Volta

 

Da unidade natural ao dualismo no indivíduo: As faces da perfectibilidade no Segundo Discurso

 

 

Ciro Lourenço Borges Júnior

Universidade Federal de Uberlância

 

As questões levantadas sobre a noção de perfectibilidade no pensamento de Rousseau não foram, por muitas vezes, pensadas a fundo; cabendo à liberdade, à bondade natural, ao homem natural em si, etc., as maiores discussões. Entretanto, não se trata aqui de subestimar estes conceitos, mas principalmente de analisar a perfectibilidade com um maior apreço. No Discurso sobre a desigualdade, a perfectibilidade representa, a meu ver, um papel fundamental, uma vez que sem esta concepção o estatuto e a compreensão da hipótese do estado natural estabelecida por Jean-Jacques seria logo descartada, e assim, de certo modo, também as outras concepções.

Previamente, é preciso rever alguns pontos cruciais deste Discurso e, de certa maneira, analisar os reais significados deste hipotético estado de natureza. Para tanto, analisar-se-á o estado de natureza e o homem em si, estando este tanto no próprio estado de natureza, quanto no estado civil. Toda a primeira parte do Segundo Discurso busca esclarecer, em suma, a condição natural do homem, ou seja, o homem “tal como o formou a Natureza”(1). Esta condição abarca – para responder também, é claro, à questão proposta – um esclarecimento acerca da desigualdade, ou seja, um dos pontos importantes do conhecimento do homem em si é, justamente, o conhecimento da origem da desigualdade. O problema da desigualdade, portanto, é parte de um problema mais geral: o problema do homem.

Rousseau é bem claro no que concerne à desigualdade, concebendo, portanto, dois tipos: uma natural (ou física) e outra moral (ou política). Evidentemente, a que ele busca esclarecer é, sobretudo, a segunda, uma vez que a primeira por ser natural não é passível de discussão, evidenciando desde já um certo equívoco da questão proposta pela Academia. A desigualdade, tal como Jean-Jacques observou, seria enfim pertencente a este grupo das desigualdades naturais? Certamente não, uma vez que, tal como Jean-Jacques já havia analisado no Primeiro Discurso (e reafirma neste Discurso), essa desigualdade perniciosa que acomete a modernidade é de fato uma desigualdade moral. E esta desigualdade moral, possui uma origem conhecida? É logo no início que se tem a base daquilo que o filósofo genebrino pretende demonstrar: a desigualdade moral “depende de uma espécie de convenção, e que ela é estabelecida, ou pelo menos autorizada pelo consentimento dos Homens.”(2)

A fim de compreender e desmistificar as desigualdades físicas, Rousseau, já a partir de seus “raciocínios hipotéticos e condicionais” (3), começa por descrever a condição física do homem natural. Condição esta que se apercebe essencialmente ligada à própria condição do ambiente natural em que vive, ou seja, da própria Natureza. O homem natural se encontra em um ambiente ímpar; em uma “terra abandonada à sua fertilidade natural, e coberta de florestas imensas que [...] oferece a cada passo reservas de provisões e refúgios aos animais de qualquer espécie” (4). Este meio, invariavelmente, lhe dita sua condição, e é observando e imitando a indústria dos outros animais que ele se eleva aos instintos dos animais. O homem natural apropria-se, portanto, do instinto de cada animal, observando sempre a sua própria necessidade.

A fertilidade da Natureza e uma certa “astúcia”, proporcionam a este homem natural uma independência diante de qualquer animal, ou mesmo, de qualquer ser humano. E o resultado disto é uma plena adaptação ao meio e uma vida totalmente carente de paixões arrebatadoras. Sua vida é solitária e, a bem dizer, encerrada em si mesmo. “Sua alma, que de modo algum se agita, se liberta somente ao sentimento de sua existência atual”.(5) E é por tais considerações que não se recua em alegar aqui uma unidade natural. Unidade esta observada a partir de uma não cisão, ou divergência, entre o homem e a Natureza, sendo que o homem não é tomado como indivíduo e nem a Natureza como algo exterior. “No horizonte limitado da natureza, ressalta Starobinski, o homem vive em um equilíbrio que não o opõe nem ao mundo nem a ele mesmo.” (6) No que concerne, portanto, à condição deste homem natural, dir-se-ia somente em se tratar de uma existência imediata.

Este estado de pura ignorância seria, afinal, o estado natural do homem. Estado de liberdade, felicidade e gozo pleno. Mas é, mais uma vez, por um grande golpe que se tem este equilíbrio cair por terra. Uma série de fatos casuais interfere neste equilíbrio, e “aquele que desejou que o homem fosse social, imagina Rousseau, tocou com o dedo o eixo do globo e o inclinou sobre o eixo do universo. Com esse leve movimento vejo transformar-se a face da Terra e ser decidida a vocação do gênero humano” (7). E é sobre uma gama de conjecturas que se abre a segunda parte do Discurso sobre a desigualdade.

A idéia de uma ação assaz simbólica coloca-nos diante das causas do rompimento do homem com seu estado natural. Um sujeito bradando por aquilo que pensara ser seu, representa uma época avançada; uma época que prescindia de uma gama de progressos, e “as coisas já haviam chegado a tal ponto de não mais poder permanecer como eram, pois essa idéia de propriedade, dependente de muitas idéias anteriores que só puderam nascer sucessivamente, não se formou de uma só vez no espírito humano” (8), e representa, assim, definitivamente a ruptura do homem com a Natureza. É preciso, enfim, voltar os olhos para esta cisão.

O rompimento do homem com a Natureza, como já fora levantado, dependeu de uma série de fatos causais, essencialmente, externos, ou seja, foi pela ação de uma variedade de mudanças climáticas, geológicas, etc., que o homem cindiu com a Natureza Foi a necessidade, afinal, a única causadora do rompimento do homem com a Natureza. Mas os outros animais, habitantes do mesmo ambiente, não estavam todos à mercê de todas estas casualidades? Não sofreram todos eles as mudanças climáticas, a escassez dos alimentos? Com certeza. Entretanto, o homem possui uma faculdade que lhe permite transpor todos estes obstáculos. Uma potencialidade “distintiva e quase ilimitada” (9) que lhe proporcionou superar toda estas dificuldades. Tem-se, então, o que Rousseau define, com um neologismo, como perfectibilidade. E eis a verdadeira causa da separação do homem com a Natureza.

Detenhamos-nos um pouco a fim de analisar um pouco melhor o que venha a ser de fato a perfectibilidade. Resgatando o importante testemunho de Goldschmidt, em Anthropologie et Politique, faz-se aqui alguns esclarecimentos. Tendo em vista uma melhor compreensão do homem em si e do movimento histórico por ele engendrado, Rousseau busca sondar suas origens. E munido de raciocínios “semelhantes aos que fazem todos os dias os nossos físicos sobre a formação do mundo” (10), ele formou um “sistema” (11) próprio. A perfectibilidade vem, portanto, legitimar este sistema, isto é, a perfectibilidade assume no Segundo discurso um “caráter formal” que, por não definir “uma natureza ou uma essência” do homem natural, ela representa, enquanto uma potencialidade deste homem, o papel somente de “responder” à ruptura exercida pelas causas exteriores. Ela “é, portanto uma faculdade de defesa e de resposta imediata, não de iniciativa” (12).

Entretanto, o maior êxito dessa nova concepção é de que afinal Jean-Jacques conseguiu se desvencilhar das críticas dos materialistas e deterministas que poderiam ver na liberdade um problema, uma vez que o reconhecimento dela exigiria do homem primitivo um “ato puramente espiritual” (13) E mesmo à insípida observação de Voltaire que em nota à passagem sobre a perfectibilidade a caracteriza como “uma péssima metafísica (14)”, Rousseau faria questão de ressaltar que “dela não se pode ter contestação” (15). Ela “convém tanto ao [homem] primitivo quanto ao homem civilizado” (16) E é justamente neste ponto que “a meditação dá lugar à observação” (17). Enquanto uma “qualidade biológica inseparável do homem” ela deve estar fundamentalmente presente tanto no que concerne ao seu sistema quanto à própria natureza humana. Tal metafísica apontada por Voltaire dá lugar a uma “observação científica”(18), segundo Goldschmidt, ou ainda, uma “geometria antropológica” (19), como quer Gouhier.

Esclarecido o estatuto da perfectibilidade em meio ao pensamento de Jean-Jacques, cabe sondar, então, os efeitos da atuação da perfectibilidade, ou seja, o nascimento no homem “[de] suas luzes e [de] seus erros, [de] suas virtudes e [de] seus vícios”. Como já fora levantado, foi por ação de uma variedade de causas externas que fizeram com que o homem se aperfeiçoasse; que, visando sua conservação, desenvolvesse uma indústria capaz de concorrer para um novo equilíbrio com a Natureza, para uma readaptação com o meio externo. Concebe-se, portanto, algo externo? De fato. O que se decorre disso é que justamente há uma ruptura entre o homem e Natureza. O homem já se vislumbra um ser individual, em oposição à sua condição anterior, na qual natureza humana e a Natureza se imbricavam.

E o primeiro movimento deste desenvolvimento é um movimento caracteristicamente orgulhoso, ou seja, é no triunfo do indivíduo frente a um obstáculo qualquer que ele se vê um vencedor, um algo, ou um alguém superior. E mesmo, é frente aos animais que, por suas novas luzes e indústria, foram vencidos, que este indivíduo contemplou-se “como o primeiro de sua espécie” e já “preparava-se de longe para pretender-se o primeiro como indivíduo” (20). O eu vê-se já totalmente diferente do outro.

É, portanto, a partir da reação da perfectibilidade que se tem então uma quebra da unidade natural e, imediatamente, o aparecimento de um dualismo. Este dualismo não se encontra senão no âmbito do indivíduo, uma vez já determinado uma absoluta convergência no estado de natureza do homem natural com a Natureza, caracterizando, portanto, uma unidade natural. E em um primeiro momento, ele se opõe ao dualismo tradicional que ressaltava o problema da relação entre corpo e alma, entre bem e mal, etc.; tem-se aqui um dualismo, se é permito dizer, imanente ao próprio indivíduo, ou seja, o indivíduo se vê distanciado da Natureza e consequentemente da sua própria natureza. Não se trata de um distanciamento ou uma falta de convergência do corpo com a alma, mas do homem natural com o homem-do-homem. A relação entre ser e o parecer foi, finalmente, instituída.

Mas o que esta diferenciação possui de paradoxal? Quais as conseqüências desta cisão? A questão é que, desenvolvidas as luzes e instituído a relação social entre os homens, aquele primeiro momento orgulhoso se acentua e se estabelece na origem das relações humanas. As relações humanas se caracterizam pelas novas necessidades, sendo que a necessidade de se distinguir evidencia-se como a principal atividade destes novos homens em sociedade. Ainda que se tenha vislumbrado uma época em que a comunicação entre os homens tivesse sido pura tal como está bem figurada na metáfora da fonte no Ensaio sobre a origem das línguas, é já nesta mesma relação que se encontra a origem de todos os males observados no trato com os homens. A relação humana em si mesma comporta todo o mal concebido na origem da cisão com a Natureza. Aquele dualismo originário instaurado a partir desta ruptura se vê, portanto, como o principal efeito da fatídica resposta da perfectibilidade às vicissitudes exteriores. Efeito este que ocasiona, por desdobramentos, todos os empecilhos característicos de uma vida social.

É, entretanto, sabido que o surgimento deste novo homem artificial, deste novo mundo para o homem, não anula a verdadeira natureza do homem. Assim como a estátua de Glauco, estão todos os homens cobertos de impurezas e vícios reunidos em uma aparência assombrosa adquirida no desenrolar do tempo e no “seio da sociedade”(21). E é por consciência disso que se tem claro o mal-estar sentido pelos homens: a experiência mostra com claras luzes que a condição humana é infeliz, mas, por um chamado de sua própria natureza, os homens são impelidos a buscarem uma certa felicidade.

Rousseau, enfim, lança a verdadeira condição do homem em sociedade: “O objeto da vida humana é a felicidade do homem, mas quem de nós sabe como se tornar feliz? Sem princípios, sem base certa, nós corremos de desejos em desejos, e aqueles que nos vêm finalmente satisfazer nos deixam tão longe da felicidade que antes de nada ter obtido” (22) E o que parece evidente acerca disso é que a única origem desta dissociação se explica pelo simples fato de que a verdadeira essência do homem está encoberta, sendo a causa mais uma vez o movimento originário de ruptura com a Natureza. “O inexorável sentimento de nossa finalidade, diz Burgelin, cria em nós uma dualidade: a certeza que a felicidade é sempre possível, a evidência que ela não é jamais alcançada; entre os dois, o insaciável desejo [de sê-lo] [...]”(23).

 

Referências


BURGELIN, Pierre. La philosophie de l’existence de J.-J. Rousseau. Genéve: Slatkine Reprints, 1978.

Goldschmidt, Victor. Anthropologie et Politique: Les principes du système de J-J Rousseau. 2 ed. Paris: J. Vrin, 1984.

Gouhier, Henri. Les méditations métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau. Paris: J. Vrin, 1984.

ROUSSEAU, J.-J. Ensaio sobre a origem das línguas. 2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2003. 

 

Notas

 

(1) OC, III, p 123

(2) OC, III, p 131

(3) OC, III, p 133

(4) OC, III, p 135

(5) OC, III, p 145

(6) Starobinski, 1971, p 39

(7) Rousseau, Ensaio..., 2003, p 134

(8) OC, III, 164

(9) OC, III, p 142

(10) OC, III, p 133

(11) OC, III, p 162

(12) Goldschmidt, Anthropologie..., pp. 288-292

(13) Goldschmidt, Anthropologie..., pp. 288-289

(14) OC, III, p 1316, note 1

(15) OC, III, p 142

(16) Goldschmidt, Anthropologie..., p 289

(17) Goldschmidt, Anthropologie..., p 289

(18) Goldschmidt, Anthropologie..., p 292

(19) Gouhier, Les Méditations..., 1984, p 15

(20) OC, III, pp. 165-166

(21) OC, III, p 122

(22) Apud Burgelin, La philosophie..., 1978, p 115

(23) Burgelin, La philosophie..., 1978, p 115

 

 

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