Carta de Voltaire a Rousseau. Trad. Ayalla K. Aguiar, Carmen M. Serralta e Rosa Maria M. Freitas. Arca: Revista Literária Anual, Florianópolis, n. 2, p. 55-57, 1995.

 

 

Notas

 

(1) Ver o Tratado de metafísica, em especial o capítulo intitulado “Que todas as idéias vêm pelos sentidos”.

 

 

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