Volta

 

O Discurso sobre a desigualdade e o método abdutivo

 

Daniel Afonso da Silva

Universidade Estadual de Campinas

 

Introdução

 

Freqüentemente as obras filosóficas, ao tornarem-se clássicas, parecem transportar-se para um universo quase à parte. Ingressando no cânone, tornam-se independentes de seus autores, adotam predecessores e engendram descendentes. Conforme nos ensina Popper (1999), por meio de sua tese dos três mundos, a autonomia do mundo 3 ("dos inteligíveis ou das idéias no sentido objetivo"), condição mesma para a objetividade do conhecimento, é apenas relativa. Essa emancipação conhece graus vários e algumas obras continuam dialogando interminavelmente com a realidade mutável, sempre atuais.

O Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens constitui indiscutivelmente uma das obras filosóficas mais lidas e influentes. Desejamos desenvolver aqui um tópico, relacionado ao Discurso, de menor interesse intrínseco, porém, de grande importância para uma justa avaliação do texto rousseauniano. Procuramos apresentar e discutir o método de Rousseau tal qual se pode depreender da obra em questão. Por método, não entendemos propriamente a estratégia de argumentação, mas o procedimento investigativo que conduziu às conclusões apresentadas pelo autor em seu texto. Nossa análise encontra sua primeira dificuldade no fato de o tema eleito não merecer um capítulo próprio no Discurso. Ao contrário, os elementos que nos permitem reconhecer um método mostram-se dispersos por todo o texto. Rousseau não busca explanar seu método, cometendo apenas observações casuais. Não obstante, interrogando o texto, acabamos por sugerir novas chaves de interpretação, contribuindo, embora minimamente, para o revigoramento do mesmo.

 

I

 

Uma primeira questão pertinente seria a de se Rousseau desenvolve, no Segundo Discurso, uma narrativa histórica de caráter científico ou uma narrativa literária, esta voltada a propósitos outros que não a descoberta da verdade ou o descortinar da realidade. Esse problema torna-se mais espinhoso ao atentarmos para as polêmicas subjacentes à pergunta, relacionadas à cientificidade das ciências humanas – e da História em particular –, à verdade científica e/ou à realidade. A resposta, portanto, deve conter os seguintes esclarecimentos: 1) qual o caráter cognitivo do Segundo Discurso; 2) qual deve ser sua pretensão à verdade; 3) o que legitima essa pretensão.

Quanto ao tipo de narrativa, a questão talvez não seja tão relevante quanto julgamos. Sem intenção de produzir algo mais que uma análise sumária da época de Rousseau, algumas características, mais ou menos consensuais, podem-se elencar, componentes de um período da história intelectual anterior a  uma cisão mais profunda entre ciência e filosofia e entre ciências do homem e ciências da natureza – período durante o qual essa divisão começa a tomar forma. Os meios de divulgação científica eram os livros – o que ainda persiste parcialmente nas ciências humanas. Muitos textos não revelam o rigor e a tecnicidade dos escritos científicos atuais, bastando citar, como comprovação a essa afirmação, o Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo, de Galileu, no qual a defesa  - não apenas a divulgação - do sistema copernicano contra o sistema ptolomaico, uma discussão astronômica, é conduzida por meio de um expediente platônico. Na Filosofia, o emprego de recursos estilísticos menos rebuscados, de linguagem cotidiana preferencialmente a construções escolásticas constitui mesmo uma opção dos autores – Hume, Voltaire e outros – destinada a ampliar o rol de leitores potenciais. Esse exatamente constitui um traço do escritor Rousseau, o coloquialismo de muitas de suas obras, coloquialismo que não implica simplificação ou descuido argumentativo, porém, uma superação de certos tradicionalismos formalistas.

Trata-se, para Rousseau, de confrontar juízos há muito entranhados sobre a origem da desigualdade, juízos amalgamados a crenças religiosas e reiterados por séculos de pregação. Para combater o relato bíblico da criação, Rousseau produziu uma nova narrativa das origens. Seu texto, como nossa análise procura mostrar, não compartilha do valor cognitivo dos mitos, mas esforça-se por estruturar-se cientificamente.

 

 

Em sendo uma teoria científica, podemos inquirir qual tipo de teoria seria, guiando-nos pela classificação binária einsteiniana, que reconhece dois tipos de teorias: as fenomenológicas, isto é, as sistematizadoras de fenômenos observáveis (tal qual a Termodinâmica); as construtivas, quais sejam, as proponentes de entes ou processos inobserváveis – e que, por conseguinte, ultrapassam a esfera fenomênica, buscando causas e estruturas além das acessíveis por via empírica direta (como a Mecânica Quântica). Conquanto a teoria de Rousseau sobre as origens do homem e da desigualdade pertença, em princípio, ao campo das fenomenológicas, ela padece de uma dificuldade comum às ciências históricas: teorias sobre entes macroscópicos e suas relações, a ausência de vestígios materiais força-as a conjecturas, freqüentemente de improvável comprovação empírica imediata. Esse o flanco por onde penetram as dúvidas quanto à veracidade da teoria de Rousseau. Esse o elo com os debates contemporâneos sobre o realismo científico e o viés epistemológico capaz de unir os destinos das ciências humanas e naturais.

 

II

 

A solução possível para o desafio de fundamentação de uma epistemologia científica na qual encontre acolhida a perspectiva do realismo científico passa pela validação da chamada inferência abdutiva ou inferência para a melhor explicação. Nela a inferência de um ente ou estrutura é autêntica se o ente ou estrutura fizer parte da melhor explicação potencial para os fenômenos que observamos. Tem sobre a indução a grande vantagem de dispensar a reiteração da conexão entre eventos (fator problemático na avaliação de teorias sobre fatos históricos e eventos singulares – Teoria do Big-Bang). Por outro lado, sendo virtualmente infinito o número de potenciais explicações elaboradas com base num conjunto de fenômenos, a inferência abdutiva deve apelar à prática científica na determinação dos candidatos de fato à condição de melhor explicação. Outro limitante do número de teorias, dependente já de um refinamento do esquema de inferência apresentado por Gilbert Harman na década de 60, consiste na demonstração de que uma teoria possui poder sistematizador tanto retrospectiva quanto prospectivamente. Essa demonstração refuta a tese da subdeterminação empírica das teorias (ou tese da indistinguibilidade frente à evidência), pois a verossimilhança de uma teoria aumenta quando esta não somente explica os fenômenos presentes à época de sua formulação, mas ainda realiza previsões de novos fatos, as quais se vêem confirmadas (Teoria da Relatividade Geral).

A inferência para a melhor explicação tem o mérito de reunir duas funções das teorias tratadas separadamente pela epistemologia da primeira metade do século XX, a inferência da verdade – inferência de causas, bem entendido – e a explicação dos fatos. Essa coligação de inferência e explicação, contudo, não é estranha aos pensadores modernos. Rousseau associa as duas funções, como mostraremos a seguir, e também Descartes, em seus Princípios de Filosofia, antecipa muitas das características da inferência para a melhor explicação exploradas pelos realistas científicos em nossos dias.

 

III

 

O título da obra de Rousseau contém dois termos apropriados ao tema que vimos considerando: origem e fundamentos. Conquanto se possam tomar como sinônimos em algumas instâncias de uso, o emprego dos mesmos no título, coordenado pela conjunção e (aditiva) indica uma distinção de sentido. O discurso versa sobre o início ou princípio histórico da desigualdade entre os homens e sobre as causas dessa desigualdade. Da exposição de Rousseau, compreendemos que as causas, os alicerces sobre os quais assenta a desigualdade, multiplicam-se a partir da causa original. Daí a diferenciação que o título leva a pressupor. Essa distinção já significa uma recusa da imputação da desigualdade entre os homens à causa natural, pois, se fosse esse o caso, não haveria cabimento em distinguir uma causa original de outras.

A separação de origem e fundamentos implica uma delimitação de métodos. A origem corresponde a um evento histórico perdido no tempo, anterior à escrita e a outros tipos de realizações humanas. Destarte não existem dela vestígios que se prestem à elaboração de uma teoria descritiva, obrigando o autor a recorrer à especulação, isto é, à formulação de hipóteses. Os fundamentos da desigualdade, por seu turno, tratando-se de causas que podem ser ditas estruturais, devem ser passíveis de observação e descrição e, portanto, de avaliação por método empírico direto. Voltaremos a esse aspecto mais adiante.

Rousseau coloca como fonte do conhecimento sobre os tópicos de que pretende tratar a Natureza:

 

... eis aqui a tua história, tal como acreditei tê-la lido, não nos livros de teus semelhantes, que são mentirosos, mas na Natureza, que nunca mente. Tudo o que dela vier será verdade e, se nisso houver algo de falso, deve-se ao que introduzi por minha conta, sem o desejar (p. 145).

 

A expressão "livros de teus semelhantes" busca polemizar com os parágrafos anteriores, nos quais Rousseau simula acatar a palavra bíblica que dá conta de o homem ter sido retirado do estado natural no próprio momento da criação, haja vista Deus ter-lhe concedido, de imediato, "luzes e preceitos". Parece-nos que a Bíblia conta-se entre os tais livros e a eles e a suas mentiras, Rousseau opõe a Natureza como fonte de verdade. Entretanto, a história que o autor deseja relatar não se encontra toda escrita na Natureza, requerendo a participação do leitor, com a qual podem penetrar elementos falsos.

Até este ponto, não é absolutamente claro que a menção pomposa da Natureza signifique a proposição de um método empírico. Isso se patenteia no início da primeira parte do Discurso. Rousseau reconhece não poder valer-se, em sua empreitada, de observações de naturalistas ou de resultados dos estudos de anatomia comparada, ainda muito incipientes. Sem observações das quais partir, vê-se na contingência de aventar hipóteses. Contudo, teremos ocasião de verificar que essas hipóteses não são gestadas em um vácuo nem permanecem, segundo Rousseau, somente hipóteses, convertendo-se em razões quando se mostram as melhores explicações dentre as possíveis para um objeto.

O método adotado por Rousseau na continuação consiste exatamente em um método hipotético. Como adiantamos, porém, as hipóteses não são construtos mentais livremente concebidos, resultando do expediente empírico da observação. Rousseau menciona observações de outros animais e também de comportamentos humanos. Essas observações não constituem todas, no entanto, observações científicas no sentido atual do termo. Muitas são observações realizadas pelo homem comum, assim como relatos de viagens. A construção de hipóteses explicativas por elas sugeridas e que se corroboram (para usar mais um conceito popperiano) na confrontação com observações de igual valor devem conduzir a uma democratização do próprio conhecimento, ratificada pela anteriormente citada recusa de um conhecimento livresco.

De certo modo, para Rousseau, o homem é um animal indutivo. Assim é que o autor destaca a capacidade do homem de observação e imitação crítica como diferencial em relação aos outros animais. Caberia discutir, neste ponto, se o método de Rousseau, além do epíteto de hipotético que lhe impusemos, justifica classificação adicional. Dificuldade para avançar nessa caracterização decorre de encontrarem-se os conceitos marcados por sua ocorrência na filosofia da ciência contemporânea. A expressão filosofia da ciência contemporânea é propositalmente dúbia, pois desejamos sublinhar tanto o fato de se tratar de uma filosofia da ciência freqüentemente inseparável do universo da ciência contemporânea, ou seja, informada pelas especificidades desta, quanto a condição de especialidade adquirida pela filosofia da ciência no século XX e o desenvolvimento algo autônomo que experimentou. A despeito dessas dificuldades, empenhar-nos-emos em validar algum tipo de classificação, sem que ela seja um fim em si mesma, mas uma forma de dialogar com o pensamento de Rousseau.

Um método indutivo envolve observações sistemáticas e, quando possível, experimentação. No texto rousseauniano, nada nos permite supor observação sistemática, embora se perceba uma tentativa de aproximar observações distintas em um sistema. Rousseau desenvolve, confrontado às peculiaridades de seu objeto, um método hipotético de investigação, recorrendo a observações seja para sustentar suas conclusões, seja para invalidar as de seus oponentes. As observações aludidas são ora constatações empíricas do senso comum, ora resultados de análises argutas do filósofo político que é Rousseau, resultados que permitem descortinar, na época do autor, estruturas decorrentes do processo evolutivo proposto. O componente empírico do método de Rousseau constitui-se assim de uma parte mais precária, como o próprio autor admite – dependente de uma antropologia e de uma biologia incipientes – e, no extremo oposto, de um aspecto mais elaborado e, por conseguinte, mais teórico – fatos organizados por uma teoria política que já contava então uma longa história e já havia atingido um elevado nível de construção teórica. Mesmo à falta de um corpo de dados empíricos mais abrangente e coeso, a hipótese formulada não permanece mera condicional, pois trata-se, consoante Rousseau procura demonstrar, da melhor explicação possível para o fato em questão.

 

Confesso que os acontecimentos que tenho a descrever puderam chegar de diversas maneiras e que eu não me posso fixar sobre a opção senão por conjecturas; mas, independentemente do fato de essas conjecturas se transformarem em razões quando se revelam as mais prováveis de quantas podemos tirar da natureza das coisas e os únicos meios de que nos podemos servir para descobrir a verdade, as conseqüências que desejo deduzir das minhas não serão, em absoluto, por esse motivo, conjecturais, uma vez que, sobre os princípios que venho de estabelecer , não se saberia formar nenhum outro sistema que me não fornecesse os mesmos resultados e do qual eu não pudesse tirar as mesmas conclusões (p. 174).

 

Ao afirmar que as conjecturas tornam-se razões, Rousseau apresenta seu método como método de inferência, partindo da natureza das coisas e chegando à verdade. Mas conjecturas convertem-se em razões por serem as mais prováveis, o que não remete a nenhum sentido matemático, senão à noção (quase de senso comum) de melhores, mais verossímeis. Por outro lado, todo sistema que acate os mesmos princípios alcançará as mesmas conclusões. Dos princípios enunciados, metodológicos e outros, obtêm-se sempre as mesmas conclusões, não importa o sistema no qual sejam tomados tais princípios. Todavia, Rousseau defende que as hipóteses a serem oferecidas na seqüência são as melhores reconstruções da cadeia de eventos responsável pela desigualdade verificada entre os homens. À História, como ciência empírica, cabe preencher as lacunas entre dois fatos. Na impossibilidade de recrutar elementos suficientes para cobrir os vãos do tempo, resta à Filosofia fechar as fendas e aterrar os abismos. Não o fará certamente com base em idéias vazias, orientando-se, isso sim,  por princípios epistemológicos bem estabelecidos respeitantes a causas e seus mecanismos de ação. Esses princípios, por seu turno, resultam ou de uma forma de indução de segundo grau, difícil de justificar, ou da inferência abdutiva sobre a qual falamos brevemente.

Inferências abdutivas, diferentemente das dedutivas, são falíveis. Essa falibilidade tem fomentado a combinação de realismo científico apoiado no acatamento de inferências abdutivas e de naturalismo epistemológico (Richard Boyd, Staatis Psillos, etc). Também Rousseau deixa em aberto no Segundo Discurso, a possibilidade de que o desenvolvimento das ciências naturais venha a alterar o universo de informações disponíveis sobre os primórdios do homem e as causas da desigualdade entre os homens. Tudo o que ele declara é que essas disciplinas não atingiram um grau evolutivo tal que lhes assegure o papel de fundadoras do conhecimento sobre essa temática.

Assim, mesmo faltos de uma incursão mais profunda pelas obras de Rousseau, acreditamos ser possível conferir estatuto científico ao Segundo Discurso, seguindo as pistas deixadas pelo próprio autor no texto e adotando uma perspectiva realista quanto à narrativa das origens, perspectiva sustentada por intermédio de inferências de tipo abdutivo e aberta ao progresso científico.

A hesitação de Rousseau em reivindicar cientificidade às reconstruções históricas do Segundo Discurso talvez esteja mais relacionada a uma recusa de entrar em discussões epistemológicas do que ao verdadeiro espírito por trás da obra.

 

 

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