Volta

 

O bem e o mal na sociedade recém-iniciada do Segundo Discurso

Gustavo Cunha Bezerra

Universidade Estadual de Campinas

 

Ao discutir a origem da desigualdade entre os homens, Rousseau faz da oposição natureza/sociedade o fundamento sobre o qual constrói o segundo Discurso. Aquela obra segue o processo de sociabilização dos homens, processo que tem como origem a saída do estado de natureza e como resultado final a sociedade moderna. Sigo a forma pela qual Rousseau sugere que semelhante resultado deve ser colhido como um mal.

Abandonando o ser humano a inocência das primeiras aglomerações, a sociedade se constitui; os vícios do amor-próprio passam a dominar as relações sociais, sendo estas cada vez mais estigmatizadas pela corrupção. Neste percurso, o diagnóstico que Rousseau propõe sobre o  homem em sociedade é o seguinte:

No estado de natureza não aparece qualquer vestígio de sociedade: “É impossível imaginar por que, neste estado primitivo, um homem teria mais necessidade de outro homem do que um macaco, ou um lobo de seu semelhante...” (OC, t. III, p.151). Não mantendo relação duradoura com outrem e desprovido de reflexão, o homem natural não pode ser julgado moralmente: “poder-se-ia dizer que os selvagens não são maus, exatamente porque não sabem o que é ser bom. Pois, não é o desenvolvimento do saber nem o freio da lei, mas a quietação das paixões e a ignorância do vício que os impede de fazer o mal” (OC, t. III, p.154).

A ausência de reflexão sobre o seu próprio estado propicia ao homem natural um acesso imediato à sua natureza: “Sua imaginação nada lhe sugere, seu coração nada lhe pede (...) O espetáculo da natureza, por familiar, torna-lhe indiferente (...) Sua alma, que nada transtorna, se entrega ao único sentimento de sua existência atual (...) Quanto mais se pensa sobre esses assuntos mais cresce sobre nossos olhos, a distância entre as sensações puras e os mais simples conhecimentos”. (OC, t. III, p.144)

Jean Starobinski comenta a  “inocência original” do estado de natureza. Neste último, “o homem não sai de si mesmo, não sai do instante presente; em uma palavra, vive no imediato. E se cada sensação é nova para ele, essa descontinuidade aparente é somente uma maneira de viver a continuidade do imediato (...)” (Starobinski; p.37).  Starobinski refere-se também ao fato de Rousseau atribuir ao homem natural, qualificado como pré-moral e imediato, “retrospectivamente a qualificação moral da bondade”, assim como “um valor de verdade à experiência pré-reflexiva, que ele supõe perfeitamente passiva. A esse estado em que se supõe que o homem viva aquém da distinção do verdadeiro e do falso, Rousseau concede o privilégio da posse imediata da verdade” (Starobinski; p.37 e 38).

Segundo as reflexões de Starobinski, poder-se-ia dizer que no estado natural o homem é bom, mesmo não lhe cabendo nenhum julgamento moral, e também está em contato com a verdade, mesmo sem saber distinguir o verdadeiro do falso. A explicação desse ponto pode se fundamentar na sentença rousseauniana de que “a natureza não mente jamais”. Ela é a fonte da verdade e, o homem da natureza ao viver em perfeito equilíbrio com ela não poderia receber, pelos seus sentidos puros, qualquer falsidade.

O segundo Discurso soa como um lamento pela existência que o gênero humano deu a si mesmo, entretanto, não existe regresso à inocência e felicidade de outros tempos. Concomitante à nostalgia surge a preocupação central do pensador em mostrar as mazelas criadas pelo homem-do-homem. A segunda parte do Discurso sobre a origem da desigualdade procura, ao expor a “lenta sucessão de acontecimentos e conhecimentos” pela qual a humanidade se constrói, mostrar como o surgimento da propriedade, as diferenças de força e talento, concorrem para os diversos males nas relações sociais.

Os obstáculos da natureza levam o homem natural a procurar meios para superá-los: “Anos estéreis, invernos longos e rudes, verões escaldantes, que consomem tudo, exigiram deles uma nova indústria” (OC, t. III, p.165). Nesse processo de perfectibilidade, o homem adquire a capacidade de estabelecer relações e comparar diferentes objetos. Por meio da potência comparativa ele percebe sua superioridade perante os outros animais (o que lhe produz o primeiro sentimento de orgulho) e, olhando os seus semelhantes, conclui que estes “pensavam e sentiam de maneira inteiramente conforme a sua” (OC, t. III, p.166). Da aquisição desta importante verdade surgem as primeiras associações: o homem deixa o isolamento natural e passa a se agrupar a fim de suprir suas necessidades. Essa espécie de “associação livre que não comprometia ninguém, e que só durava o tempo da necessidade passageira que a havia formado”, não adquiriu ainda a forma de um agrupamento fixo, mas suscita “algumas vagas idéias de compromissos mútuos, e da vantagem de respeitá-los” (OC, t. III, p.166).

A linguagem necessária para esses agrupamentos, segundo Rousseau, não devia passar de “gritos inarticulados, muitos gestos, e alguns ruídos imitativos” aos quais foram acrescentados “sons articulados e convencionais” formando assim “as línguas particulares, mas rudes, imperfeitas” (OC, t. III, p.167). O Ensaio sobre a origem das línguas afirma que “(...) a invenção da arte de comunicar nossas idéias depende menos dos órgãos que nos servem para tal comunicação do que de uma faculdade própria do homem, que para isso o faz usar seus órgãos e que, caso lhe faltassem, fá-lo-ia usar outros para o mesmo fim.” (OC. t. V, p. 379).

Há uma espécie de harmonia estratégica entre os passos das luzes intelectuais e a formação do trabalho técnico: “Quanto mais se esclarecia o espírito, mais a indústria se aperfeiçoava” (OC, t. III, p.167). A arte de construir cabanas possibilitou a formação e o estabelecimento fixo das  famílias: “Essa foi a época de uma primeira revolução, que fixou e distinguiu as famílias, e que produziu uma espécie de propriedade, da qual nasceram muitas querelas e combates”. É preciso perceber, no entanto que “o hábito de viver junto fez nascer os sentimentos mais ternos que são conhecidos dos homens, o amor conjugal e o amor paterno. Cada família se tornou uma pequena sociedade, ainda mais unida por ter como únicos laços o apego recíproco e a liberdade” (OC, t. III, p.168).

Num primeiro instante, a saída do isolamento natural não implica necessariamente em malefícios coletivos. Pelo contrário; a sociedade iniciada foi, para Rousseau, a época mais feliz, da qual nunca o homem deveria ter saído. A origem do homem que depende e se relaciona com uma sociedade requer uma constituição diferente daquela imperante no estado de natureza. Com a sociedade surge a moral, a vida passa a ser mais complexa do que a unidade absoluta do homem natural. Mesmo assim, afirma Rousseau: “(...)ainda que os homens tivessem se tornado menos tolerantes, e que a piedade natural já tivesse sofrido algumas alterações, esse período do desenvolvimento das faculdades humanas, mantendo o equilíbrio exato entre a indolência do estado primitivo e a atividade petulante de nosso amor-próprio, deve ter sido a época mais feliz e a mais durável” (OC, t. III, p.171).

O estreitamento das relações entre os homens, no entanto, determina os males da vida em sociedade. A proximidade entre diferentes famílias reunidas “pelos costumes e pelos caracteres, não por regulamentos e leis” propicia novas idéias que tornam mais fortes as paixões, as quais conduzem ao longo processo da corrupção da sociedade. A gênese do homem que se relaciona com os seus semelhantes traz consigo o germe da sua ruína.

O consórcio dos “jovens de diferentes sexos” que “habitam cabanas vizinhas” desperta, insensivelmente, “idéias de mérito e de beleza que produzem sentimentos de preferência. De tanto se verem, não mais se podem prescindir um do outro. Um sentimento terno e doce insinua-se na alma, e, pela menor divergência, transforma-se num furor impetuoso; o ciúme desperta com o amor; a discórdia triunfa, e a mais doce das paixões humanas recebe sacrifícios de sangue humano” (OC, t. III, p.169).

Nesse processo de domesticidade do gênero humano, no qual “as ligações estendem-se e os laços estreitam-se”, surge a “festa primitiva” como resultado da reunião de “homens e mulheres desocupados” que, “em frente às cabanas ou sob uma grande árvore”, fazem do canto e da dança a sua ocupação. É nesse momento que as comparações e preferências introduzem no espírito humano o desejo de “estima pública”: “(...)cada qual começou a olhar os outros e também  a querer ser olhado, e a estima pública teve um preço. Aquele que cantava ou dançava melhor, o mais belo, o mais forte, o mais hábil ou o mais eloqüente, tornou-se o mais considerado; e assim foi dado, a um só tempo, o primeiro passo para a desigualdade e para o vício. Dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação provocada por esses novos germes produziu por fim resultados desastrosos à felicidade e à inocência” (OC, t. III, p.169 e 170).

Na cena em que aparece o homem competitivo é introduzido um elemento fundamental da teoria rousseauniana: o olhar do outro. O homem primitivo, que repousava numa relação com a natureza regulada pela piedade, sofre novas transformações que o impulsionam para um tipo de vínculo social cada vez mais baseado na representação, na desvinculação entre ser e parecer. As vaidades do amor-próprio estimulam a perda da “transparência entre os corações”, pois, nos atos de olhar e de querer ser olhado surge a busca da aparência. Luiz Roberto Salinas Fortes analisa esta passagem da “sociedade iniciada”:

 

A fixação de um espaço físico delimitado – o da “vizinhança” – e do tempo uniforme e cumulativo de reiteração – o da “freqüentação mútua” e dos primeiros encontros dos dois sexos – são as condições que propiciam uma profunda revolução, ou seja, a constituição de um laço social. Sem estas condições, nenhuma “sociedade” é possível e graças a elas o homem se oferece em espetáculo, não em um sentido vagamente metafórico, mas em um sentido próprio, como canto ou dança. Condições supremamente ambíguas, já que a constituição do “laço” social permanente, graças ao abandono da errância no espaço e no tempo, é indiscernível da constituição da possibilidade social da separação sujeito-objeto através do exercício agora também permanente da distinção e da comparação. (...) Os homens reúnem-se, separando-se num mesmo momento: reúnem-se, pois abandonam o isolamento primitivo,  mas separam-se de novo na medida em que se destacam, distinguem-se uns dos outros ao se oferecerem em espetáculo uns para os outros e ao entrarem em conflito, em disputa ou contradição com o seu duplo (Fortes; p. 44, 45 e 46)

 

A separação apresenta-se como conseqüência daquilo mesmo que proporcionou a união. A origem do bem e do mal é a mesma; a “sociedade iniciada” e sua “festa primitiva” permitem que sejam despertadas tanto a fraternidade, quanto a competitividade destrutiva.  Nessa “época mais feliz”, intermediária entre o isolamento do homem natural e a corrupção da sociedade civil, existe equilíbrio entre a completa passividade natural e a “atividade petulante de nosso amor-próprio”. O olhar do outro desencadeia a alienação mútua dos indivíduos. A busca da estima pública passa a influenciar o comportamento; “os primeiros deveres de civilidade”, surgidos com associações mais estáveis, geram violentas vinganças e injúrias. O desprezo é vingado de acordo com o julgamento do suposto ou real ofendido. A “sociedade iniciada” requer novas qualidades, “a bondade conveniente ao estado natural puro não era mais a que convinha à sociedade que nascia”. Deste modo torna-se preciso punir as ofensas com severidade, definindo-se a mudança do registro que vai do “terror das vinganças” ao “freio das leis” (OC, t. III, p.170 e 171). A ausência de controle sobre o amor-próprio acirra cada vez mais as disputas dos homens entre si, destruindo, assim, o equilíbrio da comunidade primitiva.

O próprio surgimento da comunidade se confunde com a sua decadência. A quebra da auto-suficiência, sendo esta última proporcionada pelo modo de vida rudimentar do homem primitivo que consegue pelas próprias mãos satisfazer todas as suas necessidades, dá início à cadeia de “desgraças” que levam à propriedade, à escravidão, à miséria: “(...)a partir do momento em que um homem precisou do auxílio de outro, a partir do momento em que se aperceberam ser útil a um só possuir provisões para dois, a igualdade desapareceu,  a propriedade introduziu-se, o trabalho tornou-se necessário, e as vastas florestas transformaram-se em campos vicejantes que foi preciso regar com o suor dos homens, e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germinar e crescer com as colheitas. A metalurgia e a agricultura foram as duas artes cuja a invenção produziu essa grande revolução”. (OC, t. III, p.171)

Nesse estado, as faculdades humanas já estão desenvolvidas. As ações se  realizam com a hegemonia da razão, da memória e da imaginação. Os homens, movidos pelo amor-próprio, encontram, neste contexto, formas de predomínio sobre os outros: “as diferenças dos homens, desenvolvidas pelas diferenças das circunstâncias, tornam-se mais sensíveis, mais permanentes em seus efeitos, e começam a influir, na mesma proporção, na sorte dos particulares” (OC, t. III, p.174).

As qualidades que garantem ao homem a estima dos demais passam a ser ostentadas: “foi preciso mostrar-se diferente do que se era na realidade. Ser e parecer tornaram-se duas coisas completamente diferentes, e dessa distinção surgiram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que compõem o seu cortejo” (OC, t. III, p.174). Consumada a ruptura com a autenticidade do homem primitivo, chega um ponto essencial no pensamento rousseauniano: a cisão entre ser e parecer define a perda da transparência. A relação entre os homens visa, em última instância,  a estima de um perante os demais; sendo que a virtude  nada influencia na aquisição de tal estima pública. O diagnóstico está pronto, a civilização (vista como negação da natureza) corrompe os entes humanos que vivem agora em sociedade; seguindo neste mesmo caminho, o homem se torna cada vez mais dissimulado e ambicioso: “(...)a ambição devoradora, o ardor de construir sua fortuna relativa, menos por uma verdadeira necessidade do que para se colocar acima dos outros, inspira a todos os homens uma sinistra inclinação a se prejudicarem mutuamente; uma inveja secreta tão mais perigosa que, para dar seu golpe com mais segurança,  freqüentemente usa a máscara da benevolência”. (OC, t. III, p.175)

O ato de mostrar-se ao outro, numa aparência enganadora, escondendo ao mesmo tempo a própria alma, torna-se um artifício para satisfazer desejos pessoais. Os homens se separam, não existe mais confiança recíproca. A comunicação autêntica é substituída por um comércio factício e desprovido de sinceridade; assim se constitui  uma sociedade em que cada um se isola em seu amor-próprio e se protege atrás de uma aparência mentirosa. Paradoxo singular que, de um mundo em que a relação econômica  entre os homens parece mais estreita, faz efetivamente um mundo de opacidade, de mentira, de hipocrisia” (Starobinski; p.35)

 No acúmulo de riquezas os homens realizam seus fins: “se colocar acima dos outros”, eles tornam-se invejados, admirados e obedecidos. O processo de instalação da desigualdade tem origem neste desejo de se distinguir dos outros, o sucesso só pode ser atingido quando visto pelos outros. Conforme afirma Rousseau:

 

Se fosse o caso de entrar em detalhes, explicaria facilmente como a desigualdade de prestígio e de autoridade torna-se inevitável entre os homens particulares, assim que, reunidos numa mesma sociedade, são forçados a se comparar entre si, e a considerar as diferenças que encontram no uso contínuo que têm de fazer uns dos outros.(...) Observaria o quanto esse desejo universal de reputação, de honrarias e de preferências que nos devora a todos, estimula e compara os talentos e as forças, o quanto ele excita e multiplica as paixões, e o quanto, tornando todos os homens concorrentes, rivais, ou antes, inimigos, ele cotidianamente provoca reveses, acontecimentos e catástrofes de toda  espécie, levando ao mesmo combate tantos pretendentes. Mostraria que é a  essa  ânsia de fazer falar de si, a esse furor de se distinguir que nos coloca quase sempre fora de nós mesmos, que devemos o que há de melhor e de pior entre os homens: nossas virtudes e nossos vícios, nossas ciências e nossos erros, nossos conquistadores e nossos filósofos, isto é, uma infinidade de coisas más contra um pequeno número de coisas boas. (OC, t. III, p.188 e 189)

 

Da mesma forma que o reconhecimento do outro, no homem das primeiras sociedades, desperta tanto a fraternidade quanto o conflito de interesses particulares; aqui vemos a mesma ambivalência no que se refere à “ânsia de fazer falar de si”, ou seja, ao desejo de aparecer e ser admirado perante os demais; conseqüência da introdução do olhar do outro na relação entre os homens. Rousseau indica que tanto a virtude quanto os vícios tem esta mesma origem; novamente, o bem e o mal têm a mesma fonte e os seus efeitos,  na história da humanidade, são mais maléficos que benéficos.

Esta história da desagregação do gênero humano, descrita no segundo Discurso, expõe uma seqüência de acontecimentos conduzindo-nos a um estado em que: “(...) reduzindo-se a aparência, tudo se torna artificial e simulado: honra, amizade, virtude,  e muitas vezes até mesmo os vícios, nos quais finalmente se encontra o segredo de se glorificar.(...)Em meio a tanta filosofia, humanidade, cortesia e máximas sublimes, temos apenas um exterior enganador e frívolo, honra sem virtude, razão sem sabedoria, prazer sem felicidade” (OC, t. III, p.193)

A relação entre o eu e o outro é dirigida pela comparação e pelo desejo de, nesta mesma comparação, o eu ser admirado pelo outro, sendo a riqueza a principal qualidade que garante tal reconhecimento. Portanto, a aparência torna-se o instrumento essencial desta competição entre indivíduos, os quais, ao se mostrarem uns aos outros, não procuram outra coisa senão o prestígio. De acordo com Starobinski: “O homem se aliena em sua aparência, Rousseau apresenta o parecer ao mesmo tempo como a conseqüência e como a causa das transformações econômicas. De fato, Rousseau liga profundamente o problema moral e o problema econômico. O homem social cuja existência já não é autônoma mas relativa, inventa sem cessar novos desejos que não pode satisfazer por si mesmo. Precisa de riquezas e do prestígio: quer possuir objetos e dominar consciências. Só acredita ser ele mesmo quando os outros o “consideram” e o respeitam por sua fortuna e sua aparência.” (Starobinski; p. 39 e 38)

Cria-se, deste modo, uma separação conflituosa fundamentada, paradoxalmente, na alienação. A desigualdade apresenta-se como conseqüência deste deslocamento para o outro, ou seja, a atribuição ao outro do julgamento daquilo que o eu mostra ser, pois, o desejo de se distinguir só pode ser realizado pelo olhar do outro, sendo a vantagem econômica de um sobre o outro o instrumento fundamental para se alcançar o prestígio. A acumulação de riquezas apresenta, portanto, dois elementos pejorativos: tanto o luxo (consumo do supérfluo), quanto o ato de mostrar-se superior.

É exatamente este tipo de relação entre os homens, assim constituída na história da humanidade, que origina e perpetua o mal. Starobinski procura descrever tal concepção do mal elaborada por Rousseau no segundo Discurso: “O mal é a inquietude de espírito que os estóicos denunciavam, e é também o que os modernos chamam de alienação: não mais se pertencer, sair de si, viver para a opinião e para o olhar dos outros, exigir mais que o necessário reconhecimento do homem pelo homem. O mal, que veio de fora,  é a paixão pelo de fora.(...) o homem civilizado não deseja apenas a segurança e a satisfação de suas necessidades essenciais, cobiça o supérfluo, deseja o desejo de outrem,  quer fascinar pela exibição de seu poder ou de sua beleza.” (Starobinski; p. 308)  

Tornam-se todos, assim, dependentes uns dos outros, não no sentido de formar um corpo político coeso, o qual Rousseau irá propor no Contrato Social, pelo contrário, essa dependência mútua reflete exatamente a desagregação do homem social, ela torna todos os indivíduos escravos uns dos outros. A sociedade moderna, assim constituída, mostra-se moralmente insustentável. A história da sociabilidade humana, descrita por Rousseau, sustenta a união dos homens concomitante ao isolamento de seus interesses; e o burguês é a personificação deste egoísmo que exclui  os valores de uma comunidade solidária e justa.

 

 

Referências Bibliográficas

 

Fortes, Luis Roberto Salinas. Paradoxo do Espetáculo: política e poética em Rousseau. São Paulo: Discurso Editorial, 1997.

 

Rousseau, J-J. Oeuvres Complètes. Bibliothèque de la Pléiade, Éditions Gallimard, Paris, t.III: 1964; t.V: 1995.

 

Starobinski, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo; tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

 

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